POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ

POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

REVISITANDO O CASO DAS IRMÃS PAPIN - por Francisco Ronald Capoulade Nogueira

O crime das irmãs Papin ocorreu no dia 2 de fevereiro de 1933, na cidade de Le Mans. Antes
de adentrarmos na análise dos textos de Lacan e Le Guillant sobre esse assunto, proponho
uma breve exposição do crime. Exposição essa que se fará a partir de uma compilação de
várias versões deste mesmo crime, dentre as quais privilegiei os elementos em comum. Entre
elas estão os artigos que analisaremos, fragmentos dos documentos policiais que retrataram o
crime junto com os depoimentos das irmãs, obras literárias e cinematográficas.
Era inicio de uma noite de inverno e estavam em casa apenas as empregadas. O Sr.
Lancelin, sua esposa e sua filha haviam saído. Após um pequeno incidente doméstico com o
ferro de passar roupas que resultou em um curto-circuito e deixou a casa dos Lancelin às
escuras, Léa e Christine ficaram apreensivas com qual poderia ser a reação de suas patroas e
se trancaram no quarto. Ao ouvirem suas patroas chegarem e chamarem seus nomes
incansavelmente, Christine resolver descer e explicar o ocorrido e, em seguida, desceu Léa.
Ao constatarem que a casa estava sem energia elétrica a Sra. e Srta. Lancelin exigiram
explicações a Léa, já que o fato ocorreu enquanto ela usava o ferro de passar e também por ser
reincidente em “desleixos” domésticos. Daí por diante, ao que tudo indica, iniciou-se uma
discussão ríspida e de ânimos alterados que chegou ao nível extremo de violência.
Christine relata aos policiais em seu depoimento que quando suas patroas voltaram
para casa e perceberam o breu que ali estava, ficaram furiosas, já que tal incidente havia
ocorrido outras vezes. Christine afirma que a Sra. Lancelin
(...) disse-lhe que o ferro estava estragado, de novo, e que eu não tinha conseguido
passar a roupa. Ao falar assim, ela quis atirar-se contra mim (...) Ao verificar que a
Sra. Lancelin vinha em cima de mim, agarrei-lhe seu rosto e arranquei-lhe os olhos
com os dedos. Quando digo que avancei para cima da Sra. Lancelin, estou equivocada
porque a pessoa que agarrei foi a Srta. Geneviève a quem arranquei os olhos (...)
Entrementes, minha irmã Léa avançou para cima da Sra. Lancelin e, igualmente,
arrancou-lhe os olhos (LE GUILLANT, 1963/2006, p. 288).
Iniciada as agressões das Papin o desfecho foi um tanto mais cruel. Depois de terem
arrancado os olhos de suas patroas, ainda vivas, e de as terem espancando até a morte, elas
continuaram o massacre com objetos cortantes. Usaram martelos, facas e também uma vasilha
de estanho. Dilaceraram suas nádegas, suas coxas, seus rostos e deixaram à mostra os sexos
de suas patroas e, por fim, esquartejaram-nas. A violência de seus golpes era de tamanha força
que as paredes da sala estavam cobertas de sangue até uma altura aproximada de mais dois
metros.
Ao fim e ao cabo de tudo isso, elas se limparam, e também limparam os objetos
usados dizendo uma para outra “agora tudo está limpo”. Deitaram-se nuas no quarto delas e lá
ficaram a espera da polícia e do Sr. Lancelin.
Esse crime insólito e brutal causou tanto impacto na opinião pública francesa da época
que sua repercussão pôde ser vista muito além dos meios midiáticos comum àquele período.
Diversos intelectuais e artistas daquela época e de épocas posteriores, inspirados por essa
história, produziram artigos e obras artísticas no afã de compreender o que poderia ter
motivado tal crime. Entre eles estão Jean Genet, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir,
Benjamin Peret, Jean-Pierre Denis, Niko Papatakis, Louis Le Guillant e o jovem Jacques
Lacan.
Os principais ingredientes em questão eram a brutalidade do crime, o incesto, a
homossexualidade feminina e o conflito de classes.
Em seu artigo Motivos do Crime Paranoico: O Crime das Irmãs Papin, publicado na
revista Minotaure, em dezembro daquele mesmo ano, Lacan inicia seu texto fazendo
referência à repercussão que o horrendo crime cometido pelas assassinas Léa e Christine
Papin tomou na opinião pública.
Primeiramente, Lacan chama a atenção para o fato de que entre as Papin, que eram
criadas-modelo ao mesmo tempo que criadas-mistério, e suas patroas havia uma ausência de
comunicação. Ou seja, entre os dois grupos (patrões e empregadas) havia um silêncio, mas
não era um silêncio vazio, ainda que fosse turvo aos atores em questão. Segundo Lacan, a
materialização desse pavoroso silêncio se dá de maneira súbita e simultânea classificado por
ele como uma “verdadeira orgia sangrenta”. O que Lacan apresenta nesse inicio é uma análise
superficial do caso; superficial no sentido de que está à superfície, daquilo que pode ser visto
primeiro, aquilo que foi privilegiados pela análise de outros intelectuais.
No entanto, essa não é a tônica de sua análise. Instigado pelas considerações do Dr.
Logre, Lacan viu nesse crime indícios de uma anomalia mental das irmãs. A partir de um
pressuposto da psiquiatria vigente que se pautava, grosso modo, em três traços clássicos para
o reconhecimento da paranoia, a saber, delírio intelectual com ideias de grandeza variadas
indo até ideias persecutórias; reações agressivas podendo chegar a homicídios e; uma
evolução crônica, Lacan procurou identificar “a influência das relações sociais incidentes em
cada uma destas três ordens de fenômenos”, admitindo assim uma noção dinâmica das
tensões sociais para explicar os fatos da psicose.
Mas o que Lacan quer dizer com o termo tensões sociais? Teria esse termo o mesmo
significado daquilo que os intelectuais e artistas franceses influenciados pelo marxismo
chamaram de conflitos de classe? Provavelmente, não.
Essa foi a critica feita por Le Guillant ao texto de Lacan. Segundo ele, em seu artigo
publicado na revista Les Temps Modernes, em novembro de 1963, “a condição doméstica
contém um poder patogênico”. O fato de Christine e Léa serem empregadas domésticas e, por
isso, viverem em condições desiguais as de suas patroas torna a questão das relações de
trabalho central em sua análise psicopatológica. Nesse artigo, ele afirma, parafraseando
Simone de Beauvoir, que “é unicamente a violência do crime cometido que nos leva a avaliar
a atrocidade do crime invisível, cujas vítimas são as empregadas domésticas” (LE
GUILLANT, 1963/2006, p. 325). Tal pensamento sintetizava a opinião de muitos intelectuais
acerca do caso das irmãs Papin.
Sobre Lacan, Le Guillant diz, em uma nota de roda pé desse mesmo texto, o seguinte:
Em um brilhante artigo que acaba de chegar ao meu conhecimento – e que, se eu
pudesse, reproduziria integralmente –, Jacques Lacan associa o caso das Irmãs Papin à
psicose paranóica.(...) Por mais qualificada e enriquecedora que seja a sua análise, é
impossível deixar de observar que, praticamente, ela não comporta nenhuma alusão ao
fato de que Christine e Léa eram empregadas domésticas; (...) À semelhança de todos
os que tiveram conhecimento do caso das Irmãs Papin, Lacan não chega a vislumbrar
que sua condição de empregadas domésticas possa ter desempenhado um papel na
gênese desse crime (LE GUILLANT, 1963/2006, p. 322).
Contudo, as tensões sociais para as quais Lacan aponta são tensões muito primitivas,
relacionadas com os primeiros estádios da sexualidade infantil. Segundo ele, nesses estádios
se opera
a redução forçada da hostilidade primitiva entre irmãos, uma anormal inversão pode se
produzir desta hostilidade em desejo e que esse mecanismo engendra um tipo especial
de homossexuais entre os quais predominam os instintos e atividades sociais. De fato,
esse mecanismo é constante: esta fixação amorosa é a condição primordial da primeira
integração nas tendências instintivas do que nós chamamos as tensões sócias
(LACAN, 1933).
Essa sua análise era fruto, em grade parte, de sua leituras da obra de Freud que vinha
se desenvolvendo desde sua tese de doutorado defendida no ano anterior. Nessa perspectiva, o
que Lacan postulava era, grosso modo, uma análise da paranoia mais profunda na qual –
inspirado nos textos freudianos – privilegiava a dinâmica das tensões sociais, não apenas as
superficiais, mas aquelas que surgiam de uma investigação psicanalítica cuja máxima é: o
homem não é senhor em sua própria casa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário