POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ

POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Análise acerca de O Crime das Irmãs Papin de Jacques Lacan - por Yuri Campagnaro

Jacques Lacan, autor que revolucionou o estudo da psicanálise, analisa, no texto em questão, do ponto de vista desses estudos, crime peculiar que ocorreu em sua época. O crime, dotado de características terríveis e intrigantes foi de autoria de duas irmãs, de 28 e 21 anos, que foram durante anos criadas de uma família burguesa, com a qual, estranhamente, não dialogavam, não trocavam palavra alguma, numa relação de silêncio absoluto e “obscuro”.

Certa noite, após banal corte de eletricidade e consequente reclamação das patroas (mãe e filha), as irmãs, num ato de furor, “...cada uma se apoderou de uma adversária, arrancou-lhe em vida os olhos das órbitas, fato espantoso, disseram nos anais do crime, e os destroçou. Depois, com a ajuda do que encontraram ao seu alcance, martelo, pichel de estanho, faca de cozinha, atacaram os corpos de suas vítimas, destruíram-lhes o rosto e, expondo seu sexo, talharam profundamente as coxas e nádegas de uma, para macular com esse sangue as da outra. Em seguida, lavaram os instrumentos desses ritos atrozes, purificaram-se e se deitaram na mesma cama.”.

Agiram com comportamento inusitado também durante o processo, quando não demonstraram qualquer motivo de raiva contra as vítimas, tendo apenas como preocupação partilharem a responsabilidade do crime. Após cinco meses afastadas uma da outra, Christine (uma das irmãs), apresentou violenta crise, com alucinações, em que tenta sem sucesso arrancar seus próprios olhos. Após, ambas foram condenadas à morte.

Seguiram-se intensos debates na tentativa de compreender o crime ocorrido por parte de psicólogos e cientistas. Lacan sugere uma teoria autônoma para solucionar o mistério, partindo de uma análise psicanalítica.

Segundo ele, a pulsão agressiva pode ser considerada inconsciente, “o que significa que o conteúdo intencional que a traduz na consciência não pode se manifestar sem um compromisso com as exigências sociais integradas pelo sujeito, isto é, sem uma camuflagem de motivos que é precisamente todo o delírio”. Ou seja, as explicações conscientes, que parecem muitas vezes sem nexo lógico, são manifestações, exigidas socialmente, do desejo inconsciente – manifestações que não tem linearidade, que se sucedem, repetem-se, como significantes, sintoma, afinal, “o inconsciente se estrutura como linguagem”.

Mas essa pulsão é dotada de relatividade social, sempre tem a intencionalidade de um crime, quase sempre de uma vingança, frequentemente de uma punição, uma expiação moralista proveniente de ideais sociais.

É dessa forma que o conteúdo intelectual do delírio parece uma superestrutura ao mesmo tempo justificadora e negativa da pulsão criminal. O delírio varia, dissipando-se com a realização dos fins do ato, e tais variações são, para Lacan, essenciais. Os temas delirantes expressos por Christine na prisão são sintomas típicos do delírio, da mesma forma que o desconhecimento sistemático da realidade, tomado efeito na ambivalência de toda crença delirante.

A forma da psicose das irmãs é estreitamente correlata, senão idêntica. Para Lacan, Freud dá a chave dessa compreensão. Segundo este, em seus estudos sobre a sexualidade infantil, ocorre, em certa época, redução forçada da hostilidade primitiva entre os irmãos, mas pode aí haver uma inversão anormal, em que hostilidade se converte em desejo, causando uma “fixação amorosa”. “Essa integração se faz, no entanto, segundo a lei da mínima resistência, por uma fixação afetiva ainda muito próxima do eu (moi) solipsista, fixação que merece ser chamada de narcísica e na qual o objeto escolhido é o mais parecido com o sujeito: esta é a razão de seu caráter homossexual”.

A ambivalência afetiva em relação à irmã mais velha dirige o comportamento autopunitivo da irmã mais nova: cada uma delas, prisioneira do narcisismo, se torna nova imagem dessa Irmã que nossa doente transformou em seu ideal. Tornam-se “almas siamesas”. Segundo Lacan, “na noite fatídica, sob a ansiedade de uma punição iminente, as irmãs misturam à imagem de suas patroas a miragem de seu mal”.

Do ponto de vista criminal, não restam dúvidas de que as irmãs são as autoras, confessas, do crime. O que torna tão intrigante o caso é que elas não fazem questão de se eximir da culpa, pelo contrário, assumem-na conjuntamente. A questão é se a punição a elas deve ser realizada sem discriminações, de maneira severa, levando em conta a crueldade do crime; ou se elas merecem ser tratadas, como vítimas de problemas psicológicos, do ponto de vista da saúde mental.

Como o próprio Jacques Lacan coloca, “Mas, observamos, utilizando-nos daqueles a quem assusta a via psicológica à qual engajamos o estudo da responsabilidade, que o adágio ‘compreender é perdoar’ está submetido aos limites de cada comunidade humana e que, fora desses limites, compreender (ou acreditar compreender) é condenar”.

O que se entende de toda a análise do caso em questão é que por mais hediondo que tenha sido o crime, o estado de saúde mental das autoras é evidentemente um estado de doença, em que são acometidas por aflições psíquicas. Não se deve analisar o fenômeno social e psicológico do crime como um julgamento entre o bem e o mal, uma luta maniqueísta cristã, cruzada moralista, ou coisa do gênero.

Dizem as teorias burguesas mais avançadas sobre o Estado que o crime tem razões mais complexas, e sua sanção é realizada pelo Estado, que não deve perseguir os anseios de particulares, mas preservar a ordem social e comum de todos, de maneira neutra e impessoal, e isso é alcançar a justiça. A função da pena, ao menos em teoria, no plano do dever-ser, é de ressocialização do condenado, de melhoramento do tecido social. Dessa forma, questiona-se que tipo de bem à sociedade e que tipo de justiça seria vindo do encarceramento ou pena de morte das autoras.

Entretanto, esse discurso apenas oculta a real causa de crimes extremos. A própria psicanálise ensina que elementos que parecem estar fora do sistema (no caso o social), que contradizem o todo e a unidade desse sistema, não são elementos externos, patológicos, mas parte integrante desse todo, manifestação do seu Real mais íntimo, são seus sintomas.

Crimes de tamanha crueldade e de difícil explicação são excessos de uma mesma realidade, que cria crimes mais brandos na sociedade, que provoca exploração, miséria e violência institucionalizada e internalizada enquanto saberes inconscientes na forma de ideologia.

Como coloca Slavoj Zizek, assim como a sociedade de consumo capitalista produziu um excesso que fugiu do seu controle, o fascismo, e necessitou da ajuda de seu oposto, o socialismo soviético, para dar cabo a esse extremo; nossa sociedade do fim da história, modelo, democrática, produz um excesso demasiado terrível, que lhe foge do controle, a criminalidade1, a qual para ser combatida, necessita da união com o lado mais terrível, oposto, da realidade democrática liberal, o sistema prisional absurdo e a polícia exterminadora – ambos pairam muito longe das garantias democráticas mínimas incluídas mesmo em legislação.

Mas o problema do crime está longe de ser resolvido, pois não pode ser tratado como elemento patológico, estranho, ao “desenvolvimento” do restante da sociedade (que segue como uma locomotiva que anda por sobre trilhos derretidos rumo ao abismo interminável) – a totalidade das relações explicita que o culpado flagrante pela realidade produtora de irmãs que cometem crimes brutais contra suas patroas, pedofilia, crimes contra mulheres (como a do recente caso do goleiro Bruno), etc. é a própria realidade.

O dever-ser dos manuais, que cinicamente colocam as metas de ressocialização em um Estado “neutro”, “impessoal”, como dito antes, fetichiza o problema, ocultando-o pro trás de pseudossolucões de caráter burocrático e técnico, elucubrando acerca de mil meias soluções que visam justamente fazer o que está sendo feito: recalcar os sintomáticos excessos de si mesmo, sem psicanalista, sem anestesia.

Esse fukuyamismo presente de maneira tão forte no “pensamento” jurídico deve ser combatido radicalmente, e, como dito por célebre filósofo alemão, ser radical é agarrar as coisas pela raiz, e a raiz para o homem é o próprio homem. Simplesmente, para acabar com o problema, deve-se acabar com o problema, e não preservar sua essência e causa ao tolher os repetitivos sintomas horríveis, que representam não mais que a própria totalidade das relações – a face oculta que os fukuyamistas (alguns de “esquerda”) preferem não ver.

O caso das irmãs Papin leva o debate sobre a consciência humana e sobre as causas obscuras de crimes estranhos e aparentemente injustificáveis, em que as causas são ocultadas pela vileza do ato praticado, de fato horrendo.

Compreender aqui significa muito mais que perdoar ou condenar as irmãs assassinas, tão culpadas quanto vítimas do crime de sangue que cometeram. Significa, inescapavelmente, agir. E esse agir, simplesmente, significa socialmente.

A igualdade formal assegura a existência de seu oposto perversor de sua unidade lógica, a desigualdade material – essa situação, aliada com outros excessos produz a necessidade do crime para sobrevivência, tanto material quanto psicológica.

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