POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ

POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ

domingo, 11 de julho de 2010

ACREDITE E VOTE POR UMA QUALIDADE DE VIDA MELHOR - DELEGADO RUBENS RECALCATTI

Somos o futuro deste país e não podemos concordar com as coisas erradas. Vamos fazer nossa parte, vestir a camisa e participar. Por isso peço conheça minhas propostas pois quero qualidade de vida para todos. Seja um cidadão autêntico sem medo da verdade e lute comigo pela melhoria do país.
Pense que a população e as cidades cresceram em proporções extraordinárias e, a Segurança Pública (Polícias), não acompanharam essa evolução. Assim, pretendo discutir:
1. A Polícia Desmotivada: sem recursos e com baixos salários, sem estrutura e desacreditada, pretendendo mostrar que o policial exerce uma profissão essencial e que tem por finalidade combater o mal;
2. O problema grave das drogas, quero atendimento as crianças e adolescentes em situação de risco, com o devido encaminhamento assistencial;
3. A integração de todas as instituições de segurança pública, inclusive com a participação da segurança privada, e com uma real integração com os Conselhos de Segurança Comunitários;
4. Resgate das populações excluídas e discriminadas em todos os níveis, para que possam ter a assistência adequada do Estado, principalmente quanto ao ensino profissionalizante, gerando assim oportunidades para todos;
5. Avaliação do Sistema Carcerário e, consequentemente, a retirada dos presos das Delegacias de Polícia;
6. Avaliação objetiva e real dos índices de criminalidade por tipos de crime, faixas etárias e regiões, identificando os problemas nas comunidades relativos aos crimes e a violência, analisando características sociais e físicas, adequando com políticas públicas efetivas em conjunto com a comunidade e comprometimento efetivo do Estado;
7. Prevenção objetiva com base no item anterior, adequando as Unidades Policiais com número real de profissionais, dividindo as cidades em territórios de tamanho adequado e que possam ter policiamento preventivo durante 24 horas, ou seja, uma polícia setorizada, inclusive nas zonas rurais;
8. Modernização das Polícias em todos os seus aspectos estruturais, materiais e humanos, buscando a valorização e o reconhecimento desses profissionais;
9. Uma polícia comunitária objetivamente focada na comunidade;
Minhas propostas como Deputado Estadual são bastante amplas, com ideias e ideais abrangentes, e nesta carreira como profissional de segurança pública há 30 anos, me dediquei profundamente a árdua tarefa ser policial, tive resultados expressivos onde passei, sendo reconhecido pelas pessoas, tendo inclusive inúmeras homenagens, sendo uma das últimas como Patrono do Conseg de Araucária, assim, acredito preparado para essa nova empreitada. Preciso de seu apoio, de seu voto, para construirmos juntos, um Estado melhor para todos.

DELEGADO RUBENS RECALCATTI – DEPUTADO ESTADUAL

CARTA AOS DELEGADOS DE POLÍCIA - RUBENS RECALCATTI

Sou policial civil há trinta anos, 16 como Delegado de Polícia. Trabalhei muito e sempre que tive a oportunidade procurei mostrar a instituição de forma positiva para a imprensa e por consequência para a população.
Como muito de vocês companheiros Delegados de Polícia, sacrifiquei horas de descanso, lazer e convívio familiar para cumprir com a minha missão que infelizmente, como também deve ter ocorrido com os senhores, nem sempre com o devido reconhecimento.
Nos últimos anos tenho percebido um certo “encolhimento institucional” de nossa classe. Convivemos diariamente com a invasão de nossa competência funcional com Policial Militar realizando investigação e Sargentos comandando delegacia pelo interior do Estado. Isso tudo com a conivência e por que não dizer incentivo por parte de alguns Magistrados, Promotores e Prefeitos que tentam com o esvaziamento da Polícia Civil, fazer da autoridade civil seu subordinado.
Estamos num momento crucial para a Polícia Civil. Não podemos compactuar que nossa instituição continue perdendo a importância social e política que um dia teve. Pois do contrário, continuaremos assistindo os Delegados de Polícia serem preteridos na escolha para secretário de segurança pública e outros cargos importantes por outras instituições que sabem se fazer representar.
Uma instituição com mais de 150 anos não pode em tempo algum ficar sem representante no legislativo estadual, pois outras categorias muito menos relevantes para a sociedade paranaense lá estão representadas.
No último ano recebi um convite para ser pré-candidato a deputado estadual pelo Partido Verde e depois de muito ponderar principalmente sobre questões acima mencionadas resolvi aceitar o desafio.
Tenho inúmeros objetivos e projetos no que tange a segurança pública que o momento e o espaço não permitem elencar. Defenderei com afinco os interesses dos Delegados de Polícia inclusive no que for possível, lutando para que a atividade seja reconhecida como carreira jurídica.
Encaminho a presente aos meus colegas para pedir apoio nessa empreitada para ser o representante da classe nos próximos quatro anos, mas principalmente para ressaltar a importância de haver uma continuidade nessa representação que deverá ser permanente e ocupada por um Delegado de Polícia.

“Os governos passam, as sociedades morrem, mas a polícia é eterna.” (BALZAC)

RUBENS RECALCATTI
DEPUTADO ESTADUAL 43.181
EMAIL/ORKUT: rrecalcatti@yahoo.com.br
BLOG: www.rubensrecalcatti.blogspot.com

terça-feira, 18 de maio de 2010

TV Araucária - Jornal Regional dia 20/02/2010

ARAUCARIA/PR - ASSASSINADO À FACADAS

ARAUCÁRIA/PR - Tentativa de roubo ao caixa eletronico

ARAUCÁRIA/PR - POLICIA PEGA TRÊS ARROMBADORES DE RESIDÊNCIAS

ARAUCÁRIA/PR - MÃE E FILHO SÃO EXCUTADOS

ARAUCÁRIA/PR - DELEGADO FALA SOBRE IVASÃO NA ESCOLA

ARAUCÁRIA/PR -FUZILADO NO MEIO DA RUA NO BAIRRO SHANGRILA

ARAUCÁRIA/PR - DELEGADO RESUMO DO FINAL DE SEMANA

ARAUCÁRIA/PR - PRISÃO DA DUPLA DE ASSALTANTE

ARAUCÁRIA/PR - DELEGADO FALA SOBRE A QUADRILHA QUE AGIA EM ARAUCÁRIA

ARAUCÁRIA/PR - BRIGA DE TRANSITO ACABA COM BALEADO

ARAUCÁRIA/PR - DR. RUBENS FALA O ATROPELAMENTO NO CSU

ARAUCÁRIA/PR - DR.RUBENS FALA SOBRE OS ASSALTOS DO COMÉRCIO DE ARAUCÁRIA

ARAUCÁRIA/PR - DR.FALA SOBRE CORPO ENCONTRADO DENTRO DO CARRO NA AREA RURAL

ARAUCÁRIA/PR - DELEGADO FALA SOBRE A TRAGÉDIA DA IGREJA

domingo, 2 de maio de 2010

NA MIRA DA VIDA - Delegado Rubens Recalcatti

Delegado Rubens Recalcatti 0002

O LADO NEGRO - Delegado Jorge Azor Pinto

Policia Civil Rubens Recalcatti 0001

A SUSPEITA - Delegado Rubens Recalcatti

OPUS MODUS OPERANDI 1 - por Rubens Recalcatti

PATRIA AMADA BRASIL - por Rubens Recalcatti

O NATAL - por Rubens Recalcatti

A E'PURA DO CRIME - por Rubens Recalcatti

ARAUCÁRIA/PR - MORTO COM 17 FACADAS NO JD ARVOREDO

ARAUCÁRIA/PR - TRAFICANTE MORRE EM CONFRONTO COM A POLICIA

ARAUCÁRIA/PR - HOMEM FAZ CHURRASCO E ACABA ESPETADO

ARAUCÁRIA/PR -FUZILADO NO MEIO DA RUA NO BAIRRO SHANGRILA

ARAUCÁRIA/PR - DUELO NO JD. ARVOREDO

DROGAS - por Rubens Recalcatti

A MASSA - por Rubens Recalcatti.

O COTIDIANO DO DELEGADO RECALCATTI





sábado, 20 de fevereiro de 2010

A Psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos - SIGMUND FREUD

SENHORES:

Estamos cada vez mais convictos da falta de fidedignidade das declarações feitas por testemunhas, sobre as quais, entretanto, se apóiam tantas condenações nos tribunais. Esse fato levou-os, futuros juízes e defensores, a se interessar por um novo método de investigação, que se propõe a induzir o próprio réu a estabelecer sua culpa ou inocência por meio de sinais objetivos. Esse método consiste numa experiência psicológica e se baseia em pesquisas da mesma ordem. Está estreitamente ligado a certas concepções que só muito recentemente chegaram ao conhecimento da psicologia médica. Sei que os senhores, por meio do que poderíamos chamar de ‘exercícios simulados’, já se ocupam em testar as possibilidades e a utilização desse novo método, e aceitei com prazer o convite do professor Loffler, que preside este seminário, para explicar-lhes de forma completa a relação entre esse método e a psicologia.
Todos conhecem aquele jogo de salão, também apreciado pelas crianças, em que alguém deve acrescentar a uma palavra escolhida ao acaso uma outra, sendo o resultado uma palavra composta; por exemplo ‘steam’ (vapor) e ‘ship’ (navio), dando ‘steam-ship’ (navio a vapor). A ‘experiência de associação’ introduzida na psicologia pela escola de Wundt nada é do que uma modificação desse jogo infantil, do qual se suprime uma regra.
A experiência é a seguinte: apresenta-se uma palavra (denominada ‘palavra-estímulo’) ao individuo que se está submetendo a experiência e ele deverá responder com uma outra palavra (denominada ‘reação’) o mais depressa possível, não havendo nenhuma restrição em sua escolha dessa reação. Devem ser observados os seguintes detalhes: o tempo exigido para a ‘reação’ e a relação – que pode ser de diversos tipos – entre a palavra-estímulo e a palavra-reação. Como era de esperar, essas experiências não produziram inicialmente muitos frutos, tendo sido realizadas sem uma finalidade definida e sem uma diretriz pela qual se pudessem avaliar os resultados. Essas ‘experiências de associação’ só se tornaram significativas e proveitosas quando, em Zurique, Bleuler e seus discípulos, especialmente Jung, começaram a lhes dedicar atenção. O valor das experiências realizadas pelo grupo deriva-se de terem partido da hipótese de que a reação a palavra-estímulo não podia ser fruto do acaso, mas devia ser determinada pelo conteúdo ideativo presente na mente do sujeito que reagia.
Habituamo-nos a denominar de ‘complexo’ todo conteúdo ideativo que é capaz de influenciar a reação a palavra-estímulo. Essa influencia ocorre quando a palavra-estímulo toca diretamente o complexo, ou quando o complexo estabelece contato com a palavra através de elos intermediários. A determinação da reação é realmente um fato muito singular, e a literatura do assunto reflete o indisfarçável assombro que a mesma tem provocado. Mas não há como duvidar de sua veracidade, pois, via de regra, perguntando ao próprio sujeito as razoes de sua reação, é possível expor o complexo atuante e esclarecer relações que de outro modo não seriam inteligíveis. Exemplos como os que Jung nos apresenta (1906- 6 e 8-9) fazem-nos duvidar da incidência da casualidade nos eventos mentais ou de sua pretensa arbitrariedade.
Façamos agora um breve exame dos antecedentes dessa concepção de Bleuler e Jung de que a reação do sujeito submetido a exame é determinada pelo seu complexo. Publiquei em 1901 uma obra na qual demonstrei serem de determinação rígida toda uma série de atos que se acreditava imotivados, contribuindo assim, em certo grau, para limitar o fator arbitrário em psicologia. Usei como exemplos as pequenas falhas de memória, os lapsos de língua e de escrita, e o extrativo de objetos. Mostrei que o responsável por um lapso de língua não é o acaso, nem a semelhança no som, nem uma simples dificuldade de articulação, mas que em todos os casos podemos descobrir um conteúdo ideativo perturbador, isto é, um complexo, que alterou o sentido da fala intencionada sob a forma aparente de um lapso de língua. Além disso, examinei pequenos atos aparentemente casuais e gratuitos – por exemplo, o hábito de brincar ou de manusear um objeto, e outros semelhantes – e demonstrei que são ‘atos sintomáticos’, ligados a um sentido oculto e cuja finalidade é expressar discretamente esse sentido. Descobri que nem mesmo um prenome nos vem a mente de forma arbitraria, tendo sido sua escolha determinada por algum poderoso complexo ideativo. Até mesmo números que acreditávamos ter escolhido ao acaso podem ser relacionados com a influência de um complexo oculto dessa espécie. Poucos anos depois disso, um colega, o Dr. Alfred Adler, pôde corroborar essa minha singularíssima afirmação com alguns exemplos notáveis (Adler, 1905). Depois que nos habituamos a essa concepção do determinismo na vida psíquica, sentimo-nos justificados em inferir das descobertas da psicopatologia da vida cotidiana que as idéias que ocorrem ao sujeito numa experiência de associação podem também não ser arbitrárias, mas determinadas por um conteúdo ideativo nele atuante.
Senhores, voltemos a examinar a experiência de associação. No tipo de experiência a que ate agora nos referimos, era a própria pessoa submetida a exame que nos explicava a origem de suas reações, circunstância que subtrai dessas experiências qualquer interesse judicial. Mas o que sucederia se alterássemos a planificação da experiência? Não se poderia adotar processo semelhante ao da resolução de uma equação com várias grandezas, em que se pode optar por qualquer uma como ponto de partida, considerando-se ou o a ou o b como o x procurado? Até agora em nossas experiências a incógnita tem sido o complexo. Escolhemos a esmo as palavras-estímulo, e o sujeito submetido a exame revelou-nos o complexo, que veio a ser expresso através dessas palavras-estímulo. Mas agora vamos abordar a questão de forma diversa. Vamos tomar um complexo conhecido e reagir, nos mesmos, a esse complexo com palavras-estímulo deliberadamente escolhidas, transferindo então o x para a pessoa que está reagindo. Será acaso possível deduzir da maneira pela qual a mesma reage se o complexo escolhido também existe nela? Podem ver os senhores que essa forma de planificação da experiência corresponde exatamente ao método adotado pelo juiz de instrução ao tentar descobrir se o acusado também conhece, sem sua qualidade de agente, alguma coisa de que ele, juiz, tem conhecimento. Wertheimer e Klein, dois discípulos de Hans Gross, professor de direito penal em Praga, parecem ter sido os primeiros a introduzir essa modificação, tão importante para os propósitos dos senhores, na planificação das experiências.
As suas próprias experiências já os levaram a concluir da necessidade de considerar vários pontos nas reações do sujeito para determinar se o mesmo possui o complexo ao qual os senhores estão reagindo com suas palavras-estímulo. Esses pontos são os seguintes: (1) O conteúdo da reação pode ser incomum, o que requer explicação. (2) O tempo de reação pode ser prolongado, pois parece que as palavras-estímulo que tocaram o complexo produzem uma reação apenas após considerável intervalo (intervalo que pode ser muito maior que o tempo de reação comum). (3) Pode haver um engano na reprodução da reação. Os senhores já conhecem o significado desse fato singular. Se o sujeito submeteu-se a uma experiência de associação com uma lista bastante longa de palavras-estímulo, e se depois de um curto espaço de tempo essa lista for-lhe novamente apresentada, ele reproduzirás mesmas reações anteriores, salvo nos casos em que a palavra-estímulo atingiu um complexo; nesse caso é muito provável que o sujeito substitua a sua primeira reação por outra. (4) O fenômeno da perseveração (ou talvez seja melhor empregar o termo ‘efeito secundário’) pode ocorrer. Quando um complexo é despertado, ao ser atingido por uma palavra-estímulo – palavra-estímulo ‘crítica’ -, com freqüência os efeitos disso ( por exemplo, o prolongamento do tempo de reação) persistem e modificam as reações do sujeito ante as próximas palavras-estímulo não-críticas. A presença de várias dessas circunstâncias, ou de todas elas, comprova que o complexo conhecido está presente como fator perturbador na pessoa que está sendo interrogada. Tal perturbação significa que na mente do sujeito o complexo esta catexizado com afeto, sendo capaz de desviar sua atenção da tarefa de reagir; assim, vê-se nessa perturbação uma ‘autotraição psíquica’.
Sei que no momento os senhores se ocupam das potencialidades e das dificuldades desse processo, cuja finalidade e levar o acusado a uma autotraição objetiva. Portanto, gostaria de chamar-lhes a atenção para o fato de que um método semelhante para trazer a tona material psíquico encoberto ou secreto vem sendo utilizado, há mais de uma década, em um outro campo. Pretendo expor-lhes as semelhanças e as diferenças entre as condições desses dois campos.!
O campo que tenho em mente é, na verdade, muito diverso deste dos senhores. Refiro-me a terapia empregada em certas ‘doenças nervosas’ – conhecidas como psiconeuroses – das quais são exemplo a histeria e as idéias obsessivas. O método denomina-se ‘psicanálise’; foi por mim desenvolvido a partir do método ‘catártico’ de terapia, empregado pela primeira vez por Josef Breuer em Viena. Diante do espanto dos senhores, devo estabelecer primeiramente uma analogia entre o criminoso e o histérico. Em ambos defrontamos com um segredo, alguma coisa oculta. Para não incorrer num paradoxo, devo em seguida apontar a diferença. O criminoso conhece e oculta para ele mesmo. Como e possível tal coisa? Ora, através de laboriosas pesquisas, sabemos que todas essas enfermidades resultam do êxito obtido pelo paciente na repressão de certas idéias e lembranças fortemente catexizadas com afeto, assim como dos desejos que delas se originam, de tal modo que não representam qualquer papel em seu pensamento, isto é, não penetram em sua consciência, permanecendo assim desconhecidos para ele. E desse material psíquico reprimido que atormentam o paciente, da mesma forma que uma consciência culpada. Nesse aspecto, portanto, é fundamental a diferença entre o criminoso e o histérico.
A tarefa do terapeuta, entretanto, é a mesma do juiz de instrução. Temos de descobrir o material psíquico oculto, e para isso inventamos vários estratagemas detetivescos, alguns dos quais parece que os senhores, homens da lei, estão prestes a copiar de nós.
Ser-lhes-a profissionalmente interessante saber como nós, os médicos, procedemos na psicanálise. Depois que o paciente nos fez um primeiro relato de sua história, pedimos-lhes que se abandone aos pensamentos que lhe ocorrerem espontaneamente e que diga, sem qualquer reserva crítica, tudo o que lhe vier a cabeça. Como vêem, partimos da hipótese, não compartilhada pelo paciente, de que esses pensamentos espontâneos não serão escolhidos de forma arbitrária, mas determinados pela relação com seu segredo – isto é, com seu ‘complexo’ -, podendo ser encarados como derivados desse complexo. Os senhores observarão que essa hipótese é semelhante a que os auxiliou a interpretar as experiências de associação. Embora tenhamos instruído o paciente a obedecer a regra de comunicar todos os pensamentos que lhe ocorrerem, ele não parece capaz de o fazer. Logo começa a reter pensamentos, dando varias razoes para isso: ou o pensamento não era importante, ou não era pertinente, ou era totalmente sem sentido. A essa altura, insistimos que o revele e o acompanhe, a despeito dessas objeções, pois a presença dessa critica demonstra que o pensamento pertence ao ‘complexo’ que procuramos descobrir. Vemos nesse comportamento do paciente uma manifestação da ‘resistência’ nele presente, que se faz notar durante todo o curso do tratamento. Limitar-me-ei a indicar que o conceito de resistência e da maior importância na compreensão da origem de uma enfermidade assim como do mecanismo de sua cura.
Em suas experiências, os senhores não observam diretamente criticas como essas das idéias espontâneas do sujeito, ao passo que em nossas psicanálises podemos observar todas as indicações de um complexo que se dão a conhecer. Mesmo quando o paciente não mais se atreve a infringir a regra que lhe foi imposta, notamos que de vez em quando hesita ou se cala, ou faz pausas ao reproduzir suas idéias. Cada hesitação dessa espécie é, a nosso ver, uma expressão de sua resistência, e indica uma conexão com o ‘complexo’. Na verdade, nós a encaramos como o sinal mais importante dessa conexão, exatamente como nos casos dos senhores a prolongação análoga do tempo de reação. Habituamo-nos a interpretar desse modo qualquer hesitação, mesmo quando aparentemente o conteúdo da idéia retida nada tem de censurável e quando o paciente afirma reconhecer o motivo de sua hesitação. Via de regra, as pausas que ocorrem na psicanálise são muito mais prolongadas do que as observadas em experiências de reação.
Outro de seus indícios de um complexo – a alteração no conteúdo da reação – também desempenha seu papel na técnica da psicanálise. Em geral também encaramos os menores afastamentos das formas comuns de expressão, em nossos pacientes, como sinal de algum sentido oculto, e nos dispomos a ser ridicularizados por eles ao fazermos interpretações nesse sentido. Na verdade, ficamos a espreita de observações portadoras de qualquer ambigüidade, nas quais transparece, sob uma expressão inocente, um sentido oculto. Não só os pacientes, mas também colegas médicos, que desconhecem a técnica da psicanálise e seus aspectos especiais, não acreditam nesses fatos e nos acusam de exagero e de fazer jogo de palavras; quase sempre, porém, temos razão. Afinal, não e difícil compreender que a única maneira pela qual um segredo cuidadosamente guardado se trai é através de alusões muito sutis ou, quando muito, ambíguas. Por fim, o paciente acostuma-se a nos revelar, por meio do que chamamos de ‘representação indireta’, tudo aquilo de que necessitamos para descobrir o complexo.

O terceiro dos seus indícios de um complexo (enganos – isto é, alterações – na reprodução [da reação]) também é utilizado, embora num setor mais restrito, na técnica da psicanálise. Uma tarefa que freqüentemente se nos apresenta é a interpretação de sonhos – isto é, a tradução do conteúdo lembrado de um sonho para o seu sentido oculto. Algumas vezes não temos certeza por onde devemos começar essa tarefa, e nesses casos empregamos uma regra, descoberta empiricamente, que consiste em fazer com que o sonhador torne a nos contar seu sonho. Nesse mister, em geral ele modifica em alguns pontos sua maneira de expressar-se, embora repetindo com fidelidade todo o resto. E justamente a esses pontos reproduzidos erroneamente, ou então omitidos, que nos prendemos, pois essa imprecisão indica uma conexão com o complexo e promete o melhor acesso ao sentido secreto do sonho.
Se eu agora admitir para os senhores que em psicanálise não se manifesta fenômeno semelhante a perseveração, não devem os senhores concluir que se esgotaram os pontos de concordância que estivemos examinando. Essa aparente divergência deriva-se apenas das condições especiais das suas experiências, pois nelas não se da tempo para que se desenvolva o efeito do complexo. Sua ação apenas começou, quando os senhores distraem a atenção do sujeito com uma nova palavra-estímulo, provavelmente inocente; podem então observar que algumas vezes, apesar de sua interferência, ele continua ocupado com o complexo. Em psicanálise, por outro lado, evitamos tais interferências e mantemos o paciente ocupado com o complexo. Como em nosso trabalho, tudo, por assim dizer, e perseveração, não poderemos observar esse fenômeno como uma ocorrência isolada.
Podemos com justiça afirmar que, em principio, técnicas como as que descrevi permitem-nos tornar o paciente consciente do que nele está reprimido, isto é, do seu segredo, assim removendo a causação psicológica dos sintomas de que ele sofre. Mas antes que os senhores retirem desses resultados positivos conclusões referentes as possibilidades de seu próprio trabalho, examinaremos alguns pontos de divergência entre as situações psicológicas dos dois casos.
Já apontamos a diferença principal: no neurótico o segredo esta oculto de sua própria consciência; no criminoso, o segredo esta oculto apenas dos senhores. No primeiro existe uma autentica ignorância, embora não em todos os sentidos, enquanto no último só existe uma simulação de ignorância. Com essa diferença esta em conexão uma outra que tem grande importância prática. Na psicanálise o paciente ajuda a combater sua resistência através de esforços conscientes, porque espera lucrar com essa investigação, isto é, curar-se. O criminoso, ao contrário, não cooperará com o trabalho dos senhores; se o fizesse, estaria trabalhando contra todo o seu próprio ego. Entretanto, em compensação, em suas investigações apenas os senhores necessitam obter uma convicção objetiva, ao passo que nossa terapia exige que o paciente também adquira essa mesma convicção. Contudo, resta ver ate que ponto essa falta de cooperação do sujeito de seu exame ira dificultar ou alterar o desenrolar do mesmo. Tal situação não pode ser reconstituída em suas experiências num seminário, pois o colega que desempenha o papel de acusado continua, no fim de contas, a ser um companheiro, e os auxiliará, apesar da determinação consciente dele de não se denunciar.
Se examinarem atentamente a comparação das duas situações, verão com clareza que a psicanálise se ocupa com uma forma mais simples e especial de descobrir o que está oculto na mente, ao passo que no trabalho dos senhores a tarefa é mais ampla. Embora não necessitem levar em consideração a diferença de que no caso do psiconeurótico sempre se trata de complexo sexual reprimido (no sentido mais amplo), existe um outro fato que não podem ignorar. O propósito da psicanálise é absolutamente uniforme em todos os casos: é preciso trazer a tona os complexos reprimidos por causa de sentimentos de desprazer e que produzem sinais de resistência ante as tentativas de levá-los a consciência. E como se essa resistência estivesse localizada; surge na fronteira entre o consciente e o inconsciente. Já no caso dos senhores, a resistência origina-se totalmente da consciência, não sendo possível deixar de lado essa diferença. Os senhores, em primeiro lugar, terão de determinar experimentalmente se a resistência consciente denuncia-se exatamente pelos mesmos indícios que a resistência inconsciente. Além disso, em minha opinião os senhores ainda não podem estar seguros de poder interpretar seus indícios objetivos de um complexo como sendo uma ‘resistência’, tal como nos psicoterapeutas fazemos. No caso dos sujeitos de suas experiências, pode acontecer que o complexo atingido seja de acento agradável – embora isso não seja muito freqüente em criminosos -, o que levara a indagar se tal complexo irá produzir a mesma reação que um complexo de acento desagradável.
Gostaria também de assimilar que o teste dos senhores pode estar sujeito a uma complicação que, em virtude de sua própria natureza, não ocorre na psicanálise. Os senhores, em sua investigação, podem ser induzidos a erro por um neurótico que, embora inocente, reage como culpado, devido a um oculto sentimento de culpa já existente nele e que se apodera da acusação. Não julguem essa possibilidade como uma investigação ociosa; lembrem-se que isso pode ser observado com freqüência na infância. Muitas vezes uma criança acusada de uma transgressão nega veementemente sua culpa, embora chore como um criminoso desmascarado. Talvez pensem que a criança mentiu ao afirmar sua inocência, mas isto nem sempre e verdade. Pode ser que, embora não tenha cometido uma falta de que a acusam, tenha cometido uma outra que permanece ignorada e que não lhe foi imputada. Assim, fala a verdade ao negar ser culpada da primeira transgressão, ao mesmo tempo que revela seu sentimento de culpa proveniente da outra falta. Nesse particular, como em muitos outros pontos, o adulto neurótico comporta-se exatamente como uma criança. Muitas pessoas são assim, e ainda é muito discutível se a sua técnica lograra distinguir tais indivíduos auto-acusadores daqueles que são realmente culpados. Finalmente, mais uma questão. Os senhores sabem que, pelas normas do direito penal, é vedado sujeitar o acusado a qualquer medida que o tome de surpresa; portanto, ele devera ter sido advertido de que poderá denunciar-se nessa experiência. Isso leva a perguntar se podem ser esperadas as mesmas reações tanto quando a atenção do sujeito esta dirigida para o complexo como quando esta afastada desse mesmo complexo, e a que ponto a intenção de ocultar alguma coisa pode afetar os modos de reação em pessoas diferentes.
E justamente devido a diversidade de situações que subjazem ao trabalho de investigação dos senhores, que a psicologia se interessa tão vivamente por seus resultados. Gostaria de pedir-lhes que não se desiludissem prematuramente de sua utilidade pratica. Embora meu campo esteja muito afastado da prática judicial, talvez me permitam mais uma sugestão. Por mais indispensáveis que sejam essas experiências realizadas em seminários, tanto como uma preparação quanto como formulação de problemas, os senhores não poderão jamais reproduzir a mesma situação psicológica existente no interrogatório do acusado numa investigação criminal. Essas experiências serão simples exercícios simulados, e nunca poderão fundamentar uma aplicação pratica em casos criminais. Se insistirmos em tentar essa aplicação, um outro caminho se nos apresenta: consigam que lhes seja permitido – ou mesmo imposto como um dever – realizar tais investigações, durante um certo numero de anos, em cada processo criminal real, impedindo que os seus resultados venham a influenciar o veredicto do tribunal. Na verdade, seria preferível que o tribunal não fosse informado da conclusão inferida pelos senhores a partir da investigação relativa a questão da culpa do acusado. Após alguns anos de compilação e comparação dos resultados assim obtidos, quaisquer duvidas sobre a utilidade desse método psicológico de investigação serão esclarecidas. Sei, naturalmente, que a concretização de semelhante proposta não depende somente dos senhores, nem de seus ilustres professores.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

KANT COM SADE - JACQUES LACAN

“Este texto deveria servir de prefácio para A filosofia na alcova. Foi publicado na revista Critique (no. 191, abril de 1963), sob a forma de uma resenha da edição das obras de Sade a que era destinado. Ed. du Cercle du Livre Precieux, 1963, 15 vols.”

Que obra de Sade antecipa Freud, nem que seja no tocante ao catalogo das perversões, e uma estupidez que se rediz nos textos e cuja responsabilidade, como sempre, cabe aos especialistas.
Ao contrario, sustentamos que a alcova sadiana iguala-se aos lugares dos quais as escolas da antiga filosofia retiraram seu nome: Academia, Liceu, Stoá. Aqui como lá, prepara-se a ciência retificando a posição da ética. Nisso,sim, opera-se um aplanamento que tem que caminhar cem anos nas profundezas do gosto para que a via de Freud seja viável. Contem mais sessenta para que digamos o porquê de tudo isso.
Se Freud pôde enunciar seu princípio do prazer sem sequer ter tido que se preocupar em marcar o que o distingue de sua função na ética tradicional, e sem correr maior risco de que ele fosse ouvido, num eco ao preconceito inconteste de dois milênios, como lembrando a atração que preordena a criatura a seu bem, com a psicologia que se inscreve em diversos mitos de benevolência, só podemos render homenagem a ascensão insinuante, ao longo do século XIX, do tema da “felicidade no mal”.
Aqui, Sade é o passo inaugural de uma subversão da qual, por mais picante que isso pareça, considerada a frieza desse homem, Kant é o ponto decisivo, e jamais identificado, ao que saibamos, como tal.
A filosofia na alcova surge oito anos depois da Critica da razão prática. Se, depois de ter visto que é compatível com esta, demonstrarmos que ela a completa, diremos que ela fornece a verdade da Crítica.
Do mesmo modo, os postulados com que esta última se conclui – o álibi da imortalidade em que ela recalca o progresso, a santidade e até o amor, tudo o que possa vir de satisfatório da lei, e a garantia que lhe é necessária, de uma vontade, para o qual o objeto a que a lei se refere seja inteligível, perdendo ate mesmo o apoio raso da função de utilidade em que Kant os confinava – restituem a obra seu diamante de subversão. Com o que se explica a incrível exaltação que dele recebe todo leitor não prevenido pelo fervor acadêmico. Efeito que, mesmo tendo sido percebido, em nada será prejudicado.
Que fiquemos bem no mal, ou, se preferirmos, que o eterno feminino não eleve as alturas, poderíamos dizer que essa virada foi feita com base numa observação filológica: nominalmente, que o que fora aceito até então, que ficamos bem no bem, repousa numa homonímia que a língua alemã não admite: Man fuhlt sich wohl im Guten. E dessa maneira que Kant nos introduz em sua Razão prática.
O principio do prazer é a lei do bem que é o wohl, digamos, o bem-estar. Na prática, ele submeteria o sujeito ao mesmo encadeamento fenomênico que termina seus objetos. A objeção que Kant faz a isso é, segundo seu estilo rigoroso, intrínseca. Nenhum fenômeno pode prevalecer-se de uma relação constante com o prazer. Não se pode enunciar nenhuma lei de tal bem, portanto, que defina como vontade o sujeito que a introduz em sua prática.
Assim, a investigação do bem seria um impasse, se ele não renascesse – das Gute, o bem que é objeto da lei moral. Ele nos é apontado pela experiência que temos de ouvir dentro de nós ordens cujo imperativo se apresenta como categórico, ou seja, incondicional.
Note-se que esse bem só é suposto como o Bem por se propor, como acabamos de dizer, a despeito de qualquer objeto que lhe imponha sua condição, por se opor a seja qual for dos bens incertos que esses objetos possam trazer, numa equivalência de principio, para se impor como superior por seu valor universal. Assim, seu peso só aparece por excluir, pulsão ou sentimento, tudo aquilo de que o sujeito pode padecer em seu interesse por um objeto, o que por isso Kant designa como “patológico”.
Logo, seria por uma indução baseada nesse efeito que nele encontraríamos o Bem Supremo dos Antigos, se Kant, como é seu costume, não tivesse ainda esclarecido que esse Bem não age como contrapeso, mas , por assim dizer, como antipeso, isto é, pela subtração de peso que ele produz no efeito de amor-próprio (Selbstsucht) que o sujeito sente como satisfação (arrogantia) de seus prazeres, porquanto um olhar para esse Bem torna esses prazeres menos respeitáveis. Textual, assim como sugestivo.
Retenhamos o paradoxo de que é no momento em que o sujeito já não tem diante de si objeto algum que ele encontra uma lei, a qual não tem outro fenômeno senão alguma coisa já significante, que é obtida de uma voz na consciência e que, ao se articular nela como máxima, propõe ali a ordem de uma razão puramente prática, ou vontade.
Para que essa máxima sirva de lei, é necessário e suficiente que, na experiência de tal razão, ela possa ser aceita como universal por direito da lógica. O que, lembremos sobre esse direito, não quer dizer que ela se imponha a todos, mas que valha para todos os casos, ou, melhor dizendo, que não valha em nenhum caso, se não valer em todos.
Mas, devendo essa experiência ser de razão, pura ainda que prática, ela só pode ter êxito em relação a máximas de um tipo que permita uma apreensão analítica em sua dedução.
Esse tipo é ilustrado pela fidelidade que se impõe na devolução de um depósito, repousando a prática do depósito nos dois ouvidos que, para constituírem o depositário, tem que se fechar a qualquer condição que se oponha a essa fidelidade. Em outras palavras, não há depósito sem depositário a altura de sua incumbência.
Poder-se-ia sentir a necessidade de um fundamento mais sintético, mesmo nesse caso evidente. Ilustremos sua falta, por nosso turno, ainda que ao preço de uma irreverência, através de uma máxima retocada do pai Ubu: “Viva a Polônia, pois, se não houvesse a Polônia, não haveria poloneses.”
Não vá ninguém aqui duvidar, por alguma lentidão ou até emotividade, de nosso apego a um liberdade sem a qual os povos se enlutam. Mas sua motivação, aqui analítica, apesar de irrefutável, presta-se a que o indefectível seja temperado pela observação de que os poloneses fizeram-se distinguir desde sempre por uma notável resistência aos eclipses da Polônia, e mesmo a deploração que se seguia.
Deparamo-nos com o que leva Kant a ter boas razoes para exprimir o pesar de que, a experiência da lei moral, nenhuma intuição ofereça um objeto fenomênico.
Havemos de convir que, ao longo de toda a Crítica, esse objeto se furta. Mas é adivinhado pelo rastro deixado pela implacável seqüência trazida por Kant para demonstrar sua esquiva, e da qual o livro extrai esse erotismo, sem duvida inocente, mas perceptível, cuja solida fundamentação iremos mostrar pela natureza do referido objeto.
Eis por que rogamos que se detenham neste exato ponto de nossas linhas, para retomá-las posteriormente, todos aqueles de nossos leitores que estiverem, no tocante a Crítica, numa relação ainda virgem, por não a haverem lido. Que verifiquem se ela tem mesmo o efeito que afirmamos, e ao menos lhes prometemos o prazer que é transmitido por essa façanha.
Os outros nos acompanharão agora na Filosofia na alcova, ou pelo menos em sua leitura.
Panfleto, revela-se ela, porém dramático, onde uma iluminação cênica permite ao diálogo e aos gestos prosseguirem até os limites do imaginável: essa iluminação apaga-se por um momento para dar lugar, panfleto dentro de panfleto, a um libelo intitulado: “Franceses, mais um esforço, se quereis ser republicanos...”
O que aí se enuncia é comumente entendido, se não apreciado, como uma mistificação. Não é preciso ser alertado pela reconhecida importância do sonho dentro do sonho, por apontar uma relação mais próxima do real, para ver no desprezo, no caso, pela atualidade histórica, uma indicação do mesmo tipo. Ela é patente, e melhor faremos em examiná-la duas vezes.
Digamos que a eficácia do libelo é dada na máxima que propõe ao gozo sua regra, insólita ao se dar o direito, a maneira de Kant, de se afirmar como regra universal. Enunciemos a máxima: “Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei esse direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar.”
Essa é a regra a qual se pretende submeter a vontade de todos, por menos que uma sociedade a implemente através de sua coerção.
Humor negro, na melhor das hipóteses, para qualquer ser sensato, ao tomar a partir da máxima para o consentimento que nela se supõe.
Mas, afora o fato de que, se há uma coisa a que nos habituou a dedução da Critica, foi a distinguir o racional do tipo de sensatez que não passa de um recurso confuso ao patológico, sabemos agora que o humor é o trânsfuga na comicidade da própria função do “Supereu” – o que, para animar com uma metamorfose essa instância psicanalítica e arrancá-la do retorno de obscurantismo em que a empregam nossos contemporâneos, pode igualmente apurar o sabor da prova kantiana da regra universal com a pitada de sal que lhe falta.
Assim, não somos nos incitados a levar mais a sério aquilo que se nos apresenta como não o sendo em absoluto? Não perguntaremos, é claro, se é necessário nem suficiente que uma sociedade sancione um direito ao gozo, permitindo a todos valerem-se dele, para que a partir daí sua máxima pretexte o imperativo da lei moral.
Nenhuma legalidade positiva pode decidir se essa máxima é capaz de assumir a categoria de regra universal, uma vez que, do mesmo modo, essa categoria pode eventualmente opô-la a todas.
Essa não é uma questão que se decida simplesmente ao imaginá-la, e a extensão a todos do direito que a máxima invoca não é aqui o que esta em pauta.
Não se demonstraria nisso, na melhor das hipóteses, senão uma possibilidade do geral, que não é o universal, o qual toma as coisas como estas se fundamentam, e não como se dispõem.
E não se pode omitir esta oportunidade de denunciar a exorbitância do papel conferido ao momento da reciprocidade nas estruturas, sobretudo subjetivas, que a repelem intrinsicamente.
A reciprocidade, relação reversível, por se estabelecer numa linha simples que une dois sujeitos que, por sua posição “recíproca”, tomam essa relação como equivalente, dificilmente consegue colocar-se como o tempo lógico de uma travessia do sujeito em sua relação com o significante, e muito menos como etapa de algum desenvolvimento, aceitável ou não como psíquico (onde a criança sempre tem as costas largas para lhe aplicarem a intenção pedagógica).
Seja como for, já é um ponto a ser conferido a nossa máxima que ela possa servir de paradigma de um enunciado que exclui como tal a reciprocidade (a reciprocidade, e não a incumbência de revide).
Qualquer juízo sobre a ordem infame que entronizaria nossa máxima, portanto, é indiferente nessa matéria, que consiste em lhe reconhecer ou em lhe recusar o caráter de uma regra aceitável como universal na moral, a moral reconhecida desde Kant como uma pratica incondicional da razão.
E preciso, evidentemente, reconhecer-lhe esse caráter, pela simples razão de que seu mero anuncio (seu querigma) tem a virtude de instaurar, ao mesmo tempo, quer a rejeição radical do patológico, de qualquer consideração por um bem, uma paixão ou mesmo uma compaixão, ou seja, a rejeição pela qual Kant liberta o campo da lei moral, quer a forma dessa lei, que é também sua única substancia, na medida em que a vontade só se obriga a ela ao rejeitar de sua prática toda razão que não seja de sua própria máxima.
Certamente, esses dois imperativos, entre os quais pode ser esticada até o estilhaçamento da vida a experiência moral, são-nos impostos, no paradoxo sadiano, como ao Outro, e não como a nós mesmos.
Mas ai só há distância a primeira vista, pois, de maneira latente, o imperativo moral não faz menos que isso, já que é a partir do Outro que sua ordem nos solicita.
Aqui percebemos revelar-se nuamente aquilo em que nos introduziria a parodia, acima citada, do universal evidente do dever do depositário, ou seja, que a bipolaridade pela qual se instaura a Lei moral não e dada alem da fenda do sujeito operada por qualquer intervenção do significante: nomeadamente, do sujeito da enunciação para o sujeito do enunciado.
A lei moral não tem outro principio. Mas é preciso que isso fique patente, a menos que nos prestemos a mistificação que a piada do “Viva a Polônia!” faz sentir.
Nesse aspecto, a máxima sadiana é, por se pronunciar pela boca do Outro, mais honesta do que o recurso a voz interior, já que desmascara a fenda, comumente escamoteada, do sujeito.
O sujeito da enunciação, distingue-se dela tão claramente quanto do “Viva a Polônia”, onde apenas se isola o que sua manifestação sempre evoca de fun.
Basta que nos reportemos, para confirmar essa perspectiva, a doutrina em que o próprio Sade fundamenta o império de seu principio. Trata-se da dos direitos do homem. E pelo fato de que nenhum homem pode ser de outro homem propriedade, nem de algum modo seu apanágio, que não se pode disso fazer um pretexto para suspender o direito de todos de usufruírem dele, cada qual a seu gosto. O que ele sofrera de coerção não e tanto por violência, mas por principio, e a dificuldade para quem faz dela uma máxima esta menos em fazê-lo consentir nisso do que em pronunciá-la em seu lugar.
Portanto, é realmente o Outro como livre, e a liberdade do Outro que o discurso do direito ao gozo instaura como sujeito de sua enunciação, e não de uma maneira que difira do tu és que se evoca do fundo mortífero de qualquer imperativo.
Mas esse discurso e não menos determinante para o sujeito do enunciado, ao provocá-lo a cada endereçamento de seu conteúdo equivoco, já que o gozo, ao se confessar impudentemente em suas próprias palavras, faz-se pólo de uma dupla em que o outro está no fosso que ele já perfura no lugar do Outro, para ali erguer a cruz da experiência sadiana.
Adiemos falar de sua mola, para lembrar que a dor, que projeta aqui sua promessa de ignomínia, só faz Kant entre as conotações da experiência moral. Ver-se-á melhor o que ela vale para a experiência sadiana abordando-a pelo que haveria de desconcertante no artifício dos estóicos a seu respeito: o desprezo.
Imaginemos uma réplica de Epícteto na experiência sadiana: “Vê, tu a quebraste”, diz ele, apontando para sua perna. Acaso reduzir o gozo a miséria desse efeito em que tropeça sua busca não e transformá-lo em horror?
O que mostra que o gozo é aquilo pelo qual se modifica a experiência sadiana. Pois ele só projeta monopolizar uma vontade ao já havê-la atravessado para se instalar no mais intimo do sujeito que ele provoca mais além, ao atingir seu pudor.
Pois o pudor é ambiceptivo das conjunturas do ser: entre dois, o despudor de um constitui por si só a violação do pudor do outro. Canal que justifica, se necessário fosse, o que logo de inicio produzimos da asserção, no lugar do Outro, do sujeito.
Interroguemos esse gozo, precário por estar preso, no Outro, a um eco que ele só suscita ao aboli-lo pouco a pouco, por lhe juntar o intolerável. Não nos parece, afinal, que ele só se exalta por si mesmo, a maneira de uma outra e horrível liberdade?
Da mesma forma veremos descobrir-se o terceiro termo que, no dizer de Kant, faltaria na experiência moral. Trata-se do objeto, o qual, a fim de garanti-lo para a vontade no cumprimento da Lei, ele é obrigado a remeter ao impensável da Coisa-em-si. Esse objeto, acaso não o vemos decaído de sua inacessibilidade, na experiência sadiana, e revelado como o Ser-ai, Dasein, do agente do tormento?
Não sem manter a opacidade do transcendente. Pois esse objeto é estranhamente separado do sujeito. Observe-se que o arauto da máxima não precisa aqui ser mais do que um ponto de emissão. Pode ser uma voz no radio, lembrando o alardeado direito ao suplemento de esforço no qual, ante apelo de Sade, os franceses teriam consentido, transformada a máxima, para sua Republica regenerada, em Lei orgânica.
Certos fenômenos da voz, nomeadamente os da psicose, tem mesmo essa faceta do objeto. E a psicanálise não estava longe, sem sua aurora, de referi-los a voz da consciência.
Vemos o que motiva Kant a considerar que esse objeto se furta a qualquer determinação da estética transcendental, embora não deixe de aparecer em alguma saliência do véu fenomênico, não sendo sem eira nem beira, nem sem tempo na intuição, nem sem modo que se situe no irreal, nem sem efeito na realidade: não é só que a fenomenologia de Kant falhe aqui, mas é que a voz, mesmo louca, impõe a idéia do sujeito, e não convém que o objeto da lei sugira uma malignidade do Deus real.
Seguramente, o cristianismo educou os homens a serem pouco atentos ao aspecto do gozo de Deus, e é nisso que Kant impõe seu voluntarismo da Lei-pela-Lei, que remete, por assim dizer, a ataraxia da experiência estóica. Podemos pensar que Kant esta sob a pressão daquilo que ouve muito de perto, não de Sade, mas de um certo místico de sua região, no suspiro que sufoca o que ele vislumbra para-alem, por ter visto que seu Deus e desprovido de rosto: Grimmigkeit? Sade diz: Ser-supremo-em-maldade.
Mas, xô! Schwarmereien, negros enxames, nós vos enxotamos para voltar a função da presença na fantasia sadiana.
Essa fantasia tem uma estrutura que reencontramos mais adiante e na qual o objeto é apenas um dos termos onde pode extinguir-se a busca que ela representa. Quando o gozo se petrifica ai, ele se torna o fetiche negro em que se reconhece a forma efetivamente oferecida em um certo tempo e lugar, ainda nos dias atuais, para que nela se adore seu deus.
E isso que advém do executor na experiência sádica, quando sua presença se resume, em última instância, a não ser mais do que seu instrumento.
Mas o fixar-se seu gozo nela não o livra da humildade de um ato em que ele não pode entrar senão como ser carnal e, até a medula, servo do prazer.
Duplicação que não reflete nem recíproca (por que não mutuaria ela?) a que se operou no Outro pelas duas alteridades do sujeito.
O desejo, que é o fautor dessa fenda do sujeito, sem duvida se conformaria em se dizer vontade doe gozo. Mas essa denominação não o tornaria mais digno da vontade que ele invoca no Outro, provocando-a ate o extremo de sua separação de seu pathos, pois, para fazê-lo, ele já começa derrotado, fadado a impotência.
E que ele começa submetido ao prazer, cuja lei e fazê-lo girar em sua meta cada vez mais repentinamente. Homeostase sempre encontrada depressa demais pelo vivente, no limiar mais baixo da tensão em que ele vegeta. E sempre precoce a queda da asa pela qual lhe é dado poder assinar a reprodução de sua forma. Asa que, no entanto, deve aqui ser elevada a função de figurar o laço do sexo com a morte. Deixemos repousar sob seu véu eleusino.
Daquela vontade rival estimulante, portanto, o prazer já não é aqui senão cúmplice precário. No momento mesmo do gozo, estaria simplesmente fora de jogo, se a fantasia não interviesse para sustentá-lo pela própria discórdia em que ele sucumbe.
Para dizê-lo de outra maneira, a fantasia torna o prazer apropriado ao desejo. E repitamos que desejo não e sujeito, por não ser indicável em parte alguma num significante da demanda, seja ela qual for, por não ser articulável nele, ainda que nele se articule.
A captura do prazer na fantasia é aqui fácil de apreender.
A experiência fisiológica demonstra que a dor é de ciclo mais longo, sob todos os aspectos, do que o prazer, já que uma estimulação a provoca no ponto em que o prazer acaba. Por mais prolongada que a suponhamos, no entanto, como o prazer ela tem seu fim: é o esvaecimento do sujeito.
Esse e o dado vital do qual a fantasia vai se servir para fixar, no sensível da experiência sadiana, o desejo que aparece em seu agente.
A fantasia é definida pela forma mais geral que recebe de uma álgebra construída por nos para esse fim, ou seja, a formula (S<>a), onde a punção <> se lê “desejo de”, a ser lido da mesma forma no sentido inverso, introduzindo uma identidade que se fundamenta numa não-reciprocidade absoluta. (Relação coextensiva as formações do sujeito).
Seja como for, essa forma revela-se particularmente fácil de ser avivada no presente caso. Articula nele, de fato, o prazer a que veio substituir-se um instrumento (o objeto a da formula) na espécie de divisão continua do sujeito que é ordenada pela experiência.
O que só se consegue se seu agente aparente se cristaliza na rigidez do objeto, no intuito de que sua divisão de sujeito lhe seja totalmente remetida pelo Outro.
Uma estrutura quadripartite, desde o inconsciente, é sempre exigível na construção de uma ordenação subjetiva. O que é satisfeito por nossos esquemas didáticos.
Modulemos a fantasia sadiana com um novo esquema dentre esses:

ESQUEMA 1:

A linha inferior satisfaz a ordem da fantasia, na medida em que esta sustenta a utopia do desejo.
A linha sinuosa inscreve a cadeia que permite um calculo do sujeito. E orientada, e sua orientação constitui ali uma ordem em que o aparecimento do objeto a no lugar da causa se esclarece pelo caráter universal de sua relação com a categoria da causalidade, o qual, ao forçar o limiar da dedução transcendental de Kant, instauraria no eixo do impuro uma nova Critica da Razão.
Resta o V, que, estando por cima nesse lugar, parece impor a vontade que domina a historia toda, mas cuja forma também evoca a reunião do que ele divide, mantendo-o unido por um vel, isto é, permitindo escolher o que fará o S (S barrado) da razão prática com o S, sujeito bruto do prazer (sujeito “patológico”).
E realmente com a vontade de Kant, portanto, que se encontra no lugar dessa vontade, que só se pode dizer de gozo explicando que se trata do sujeito reconstituído da alienação, ao preço de ser apenas o instrumento do gozo. Assim, Kant, por ser questionado “com Sade”, ou seja, com Sade fazendo as vezes, tanto para nosso pensamento quanto em seu sadismo, de instrumento, confessa o que esta incluído no sentido do “Que quer ele?” que doravante não falta a ninguém.
Sirva-nos agora desse grafo, em sua forma sucinta, para nos acharmos na floresta da fantasia, que Sade, em sua obra, desenvolve num plano de sistema.
Veremos que há uma estática da fantasia pela qual o ponto de afânise, suposto em S (barrado), deve ser, na imaginação, infinitamente adiado. Daí a sobrevivência pouco crível de que Sade dota as vitimas das sevicias e tribulações que lhes inflige em sua fabula. Nesta, o momento da morte delas só parece motivado pela necessidade de substituí-las numa combinatória, a única que exige sua multiplicidade. Única (Justine) ou múltipla, a vitima tem a monotonia da relação do sujeito com o significante, na qual, a confiarmos em nosso grafo, ela consiste. Por ser objeto a da fantasia, situando-se no real, a tropa dos atormentadores (vide Juliette) pode ter mais variedade.
A exigência, na aparência das vitimas, de uma beleza sempre classificadora de incomparável (e, além disso, inalterável, cf. supra) é uma outra história, da qual não nos podemos livrar com alguns postulados banais, forjados as pressas, sobre a atração sexual. Neles veremos, antes, a caricatura daquilo que demonstramos, na tragédia, sobre a função da beleza: barreira extrema que proíbe o acesso a um horror fundamental. Pensemos na Antígona de Sófocles e no momento em que ela eclode o Eros aníkhate mákan.
Esta digressão não seria admissível aqui, se não introduzisse o que se pode chamar de discordância das duas mortes, introduzida pela existência da condenação. O entre-duas-mortes do para-aquém é essencial para nos mostrar que não e outra coisa senão aquele em que se sustenta o para-além.
Vemo-lo com clareza no paradoxo constituído em Sade por sua postura perante o inferno. A idéia do inferno, cem vezes refutada por ele e amaldiçoada como meio de sujeição da tirania religiosa, volta curiosamente a motivar os gestos de um de seus heróis, ainda que dos mais apaixonados pela subversão libertina em sua forma racional, a saber, o hediondo Saint-Fond. As práticas com que ele impõe a suas vitimas o suplicio derradeiro baseiam-se na crença de que ele pode converte-lo para elas, no para-alem, no tormento eterno. Conduta da qual, por seu relativo encobrimento no tocante a seus cúmplices, e crença da qual, por seu embaraço em se justificar por ela, o personagem sublinha a autenticidade. Alias, ouvimo-lo, a algumas páginas dali, tentar torná-las plausíveis em seu discurso, através do mito de uma atração que tende a reunir as “partículas do mal”.
Essa incoerência em Sade, negligenciada pelos sadistas, também eles um pouco hagiógrafos, se esclareceria ao destacarmos em sua pluma o termo, formalmente expresso, segunda morte. A segurança que ele espera desta contra a horrível rotina da natureza (aquela que, ouvindo-o em outro texto, o crime tem a função de romper) exigiria que ela chegasse a um extremo em que reduplica o desvanecimento do sujeito: do qual ele faz um símbolo, no anseio de que os elementos decompostos de nosso corpo, para não voltarem a se reunir, sejam, eles mesmos, aniquilados.
Que Freud, no entanto, reconheça o dinamismo desse anseio em alguns casos de sua pratica, e que lhe reduza a função muito claramente, talvez com clareza demais, a uma analogia com o principio do prazer, relacionando-a com uma “pulsão” (demanda) “de morte”, eis aquilo a que se recusaria o consentimento, especialmente o de alguém que nem sequer pôde aprender, na técnica que deve a Freud, bem como em suas lições, que a linguagem tem outro efeito que não o utilitário, ou o de exibição, quando muito. Freud lhe é de serventia nos congressos.
Sem duvida, aos olhos de tais fantoches, os milhões de homens para quem a dor de existir é a evidência original, no que tange as práticas de salvação que eles baseiam em sua fé no Buda, são subdesenvolvidos, ou melhor, assim como para Buloz, diretor da Revue des Deux Mondes , que o disse sem rodeios a Renan, ao rejeitar seu artigo sobre o budismo – isso segundo Burnouf, ou seja, em algum ponto dos anos cinqüenta (do século passado) -, para eles “não é possível que haja pessoas tão burras assim”.
Pois então não ouviram eles, se crêem ter um ouvido melhor do que os outros psiquiatras, essa dor em estado puro modelar a canção de alguns doentes, denominados de melancólicos?
Nem colheram um daqueles sonhos com que o sonhador fica transtornado,por ter, na condição sentida de um renascimento inesgotável, estado no âmago da dor de existir?
Ou então, para pôr em seu devido lugar aqueles tormentos do inferno que nunca puderam ser imaginados para-alem daquilo cuja manutenção tradicional os homens garantem neste mundo, porventura havemos de suplicar-lhes que pensem em nossa vida cotidiana como devendo ser eterna?
Nada se deve esperar, nem mesmo desespero, de uma besteira, em suma sociológica, e que só registramos para que, do lado de fora, não se espere nada demais, no que concerne a Sade, dos círculos em que se tem uma experiência mais garantida das formas do sadismo.
Notadamente quanto ao que se difunde de equivoco no tocante a relação de reversão que uniria o sadismo a uma idéia sobre o masoquismo, que de fora não se imagina a misturada que essa idéia suporta. Mais vale encontrar nisso o valor de um historinha, famosa, sobre a exploração do homem pelo homem – definição do capitalismo, como se sabe. Mas, é o socialismo? E o contrário.
Humor involuntário, eis o tom com que vigora uma certa difusão da psicanálise. Ele fascina porque, ainda por cima, passa despercebido.
Mas há doutrinários que se esforçam por uma roupagem mais bem cuidada. E o caso aplicado existencialista, ou, mais sobriamente, do ready-made personalista. Isso resulta emq eu o sádico “nega a existência do Outro”. E justamente, havemos de admitir, o que acaba de aparecer em nossa analise.
Seguindo-a, não será, antes, que o sadismo rechaça para o Outro a dor de existir, mas sem ver que, através disso, ele mesmo se transmuda num “objeto eterno”, se o Sr. Whitehead tiver a bondade de nos ceder novamente esse termo?
Mas, por que não nos seria ele um bem comum? Não é esse - redenção , alma imortal – o status do cristão? Nem tão depressa, para também não ir longe demais.
Constatemos, antes, que Sade não e tapeado por sua fantasia, na medida em que o rigor de seu pensamento passa para a lógica de sua vida.
Pois proponhamos aqui um dever a nossos leitores.
A delegação que Sade faz a todos, em sua Republica, do direito ao gozo, não se traduz em nosso grafo por nenhuma reversão de simetria num eixo ou centro qualquer, mas apenas por uma rotação de um quarto de circulo, ou seja:

ESQUEMA 2:

V, a vontade de gozo, já não permite contestar sua natureza por passar para a coerção moral implacavelmente exercida pela Presidenta de Montreuil sobre o sujeito cuja divisão, como se vê, não exige ser reunida num só corpo.
(Note-se que somente o Primeiro Cônsul ratifica essa divisão, por seu efeito de alienação administrativamente confirmado.)
Essa divisão, aqui, reúne como S, o sujeito bruto que encarna o heroísmo próprio do patológico, sob a forma da fidelidade a Sade que atestarão aqueles que a principio foram complacentes com seus excessos, como sua mulher, sua cunhada – seu lacaio, por que não? -, outros devotamentos apagados de sua historia.
Para Sade, o S (barrado), vemos enfim que, como sujeito, e em seu desaparecimento que ele assina, havendo as coisas chegado a seu termo. Sade desaparece, sem que, incrivelmente, menos ainda do que de Shakespeare, nada nos reste de sua imagem, depois de haver ordenado em seu testamento que um matagal apagasse até mesmo o vestígio na pedra de um nome que selasse seu destino.
Mé phynai, não ter nascido: sua maldição, menos santa que a de Édipo, não o leva para junto dos Deuses, mas se eterniza:
(a) Na obra, da qual, de uma penada, Jules Janin nos mostra a flutuação insubmersível, fazendo-a saudar livros que a mascaram, ao se acreditar nele, em qualquer biblioteca digna, como são João Crisóstomo ou os Pensamentos.
Que obra maçante essa de Sade, a ouvi-los, sim, entendendo-se as mil maravilhas, senhor juiz e senhor acadêmico, mas sempre suficiente para fazer, um através do outro, um e outro, um dentro do outro, com que se perturbem.
E que uma fantasia, com efeito, é bastante perturbadora, pois não se sabe onde situá-la, por ela estar ali, inteira, em uma natureza de fantasia que só tem realidade de discurso e que nada espera de seus poderes, mas que lhes pede, isto sim, que se ponham em dia com seus desejos.
Que o leitor se aproxime agora, com reverencia, das figuras exemplares que, na alcova sadiana, se agenciam e se desfazem num rito de feira. “A postura se rompe.”
Pausa cerimonial, escansão sagrada.
Saudem ali os objetos da lei, dos quais não saberão nada, na impossibilidade de saber como se situarem nos desejos de que eles são causa.
E bom ser caridoso
Mas, com quem? Essa e a questão.

Um certo Sr. Verdoux a resolvia todos os dias, pondo mulheres no forno até ele mesmo ser condenado a cadeira elétrica. Achava que os seus desejavam viver com conforto. Mais esclarecido, o Buda se dava a devorar aqueles que não conhecem que não conhecem o caminho. Apesar desses exemplos eminentes, que bem poderiam basear-se apenas num mal-entendido (não é certo que a tigreza goste de comer Buda), a abnegação do Sr. Verdoux provinha de um erro que justifica a severidade, já que um grãozinho de Critica, que não custa caro, tê-lo-ia evitado. Ninguém duvida que a pratica da Razão teria sido mais econômica, assim como mais legal, mesmo que seus familiares tivessem tido que passar um pouco de fome.
“Mas, o que são”, dirão vocês, “todas essas metáforas, e por quê...?”
As moléculas, monstruosas ao se reunirem aqui para um gozo espinteriano, despertam-nos para a existência de outros mais comuns de encontrar na vida, cujos equívocos acabamos de evocar. Subitamente mais respeitáveis do que estas, por se afigurarem mais puros em suas valências.
Desejos... os únicos a ligá-las aqui, e exaltados por tornarem patente que o desejo e o desejo do Outro.
Se nos leram ate este ponto, sabem que o desejo, mais exatamente, apóia-se numa fantasia da qual pelo menos um pé está no Outro, e justamente o pé que importa, mesmo e sobretudo se vier a claudicar.
O objeto, como mostramos na experiência freudiana, objeto do desejo, ali onde se propõe desnudo, é apenas a escoria de uma fantasia em que o sujeito não se refaz de sua sincope. E um caso de mecrofilia.
Ele vacila completamente ao sujeito, no caso geral.
E nisso que e tão inapreensível quanto, segundo Kant, o objeto da Lei. Mas desponta aqui a suspeita que essa aproximação impõe. Não representa aqui a suspeita que essa aproximação impõe. Não representa, a lei moral o desejo, na situação em que já não e o sujeito e, sim, o objeto que falta?
Não parece o sujeito, o único que esta ali como presença, sob a forma da voz do lado de dentro, quase sempre sem pé nem cabeça no que diz, não parece ele significar-se suficientemente pela barra com que o abastarda o significante S (barrado), solto da fantasia (S<>a) da qual deriva, nos dois sentidos desse termo?
Se esse símbolo cede o lugar ao imperativo interior com que se deslumbra Kant, ele nos abre os olhos para o acaso que, da Lei do desejo, faz mais do que lhes mascarar o objeto, tanto para uma quanto para o outro.
Trata-se do acaso em que entra em jogo o equivoco da palavra liberdade: da qual, ao se apoderar, o moralista sempre nos parece ainda mais impudente do que o imprudente.
Mas, escutemos o próprio Kant ilustrá-lo mais uma vez: “Suponham”, diz ele, “alguém que alegue não poder resistir a sua paixão quando o objeto amado e a oportunidade se apresentam; será que, se lhe houvessem erguido um cadafalso em frente a casa em que ele encontra essa oportunidade, para nele o acorrentar tão logo houvesse saciado seu desejo, ainda lhe seria impossível resistir a este? Não é difícil adivinhar o que ele responderia. Mas, se seu príncipe lhe ordenasse, sob pena de morte, prestar falso testemunho contra um homem de bem a quem ele quisesse arruinar por meio de um pretexto capcioso, consideraria ele possível, em tal caso, vencer seu amor a vida, por maior que pudesse ser? Se o faria ou não, eis o que ele talvez não ousasse decidir, mas, que isso lhe é possível, eis no que convirá sem hesitar. Ele julga, portanto, que pode fazer algo por ter a consciência do dever, e assim reconhece em si mesmo a liberdade que, sem a lei moral, ser-lhe-ia para sempre desconhecida.”
A primeira resposta aqui, supostamente de um sujeito sobre quem de saída nos advertem que, nele, muita coisa acontece em palavras, faz-nos pensar que não nos fornecem sua letra, quando é justamente isso que importa. E que, para redigi-la, preferem remeter-nos a um personagem cujo pudor sempre correríamos o risco de ofender, pois ele jamais faria essas coisas. Trata-se, noutras palavras, do burguês ideal diante de quem, num outro texto, sem duvida para contradizer Fontenelle, o distintíssimo centenário, Kant declara tirar o chapéu.
Assim, dispensaremos o menino malvado do testemunho sob juramento. Mas é possível que um defensor da paixão, e que fosse cego o bastante para lhe associar o ponto de honra, criasse um problema para Kant, por forçá-lo a constatar que nenhuma ocasião precipita alguns com mais certeza para seu objetivo do que vê-lo oferecer-se ao desafio, ou mesmo ao ultraje do cadafalso.
Pois o cadafalso não é a Lei, nem pode ser por ela veiculado aqui. Não há furgão senão da polícia, a qual pode muito bem ser o Estado, como se costuma dizer pelos lados de Hegel. Mas a Lei é outra coisa, como se sabe desde Antígona.
Kant alias, não contradiz isso com seu apólogo: o cadafalso só entra ali para que ele lhe acorrente, junto com o sujeito, seu amor a vida.
Ora, é nisso que o desejo pode, na máxima Et non propter vitam vivendi perdere causas, passar, num ser moral, e justamente por ele ser moral, passar a categoria de imperativo categórico, por menos que ele esteja encostado na parede. O que é justamente para onde ele é empurrado aqui.
O desejo, isso a que se chama desejo, basta para fazer com que a vida não tenha sentido quando se produz um covarde. E, quando a lei esta realmente nisso, o desejo não se sustenta, mas pelo fato de que a lei e o desejo recalcado são uma única e mesma coisa, o que é justamente o que Freud descobriu. Marcamos o ponto no tempo regulamentar, professor.

Atribuamos nosso sucesso ao conjunto da peãozada, dona do jogo, como se sabe. Pois não fizemos intervir nem nosso Cavalo – aquele em função de que, no entanto, tínhamos os trunfos na mão, já que ele seria Sade, que cremos aqui muito qualificado -, nem nosso Bispo, nem nossa Torre – os direitos do homem, a liberdade de pensamento, teu corpo te pertence -, nem nossa Rainha, figura apropriada para designar as proezas do amor cortês.
Isso teria sido movimentar gente demais, para um resultado menos seguro.
Pois, se afirmo que Sade, por algumas estripulias, arriscou-se com conhecimento de causa (vide o que faz com suas “escapadas”, lícitas ou não) a ser aprisionado durante um terço de sua vida – estripulias meio assíduas, sem dúvida, porém ainda mais demonstrativas se comparadas a recompensa -, atraio contra mim Pinel e sua pinelada que vem chegando. Loucura moral, opina ela. E afinal, grande coisa! Eis-me reconvocado a reverência por Pinel, a quem devemos um dos mais nobres passos da humanidade. – Treze anos de Charenton para Sade foram mesmo um passo assim. – Mas aquele não era seu lugar. – Isso é o que interessa. Foi esse passo mesmo que o levou para lá. Pois, quanto a seu lugar, e tudo o que é pensante concorda quanto a isso, ele ficava longe dali. Mas vejam: os que pensam bem acham que seu lugar era do lado de fora, e os bem-pensantes, desde Royer-Collard, que reivindicou isso na época, viam-no no desterro e até no patíbulo. E justamente nisso que Pinel é um momento do pensamento. Querendo ou não, ele afiançou o abate a que, a direita e a esquerda, o pensamento submeteu as liberdades que a Revolução acabara de promulgar em seu nome.
Isso porque, considerando os direitos do homem sob a ótica da filosofia, vemos aparecer o que, aliás, todo o mundo agora sabe de sua verdade. Eles se resumem na liberdade de desejar em vão.
Grande vantagem! – mas oportunidade de reconhecer ai nossa liberdade espontânea de há pouco, e de confirmar que ela é mesmo a liberdade de morrer.
Como também de atrair para nós o cenho franzido daqueles que a consideram pouco nutritiva. Numerosos, em nossa época. Renovação do conflito entre as necessidades e os desejos, onde, como que por acaso, é a Lei que esvazia a concha.
Quanto a contestação a fazer ao apólogo kantiano, o amor cortês não oferece uma via menos tentadora, mas ela exige ser erudita. Ser erudito por postura é atrair para si os eruditos, e os eruditos, nesse campo, são a entrada dos clowns.
Já Kant, aqui, por pouco nos faria perder nossa seriedade, por não ter o menor senso do cômico (como prova o eu diz dele no devido lugar).
Mas alguém aquém ele falta, a este, de um modo completamente absoluto, como já se observou, é Sade. Esse limite talvez lhe fosse fatal, e não se fez um prefácio para não piorar as coisas.

Assim, passemos ao segundo tempo do apólogo de Kant. Ele não é mais conclusivo para seus propósitos. Pois, supondo-se que seu hilota tenha o menor senso de oportunidade, ele lhe perguntará se porventura seria seu dever prestar um testemunho verdadeiro, caso fosse esse o meio de o tirano poder satisfazer sua cobiça.
Deve ele dizer eu o inocente é judeu, por exemplo, se ele realmente o for, diante de um tribunal, já vimos coisas assim, que nisso encontre motivo de censura? – ou então, que ele é ateu, quando, justamente, talvez ele próprio seja um homem mais entendido no peso da acusação do que um consistório que queira apenas um dossiê? – e quanto ao desvio “da linha”, deve ele alegar inocência, num momento e num lugar em que a regra do jogo e a autocrítica? – e o que mais? Afinal, se um inocente nunca é totalmente imaculado, irá ele dizer o que sabe?
Pode-se erigir em dever a máxima de contrariar o desejo do tirano, se o tirano for aquele que se arroga o poder de subjugar o desejo do Outro.
Assim, nas duas extensões (e na mediação precária) de que a Kant se faz a alavanca, para mostrar que a Lei põe em equilíbrio não somente o prazer, mas também a dor, a felicidade, ou igualmente a pressão da miséria e até o amor a vida, todo o patológico, constata-se que o desejo pode não apenas ter o mesmo sucesso, mas alcançá-lo ainda com mais razão.
Mas, se a vantagem que deixamos a Crítica levar, pela alacridade de sua argumentação, deveu alguma coisa a nosso desejo de saber onde ela queria chegar, não pode a ambigüidade desse sucesso inverter seu movimento no sentido de uma revisão das concessões detectadas?
E o caso, por exemplo, do desfavor com que, um tanto apressadamente, foram atingidos todos os objetos propostos como bens, por serem incapazes de harmonizar as vontades: simplesmente por introduzirem nelas a competição. Como Milão, que Carlos V e Francisco I souberam o que lhes custou, por ambos verem nela o mesmo bem.
Isso equivale realmente a desconhecer o que acontece com o objeto do desejo.
O qual só podemos introduzir, aqui, relembrando o que ensinamos sobre o desejo, a ser formulado como desejo do Outro, por ser, originalmente, desejo de seu desejo. O que torna concebível a harmonia dos desejos, mas não sem perigo. Pela simples razão de que, ao se ordenarem numa cadeia que se assemelha a procissão dos cegos de Bruegel, cada um, sem duvida, tem a mão daquele que o precede, mas ninguém sabe para onde todos estão indo.
Ora, ao arrepiar caminho, todos têm realmente a experiência de uma regra universal, mas por não estarem mais informados a respeito dela.
Acaso a solução conforme a Razão prática seria eles ficarem girando em círculos?
Mesmo faltando, o olhar decerto é aí o objeto que apresenta a cada desejo sua regra universal, materializando sua causa ao ligá-la a divisão “entre centro e ausência” do sujeito.
Atenhamo-nos, por conseguinte, a dizer que uma prática como a psicanálise, que reconhece no desejo a verdade do sujeito, não pode desconhecer que virá depois, sem demonstrar aquilo que recalca.
O desprazer é aí reconhecido por experiência, como dando pretexto ao recalque do desejo, ao se produzir no caminho de sua satisfação – mas também como dando a forma assumida por essa mesma satisfação no retorno do recalcado.
Similarmente, o prazer redobra sua aversão ao reconhecer a lei, por dar suporte ao desejo de satisfazê-la que é a defesa.
Se a felicidade é a satisfação ininterrupta do sujeito com sua vida, como a define muito classicamente a Crítica, é claro que ela se recusa a quem ano renúncia a vida do desejo. Essa renúncia pode ser pretendida, mas ao preço da verdade do homem, o que fica bastante claro na reprovação a que se expuseram, diante do ideal comum, os epicuristas e até os estóicos. Sua ataraxia destitui sua sabedoria. Não se lhes leva minimamente em conta que eles rebaixem o desejo, pois não apenas não se considera a Lei tão elevada assim, como também é por isso, quer o saibamos, quer não, que ela é sentida como derrubada.
Sade, o ci-devant, retoma Saint-Just onde convém. Que a felicidade tenha-se tornado um fator da política é uma proposição imprópria. Ela sempre o foi, e levará o cetro e o incensório, que lhe caem muito bem. E a liberdade de desejar que constitui um fator novo, não por inspirar uma revolução – é sempre por um desejo que se luta e se morre - , mas pelo fato de essa revolução querer que sua luta seja em prol da liberdade do desejo.
Daí resulta ela querer também que a lei seja livre, tão livre que lhe convém ser viúva, a Viúva por excelência, aquela que nos joga a cabeça no cesto, por menos que se intrometa no assunto. Houvesse a cabeça de Saint-Just continuado povoada pelas fantasias de Organt, talvez ele tivesse feito de Thermidor seu triunfo.
O direito ao gozo, se fosse reconhecido, relegaria a uma era desde então caduca a dominação do princípio do prazer. Ao enunciá-lo, Sade faz com que se insinue para todos, por uma fresta imperceptível, o antigo eixo da ética: que não é outro senão o egoísmo da felicidade.
A qual não se pode dizer que qualquer referencia esteja extinta em Kant, pela própria familiaridade com que lhe faz companhia e, mais ainda, pelos rebentos que dela captamos nas exigências com que ele argumenta igualmente a favor de uma recompensa no para-alem e de um progresso cá embaixo.
Vislumbre-se uma outra felicidade, cujo nome dissemos no princípio, e o status do desejo se altera, impondo seu reexame.

Mas é aqui que algo deve ser julgado. Até onde nos leva Sade na experiência desse gozo, ou simplesmente de sua verdade?
Pois essas pirâmides humanas, fabulosas para demonstrar o gozo em sua natureza de cascata, essas grandes forças do desejo, edificadas para que o gozo matize os jardins d’Este com uma volúpia barroca, quanto mais alto elas o fizessem jorrar do céu, mais de perto nos atrairia a questão do que flui nele.
Desde os imprevisíveis quanta com que se faz cintilar o átomo amor-ódio até a vizinhança da Coisa, de onde o homem emerge com um grito, o que se experimenta, ultrapassamos certos limites, nada tem a ver com aquilo pelo qual o desejo se apóia na fantasia, que justamente se constitui a partir desses limites.
Esses limites, sabemos que em sua vida Sade os transpôs.
E essa épura de sua fantasia em sua obra, sem dúvida ele não no-la teria dado de outro modo.
Talvez causemos espanto ao questionar o que, dessa experiência real, a obra também traduziria.
A nos atermos a alcova, para um bosquejo bem incisivo dos sentimentos de uma jovem para com sua mãe, o fato é que a maldade,tão justamente situada por Sade em sua transcendência, não nos ensina aqui muito de novo sobre suas modulações amorosas.
Uma obra que se pretende má não pode permitir-se ser má obra, e convém dizer que A filosofia se presta a esta alfinetada por toda uma faceta de boa obra.
Há um pouco de pregação demais dentro dela.
Sem dúvida, é um tratado de educação para moças, e como tal esta sujeito as leis de um gênero. Apesar do proveito que tira de expor as claras o “sádico-anal” que enfumaçava esse tema, em sua insistência obsedante nos dois séculos anteriores, ele continua a ser um tratado educativo. O sermão ali é maçante pra a vítima, e enfatuado por parte do professor.
A informação histórica, ou, melhor dizendo, erudita, é desinteressante no livro e dá saudade de um La Mothe Le Vayer. A fisiologia compõe-se ai com receitas de ama-de-leite. No tocante a educação sexual, e como se lêssemos um opúsculo médico de nossa época sobre o assunto, o que já é dizer tudo.
Uma perseverança maior no escândalo ajudaria a reconhecer, na impotência com que comumente se exibe a intenção educativa, justamente aquela contra a qual a fantasia se esforça ali: daí nasce um obstáculo a qualquer apreciação válida dos efeitos da educação, já que não se pode confessar da intenção o que produziu os resultados.
Esse traço poderia ter sido impagável, pelos efeitos louváveis da impotência sádica. Que tenha escapado a Sade dá o que pensar.
Sua carência se confirma por outra não menos notável: o livro nunca nos apresenta o sucesso de uma sedução, com o qual, no entanto, se coroaria a fantasia: aquela em que a vitima, nem que fosse em seu derradeiro espasmo, viesse a consentir na intenção de seu torturador, e até passasse para o lado dele, pelo ardor desse consentimento.
Com o que se demonstra, por outra visão, que o desejo é o avesso da lei. Na fantasia sadiana, vemos como eles se sustentam. Para Sade, sempre se esta do mesmo lado, o bom e o mau: nenhuma afronta mudará nada. Portanto, é o triunfo da virtude: esse paradoxo só faz reencontrar o sarcasmo próprio do livro edificante, por demais almejado por Justine para que ela não o defenda.
A não ser pelo nariz que se agita, encontrado no final do Diálogo de um padre e um moribundo, póstumo (admitam que esse é um tema pouco propicio a outras graças que não a graça divina), na obra faz-se as vezes sentir a falta de um chiste e, diríamos em termos mais amplos, do wit do qual Pope, fazia quase um século, havia enunciado a exigência.
Evidentemente, isso é esquecido pela invasão pedante que pesa sobre as letras francesas desde a W.W.II.
Mas, se vocês precisam de um estomago resistente para acompanhar Sade quando ele prega a calúnia, primeiro artigo da moral a ser instituída em sua república, preferíamos que ele pusesse nisso a malícia de um Renan. “Felicitemo-nos”, escreve este, “por Jesus não ter deparado com nenhuma lei que punisse o ultraje a uma classe de cidadãos. Os fariseus teriam sido invioláveis.” E continua: “Suas zombarias requintadas, suas provocações mágicas sempre acertavam na mosca. O manto de Nesso do ridículo que o judeu, filho dos fariseus, arrasta em farrapos há dezoito séculos, foi Jesus quem o teceu por um artifício divino. Obra-prima da alta chacota, suas tiradas inscreveram-se qual fio de fogo na carne do hipócrita e do falso devoto. Tiradas incomparáveis, tiradas dignas de um Filho de Deus! Só um Deus sabe matar assim. Sócrates e Moliére apenas roçam a pele. Este leva até a medula o fogo e a ira.
Pois esses comentários ganham valor pela seqüência que conhecemos, ou seja, pela vocação do Apóstolo dentre as fileiras dos fariseus e pela vitoria das virtudes farisaicas, universal. O que, havemos de ouvir, presta-se a uma argumentação mais pertinente do que a desculpa bastante medíocre com que se contenta Sade em sua apologia da calúnia: a de que o homem de bem sempre triunfará sobre ela.
Essa mediocridade não impede a sombria beleza que se irradia desse monumento de desafios. Ela nos atesta a experiência que procuramos por trás da fabulação da fantasia. Experiência trágica, por projetar aqui sua condição num clarão vindo de para-além de qualquer temor e piedade.
Assombro e trevas, eis, ao contrário do chiste, a conjunção, que nessas cenas nos fascina por seu brilho de carvão.
Esse trágico é do tipo cuja precisão, será efetuada em data posterior do século, em mais de um livro, romance erótico ou drama religioso. Nós o chamaríamos o trágico senil, que nem mesmo nos sabíamos, a não ser nas piadas de estudante, estar a uma pedrada de distância do trágico nobre. Que se faça referencia, para nos entender, a trilogia claudeliana do Pai humilhado. (Para nos entenderem, que saibam também que demonstramos nessa obra os traços da mais autentica tragédia. E Melpômene que é gagá, com Clio, sem que se veja qual delas enterrara a outra.)

Ei-nos enfim intimados a interrogar o Sade, meu semelhante, cuja invocação devemos a extrema perspicácia de Pierre Klossowski.
Sem duvida, a discrição desse autor faz com que coloque sua formula sob a proteção de uma referencia a são Labro. Não nos sentimos com maior inclinação a lhe dar a mesma guarida.
Que a fantasia sadiana consiga situar-se melhor nos suportes da ética cristã do que em outros lugares, eis o que nossas balizas de estrutura tornam fácil de apreender.
Mas que Sade, por sua vez, se recusa a ser meu semelhante, eis o que deve ser lembrado, não para lhe pagar na mesma moeda, mas para reconhecer o sentido dessa recusa.
Cremos que Sade não e tão vizinho de sua própria maldade que nela possa encontrar seu próximo. Traço que compartilha com muitos, em especial com Freud. Pois esse é realmente o único motivo do recuo de alguns seres, talvez advertidos, diante do mandamento cristão.
Em Sade, vemos a prova disso –crucial, a nosso ver – em sua recusa da pena de morte, cuja historia bastaria para provar, se não sua lógica, que ela é um dos correlatos da Caridade.
Sade, portanto, deve-se nisso, no ponto em que se ata o desejo a lei.
Se alguma coisa nele deixou-se prender a lei, para nela encontrar a oportunidade, da qual fala São Paulo, de ser desmentidamente pecador, quem lhe atiraria a pedra? Só que ele não foi mais longe.
Não é apenas que nele, como em todo o mundo, a carne seja fraca: é que o espírito é impetuoso demais para não ser tapeado. A apologia do crime impele-o apenas ao reconhecimento indireto da Lei. O Ser supremo é restaurado no Malefício.
Escutem-no exaltar-lhes sua técnica de pôr imediatamente, em prática tudo o que lhe vêm a cabeça, pensando igualmente, ao substituir o arrependimento pela reiteração, acabar com a lei do lado de dentro. Ele não encontra nada melhor para nos encorajar a segui-lo do que a promessa de que a natureza, magicamente, como mulher que é, nos fará cada vez mais concessões.
Seria um erro nos fiarmos nesse típico sonho de poder.
Ele nos indica suficientemente, em todo caso, que não há como conceber que Sade, com P. Klossowski sugere, embora assinale não crer nisso, tenha atingido aquele tipo de apatia que seria “de haver reingressado no seio da natureza, em estado de vigília, em nosso mundo” habitado pela linguagem.
Do que falta aqui em Sade, proibimo-nos de dizer uma palavra. Que o sintam na gradação da Filosofia, pelo fato de ser a agulha curva, tão cara aos heróis de Bunuel, que é finamente chamada a resolver na moça um Penisneid meio visível nela.
Seja como for, evidencia-se que não se ganhou nada ao substituir Diotima por Dormancé, pessoa a quem a vida comum parece assustar mais do que convém, e que, como viu Sade, encerra o assunto com um Noli tangere matrem. V... ée e costurada, a mãe continua proibida. Está confirmado nosso veredito sobre a submissão de Sade a Lei.
De um verdadeiro tratado sobre o desejo, portanto, pouco há aqui, ou mesmo nada.
O que se anuncia nesse revés extraído de um acaso não passa, quando muito, de um tom de razão.

R.G., setembro de 1962.