POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ

POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

KANT COM SADE - JACQUES LACAN

“Este texto deveria servir de prefácio para A filosofia na alcova. Foi publicado na revista Critique (no. 191, abril de 1963), sob a forma de uma resenha da edição das obras de Sade a que era destinado. Ed. du Cercle du Livre Precieux, 1963, 15 vols.”

Que obra de Sade antecipa Freud, nem que seja no tocante ao catalogo das perversões, e uma estupidez que se rediz nos textos e cuja responsabilidade, como sempre, cabe aos especialistas.
Ao contrario, sustentamos que a alcova sadiana iguala-se aos lugares dos quais as escolas da antiga filosofia retiraram seu nome: Academia, Liceu, Stoá. Aqui como lá, prepara-se a ciência retificando a posição da ética. Nisso,sim, opera-se um aplanamento que tem que caminhar cem anos nas profundezas do gosto para que a via de Freud seja viável. Contem mais sessenta para que digamos o porquê de tudo isso.
Se Freud pôde enunciar seu princípio do prazer sem sequer ter tido que se preocupar em marcar o que o distingue de sua função na ética tradicional, e sem correr maior risco de que ele fosse ouvido, num eco ao preconceito inconteste de dois milênios, como lembrando a atração que preordena a criatura a seu bem, com a psicologia que se inscreve em diversos mitos de benevolência, só podemos render homenagem a ascensão insinuante, ao longo do século XIX, do tema da “felicidade no mal”.
Aqui, Sade é o passo inaugural de uma subversão da qual, por mais picante que isso pareça, considerada a frieza desse homem, Kant é o ponto decisivo, e jamais identificado, ao que saibamos, como tal.
A filosofia na alcova surge oito anos depois da Critica da razão prática. Se, depois de ter visto que é compatível com esta, demonstrarmos que ela a completa, diremos que ela fornece a verdade da Crítica.
Do mesmo modo, os postulados com que esta última se conclui – o álibi da imortalidade em que ela recalca o progresso, a santidade e até o amor, tudo o que possa vir de satisfatório da lei, e a garantia que lhe é necessária, de uma vontade, para o qual o objeto a que a lei se refere seja inteligível, perdendo ate mesmo o apoio raso da função de utilidade em que Kant os confinava – restituem a obra seu diamante de subversão. Com o que se explica a incrível exaltação que dele recebe todo leitor não prevenido pelo fervor acadêmico. Efeito que, mesmo tendo sido percebido, em nada será prejudicado.
Que fiquemos bem no mal, ou, se preferirmos, que o eterno feminino não eleve as alturas, poderíamos dizer que essa virada foi feita com base numa observação filológica: nominalmente, que o que fora aceito até então, que ficamos bem no bem, repousa numa homonímia que a língua alemã não admite: Man fuhlt sich wohl im Guten. E dessa maneira que Kant nos introduz em sua Razão prática.
O principio do prazer é a lei do bem que é o wohl, digamos, o bem-estar. Na prática, ele submeteria o sujeito ao mesmo encadeamento fenomênico que termina seus objetos. A objeção que Kant faz a isso é, segundo seu estilo rigoroso, intrínseca. Nenhum fenômeno pode prevalecer-se de uma relação constante com o prazer. Não se pode enunciar nenhuma lei de tal bem, portanto, que defina como vontade o sujeito que a introduz em sua prática.
Assim, a investigação do bem seria um impasse, se ele não renascesse – das Gute, o bem que é objeto da lei moral. Ele nos é apontado pela experiência que temos de ouvir dentro de nós ordens cujo imperativo se apresenta como categórico, ou seja, incondicional.
Note-se que esse bem só é suposto como o Bem por se propor, como acabamos de dizer, a despeito de qualquer objeto que lhe imponha sua condição, por se opor a seja qual for dos bens incertos que esses objetos possam trazer, numa equivalência de principio, para se impor como superior por seu valor universal. Assim, seu peso só aparece por excluir, pulsão ou sentimento, tudo aquilo de que o sujeito pode padecer em seu interesse por um objeto, o que por isso Kant designa como “patológico”.
Logo, seria por uma indução baseada nesse efeito que nele encontraríamos o Bem Supremo dos Antigos, se Kant, como é seu costume, não tivesse ainda esclarecido que esse Bem não age como contrapeso, mas , por assim dizer, como antipeso, isto é, pela subtração de peso que ele produz no efeito de amor-próprio (Selbstsucht) que o sujeito sente como satisfação (arrogantia) de seus prazeres, porquanto um olhar para esse Bem torna esses prazeres menos respeitáveis. Textual, assim como sugestivo.
Retenhamos o paradoxo de que é no momento em que o sujeito já não tem diante de si objeto algum que ele encontra uma lei, a qual não tem outro fenômeno senão alguma coisa já significante, que é obtida de uma voz na consciência e que, ao se articular nela como máxima, propõe ali a ordem de uma razão puramente prática, ou vontade.
Para que essa máxima sirva de lei, é necessário e suficiente que, na experiência de tal razão, ela possa ser aceita como universal por direito da lógica. O que, lembremos sobre esse direito, não quer dizer que ela se imponha a todos, mas que valha para todos os casos, ou, melhor dizendo, que não valha em nenhum caso, se não valer em todos.
Mas, devendo essa experiência ser de razão, pura ainda que prática, ela só pode ter êxito em relação a máximas de um tipo que permita uma apreensão analítica em sua dedução.
Esse tipo é ilustrado pela fidelidade que se impõe na devolução de um depósito, repousando a prática do depósito nos dois ouvidos que, para constituírem o depositário, tem que se fechar a qualquer condição que se oponha a essa fidelidade. Em outras palavras, não há depósito sem depositário a altura de sua incumbência.
Poder-se-ia sentir a necessidade de um fundamento mais sintético, mesmo nesse caso evidente. Ilustremos sua falta, por nosso turno, ainda que ao preço de uma irreverência, através de uma máxima retocada do pai Ubu: “Viva a Polônia, pois, se não houvesse a Polônia, não haveria poloneses.”
Não vá ninguém aqui duvidar, por alguma lentidão ou até emotividade, de nosso apego a um liberdade sem a qual os povos se enlutam. Mas sua motivação, aqui analítica, apesar de irrefutável, presta-se a que o indefectível seja temperado pela observação de que os poloneses fizeram-se distinguir desde sempre por uma notável resistência aos eclipses da Polônia, e mesmo a deploração que se seguia.
Deparamo-nos com o que leva Kant a ter boas razoes para exprimir o pesar de que, a experiência da lei moral, nenhuma intuição ofereça um objeto fenomênico.
Havemos de convir que, ao longo de toda a Crítica, esse objeto se furta. Mas é adivinhado pelo rastro deixado pela implacável seqüência trazida por Kant para demonstrar sua esquiva, e da qual o livro extrai esse erotismo, sem duvida inocente, mas perceptível, cuja solida fundamentação iremos mostrar pela natureza do referido objeto.
Eis por que rogamos que se detenham neste exato ponto de nossas linhas, para retomá-las posteriormente, todos aqueles de nossos leitores que estiverem, no tocante a Crítica, numa relação ainda virgem, por não a haverem lido. Que verifiquem se ela tem mesmo o efeito que afirmamos, e ao menos lhes prometemos o prazer que é transmitido por essa façanha.
Os outros nos acompanharão agora na Filosofia na alcova, ou pelo menos em sua leitura.
Panfleto, revela-se ela, porém dramático, onde uma iluminação cênica permite ao diálogo e aos gestos prosseguirem até os limites do imaginável: essa iluminação apaga-se por um momento para dar lugar, panfleto dentro de panfleto, a um libelo intitulado: “Franceses, mais um esforço, se quereis ser republicanos...”
O que aí se enuncia é comumente entendido, se não apreciado, como uma mistificação. Não é preciso ser alertado pela reconhecida importância do sonho dentro do sonho, por apontar uma relação mais próxima do real, para ver no desprezo, no caso, pela atualidade histórica, uma indicação do mesmo tipo. Ela é patente, e melhor faremos em examiná-la duas vezes.
Digamos que a eficácia do libelo é dada na máxima que propõe ao gozo sua regra, insólita ao se dar o direito, a maneira de Kant, de se afirmar como regra universal. Enunciemos a máxima: “Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei esse direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar.”
Essa é a regra a qual se pretende submeter a vontade de todos, por menos que uma sociedade a implemente através de sua coerção.
Humor negro, na melhor das hipóteses, para qualquer ser sensato, ao tomar a partir da máxima para o consentimento que nela se supõe.
Mas, afora o fato de que, se há uma coisa a que nos habituou a dedução da Critica, foi a distinguir o racional do tipo de sensatez que não passa de um recurso confuso ao patológico, sabemos agora que o humor é o trânsfuga na comicidade da própria função do “Supereu” – o que, para animar com uma metamorfose essa instância psicanalítica e arrancá-la do retorno de obscurantismo em que a empregam nossos contemporâneos, pode igualmente apurar o sabor da prova kantiana da regra universal com a pitada de sal que lhe falta.
Assim, não somos nos incitados a levar mais a sério aquilo que se nos apresenta como não o sendo em absoluto? Não perguntaremos, é claro, se é necessário nem suficiente que uma sociedade sancione um direito ao gozo, permitindo a todos valerem-se dele, para que a partir daí sua máxima pretexte o imperativo da lei moral.
Nenhuma legalidade positiva pode decidir se essa máxima é capaz de assumir a categoria de regra universal, uma vez que, do mesmo modo, essa categoria pode eventualmente opô-la a todas.
Essa não é uma questão que se decida simplesmente ao imaginá-la, e a extensão a todos do direito que a máxima invoca não é aqui o que esta em pauta.
Não se demonstraria nisso, na melhor das hipóteses, senão uma possibilidade do geral, que não é o universal, o qual toma as coisas como estas se fundamentam, e não como se dispõem.
E não se pode omitir esta oportunidade de denunciar a exorbitância do papel conferido ao momento da reciprocidade nas estruturas, sobretudo subjetivas, que a repelem intrinsicamente.
A reciprocidade, relação reversível, por se estabelecer numa linha simples que une dois sujeitos que, por sua posição “recíproca”, tomam essa relação como equivalente, dificilmente consegue colocar-se como o tempo lógico de uma travessia do sujeito em sua relação com o significante, e muito menos como etapa de algum desenvolvimento, aceitável ou não como psíquico (onde a criança sempre tem as costas largas para lhe aplicarem a intenção pedagógica).
Seja como for, já é um ponto a ser conferido a nossa máxima que ela possa servir de paradigma de um enunciado que exclui como tal a reciprocidade (a reciprocidade, e não a incumbência de revide).
Qualquer juízo sobre a ordem infame que entronizaria nossa máxima, portanto, é indiferente nessa matéria, que consiste em lhe reconhecer ou em lhe recusar o caráter de uma regra aceitável como universal na moral, a moral reconhecida desde Kant como uma pratica incondicional da razão.
E preciso, evidentemente, reconhecer-lhe esse caráter, pela simples razão de que seu mero anuncio (seu querigma) tem a virtude de instaurar, ao mesmo tempo, quer a rejeição radical do patológico, de qualquer consideração por um bem, uma paixão ou mesmo uma compaixão, ou seja, a rejeição pela qual Kant liberta o campo da lei moral, quer a forma dessa lei, que é também sua única substancia, na medida em que a vontade só se obriga a ela ao rejeitar de sua prática toda razão que não seja de sua própria máxima.
Certamente, esses dois imperativos, entre os quais pode ser esticada até o estilhaçamento da vida a experiência moral, são-nos impostos, no paradoxo sadiano, como ao Outro, e não como a nós mesmos.
Mas ai só há distância a primeira vista, pois, de maneira latente, o imperativo moral não faz menos que isso, já que é a partir do Outro que sua ordem nos solicita.
Aqui percebemos revelar-se nuamente aquilo em que nos introduziria a parodia, acima citada, do universal evidente do dever do depositário, ou seja, que a bipolaridade pela qual se instaura a Lei moral não e dada alem da fenda do sujeito operada por qualquer intervenção do significante: nomeadamente, do sujeito da enunciação para o sujeito do enunciado.
A lei moral não tem outro principio. Mas é preciso que isso fique patente, a menos que nos prestemos a mistificação que a piada do “Viva a Polônia!” faz sentir.
Nesse aspecto, a máxima sadiana é, por se pronunciar pela boca do Outro, mais honesta do que o recurso a voz interior, já que desmascara a fenda, comumente escamoteada, do sujeito.
O sujeito da enunciação, distingue-se dela tão claramente quanto do “Viva a Polônia”, onde apenas se isola o que sua manifestação sempre evoca de fun.
Basta que nos reportemos, para confirmar essa perspectiva, a doutrina em que o próprio Sade fundamenta o império de seu principio. Trata-se da dos direitos do homem. E pelo fato de que nenhum homem pode ser de outro homem propriedade, nem de algum modo seu apanágio, que não se pode disso fazer um pretexto para suspender o direito de todos de usufruírem dele, cada qual a seu gosto. O que ele sofrera de coerção não e tanto por violência, mas por principio, e a dificuldade para quem faz dela uma máxima esta menos em fazê-lo consentir nisso do que em pronunciá-la em seu lugar.
Portanto, é realmente o Outro como livre, e a liberdade do Outro que o discurso do direito ao gozo instaura como sujeito de sua enunciação, e não de uma maneira que difira do tu és que se evoca do fundo mortífero de qualquer imperativo.
Mas esse discurso e não menos determinante para o sujeito do enunciado, ao provocá-lo a cada endereçamento de seu conteúdo equivoco, já que o gozo, ao se confessar impudentemente em suas próprias palavras, faz-se pólo de uma dupla em que o outro está no fosso que ele já perfura no lugar do Outro, para ali erguer a cruz da experiência sadiana.
Adiemos falar de sua mola, para lembrar que a dor, que projeta aqui sua promessa de ignomínia, só faz Kant entre as conotações da experiência moral. Ver-se-á melhor o que ela vale para a experiência sadiana abordando-a pelo que haveria de desconcertante no artifício dos estóicos a seu respeito: o desprezo.
Imaginemos uma réplica de Epícteto na experiência sadiana: “Vê, tu a quebraste”, diz ele, apontando para sua perna. Acaso reduzir o gozo a miséria desse efeito em que tropeça sua busca não e transformá-lo em horror?
O que mostra que o gozo é aquilo pelo qual se modifica a experiência sadiana. Pois ele só projeta monopolizar uma vontade ao já havê-la atravessado para se instalar no mais intimo do sujeito que ele provoca mais além, ao atingir seu pudor.
Pois o pudor é ambiceptivo das conjunturas do ser: entre dois, o despudor de um constitui por si só a violação do pudor do outro. Canal que justifica, se necessário fosse, o que logo de inicio produzimos da asserção, no lugar do Outro, do sujeito.
Interroguemos esse gozo, precário por estar preso, no Outro, a um eco que ele só suscita ao aboli-lo pouco a pouco, por lhe juntar o intolerável. Não nos parece, afinal, que ele só se exalta por si mesmo, a maneira de uma outra e horrível liberdade?
Da mesma forma veremos descobrir-se o terceiro termo que, no dizer de Kant, faltaria na experiência moral. Trata-se do objeto, o qual, a fim de garanti-lo para a vontade no cumprimento da Lei, ele é obrigado a remeter ao impensável da Coisa-em-si. Esse objeto, acaso não o vemos decaído de sua inacessibilidade, na experiência sadiana, e revelado como o Ser-ai, Dasein, do agente do tormento?
Não sem manter a opacidade do transcendente. Pois esse objeto é estranhamente separado do sujeito. Observe-se que o arauto da máxima não precisa aqui ser mais do que um ponto de emissão. Pode ser uma voz no radio, lembrando o alardeado direito ao suplemento de esforço no qual, ante apelo de Sade, os franceses teriam consentido, transformada a máxima, para sua Republica regenerada, em Lei orgânica.
Certos fenômenos da voz, nomeadamente os da psicose, tem mesmo essa faceta do objeto. E a psicanálise não estava longe, sem sua aurora, de referi-los a voz da consciência.
Vemos o que motiva Kant a considerar que esse objeto se furta a qualquer determinação da estética transcendental, embora não deixe de aparecer em alguma saliência do véu fenomênico, não sendo sem eira nem beira, nem sem tempo na intuição, nem sem modo que se situe no irreal, nem sem efeito na realidade: não é só que a fenomenologia de Kant falhe aqui, mas é que a voz, mesmo louca, impõe a idéia do sujeito, e não convém que o objeto da lei sugira uma malignidade do Deus real.
Seguramente, o cristianismo educou os homens a serem pouco atentos ao aspecto do gozo de Deus, e é nisso que Kant impõe seu voluntarismo da Lei-pela-Lei, que remete, por assim dizer, a ataraxia da experiência estóica. Podemos pensar que Kant esta sob a pressão daquilo que ouve muito de perto, não de Sade, mas de um certo místico de sua região, no suspiro que sufoca o que ele vislumbra para-alem, por ter visto que seu Deus e desprovido de rosto: Grimmigkeit? Sade diz: Ser-supremo-em-maldade.
Mas, xô! Schwarmereien, negros enxames, nós vos enxotamos para voltar a função da presença na fantasia sadiana.
Essa fantasia tem uma estrutura que reencontramos mais adiante e na qual o objeto é apenas um dos termos onde pode extinguir-se a busca que ela representa. Quando o gozo se petrifica ai, ele se torna o fetiche negro em que se reconhece a forma efetivamente oferecida em um certo tempo e lugar, ainda nos dias atuais, para que nela se adore seu deus.
E isso que advém do executor na experiência sádica, quando sua presença se resume, em última instância, a não ser mais do que seu instrumento.
Mas o fixar-se seu gozo nela não o livra da humildade de um ato em que ele não pode entrar senão como ser carnal e, até a medula, servo do prazer.
Duplicação que não reflete nem recíproca (por que não mutuaria ela?) a que se operou no Outro pelas duas alteridades do sujeito.
O desejo, que é o fautor dessa fenda do sujeito, sem duvida se conformaria em se dizer vontade doe gozo. Mas essa denominação não o tornaria mais digno da vontade que ele invoca no Outro, provocando-a ate o extremo de sua separação de seu pathos, pois, para fazê-lo, ele já começa derrotado, fadado a impotência.
E que ele começa submetido ao prazer, cuja lei e fazê-lo girar em sua meta cada vez mais repentinamente. Homeostase sempre encontrada depressa demais pelo vivente, no limiar mais baixo da tensão em que ele vegeta. E sempre precoce a queda da asa pela qual lhe é dado poder assinar a reprodução de sua forma. Asa que, no entanto, deve aqui ser elevada a função de figurar o laço do sexo com a morte. Deixemos repousar sob seu véu eleusino.
Daquela vontade rival estimulante, portanto, o prazer já não é aqui senão cúmplice precário. No momento mesmo do gozo, estaria simplesmente fora de jogo, se a fantasia não interviesse para sustentá-lo pela própria discórdia em que ele sucumbe.
Para dizê-lo de outra maneira, a fantasia torna o prazer apropriado ao desejo. E repitamos que desejo não e sujeito, por não ser indicável em parte alguma num significante da demanda, seja ela qual for, por não ser articulável nele, ainda que nele se articule.
A captura do prazer na fantasia é aqui fácil de apreender.
A experiência fisiológica demonstra que a dor é de ciclo mais longo, sob todos os aspectos, do que o prazer, já que uma estimulação a provoca no ponto em que o prazer acaba. Por mais prolongada que a suponhamos, no entanto, como o prazer ela tem seu fim: é o esvaecimento do sujeito.
Esse e o dado vital do qual a fantasia vai se servir para fixar, no sensível da experiência sadiana, o desejo que aparece em seu agente.
A fantasia é definida pela forma mais geral que recebe de uma álgebra construída por nos para esse fim, ou seja, a formula (S<>a), onde a punção <> se lê “desejo de”, a ser lido da mesma forma no sentido inverso, introduzindo uma identidade que se fundamenta numa não-reciprocidade absoluta. (Relação coextensiva as formações do sujeito).
Seja como for, essa forma revela-se particularmente fácil de ser avivada no presente caso. Articula nele, de fato, o prazer a que veio substituir-se um instrumento (o objeto a da formula) na espécie de divisão continua do sujeito que é ordenada pela experiência.
O que só se consegue se seu agente aparente se cristaliza na rigidez do objeto, no intuito de que sua divisão de sujeito lhe seja totalmente remetida pelo Outro.
Uma estrutura quadripartite, desde o inconsciente, é sempre exigível na construção de uma ordenação subjetiva. O que é satisfeito por nossos esquemas didáticos.
Modulemos a fantasia sadiana com um novo esquema dentre esses:

ESQUEMA 1:

A linha inferior satisfaz a ordem da fantasia, na medida em que esta sustenta a utopia do desejo.
A linha sinuosa inscreve a cadeia que permite um calculo do sujeito. E orientada, e sua orientação constitui ali uma ordem em que o aparecimento do objeto a no lugar da causa se esclarece pelo caráter universal de sua relação com a categoria da causalidade, o qual, ao forçar o limiar da dedução transcendental de Kant, instauraria no eixo do impuro uma nova Critica da Razão.
Resta o V, que, estando por cima nesse lugar, parece impor a vontade que domina a historia toda, mas cuja forma também evoca a reunião do que ele divide, mantendo-o unido por um vel, isto é, permitindo escolher o que fará o S (S barrado) da razão prática com o S, sujeito bruto do prazer (sujeito “patológico”).
E realmente com a vontade de Kant, portanto, que se encontra no lugar dessa vontade, que só se pode dizer de gozo explicando que se trata do sujeito reconstituído da alienação, ao preço de ser apenas o instrumento do gozo. Assim, Kant, por ser questionado “com Sade”, ou seja, com Sade fazendo as vezes, tanto para nosso pensamento quanto em seu sadismo, de instrumento, confessa o que esta incluído no sentido do “Que quer ele?” que doravante não falta a ninguém.
Sirva-nos agora desse grafo, em sua forma sucinta, para nos acharmos na floresta da fantasia, que Sade, em sua obra, desenvolve num plano de sistema.
Veremos que há uma estática da fantasia pela qual o ponto de afânise, suposto em S (barrado), deve ser, na imaginação, infinitamente adiado. Daí a sobrevivência pouco crível de que Sade dota as vitimas das sevicias e tribulações que lhes inflige em sua fabula. Nesta, o momento da morte delas só parece motivado pela necessidade de substituí-las numa combinatória, a única que exige sua multiplicidade. Única (Justine) ou múltipla, a vitima tem a monotonia da relação do sujeito com o significante, na qual, a confiarmos em nosso grafo, ela consiste. Por ser objeto a da fantasia, situando-se no real, a tropa dos atormentadores (vide Juliette) pode ter mais variedade.
A exigência, na aparência das vitimas, de uma beleza sempre classificadora de incomparável (e, além disso, inalterável, cf. supra) é uma outra história, da qual não nos podemos livrar com alguns postulados banais, forjados as pressas, sobre a atração sexual. Neles veremos, antes, a caricatura daquilo que demonstramos, na tragédia, sobre a função da beleza: barreira extrema que proíbe o acesso a um horror fundamental. Pensemos na Antígona de Sófocles e no momento em que ela eclode o Eros aníkhate mákan.
Esta digressão não seria admissível aqui, se não introduzisse o que se pode chamar de discordância das duas mortes, introduzida pela existência da condenação. O entre-duas-mortes do para-aquém é essencial para nos mostrar que não e outra coisa senão aquele em que se sustenta o para-além.
Vemo-lo com clareza no paradoxo constituído em Sade por sua postura perante o inferno. A idéia do inferno, cem vezes refutada por ele e amaldiçoada como meio de sujeição da tirania religiosa, volta curiosamente a motivar os gestos de um de seus heróis, ainda que dos mais apaixonados pela subversão libertina em sua forma racional, a saber, o hediondo Saint-Fond. As práticas com que ele impõe a suas vitimas o suplicio derradeiro baseiam-se na crença de que ele pode converte-lo para elas, no para-alem, no tormento eterno. Conduta da qual, por seu relativo encobrimento no tocante a seus cúmplices, e crença da qual, por seu embaraço em se justificar por ela, o personagem sublinha a autenticidade. Alias, ouvimo-lo, a algumas páginas dali, tentar torná-las plausíveis em seu discurso, através do mito de uma atração que tende a reunir as “partículas do mal”.
Essa incoerência em Sade, negligenciada pelos sadistas, também eles um pouco hagiógrafos, se esclareceria ao destacarmos em sua pluma o termo, formalmente expresso, segunda morte. A segurança que ele espera desta contra a horrível rotina da natureza (aquela que, ouvindo-o em outro texto, o crime tem a função de romper) exigiria que ela chegasse a um extremo em que reduplica o desvanecimento do sujeito: do qual ele faz um símbolo, no anseio de que os elementos decompostos de nosso corpo, para não voltarem a se reunir, sejam, eles mesmos, aniquilados.
Que Freud, no entanto, reconheça o dinamismo desse anseio em alguns casos de sua pratica, e que lhe reduza a função muito claramente, talvez com clareza demais, a uma analogia com o principio do prazer, relacionando-a com uma “pulsão” (demanda) “de morte”, eis aquilo a que se recusaria o consentimento, especialmente o de alguém que nem sequer pôde aprender, na técnica que deve a Freud, bem como em suas lições, que a linguagem tem outro efeito que não o utilitário, ou o de exibição, quando muito. Freud lhe é de serventia nos congressos.
Sem duvida, aos olhos de tais fantoches, os milhões de homens para quem a dor de existir é a evidência original, no que tange as práticas de salvação que eles baseiam em sua fé no Buda, são subdesenvolvidos, ou melhor, assim como para Buloz, diretor da Revue des Deux Mondes , que o disse sem rodeios a Renan, ao rejeitar seu artigo sobre o budismo – isso segundo Burnouf, ou seja, em algum ponto dos anos cinqüenta (do século passado) -, para eles “não é possível que haja pessoas tão burras assim”.
Pois então não ouviram eles, se crêem ter um ouvido melhor do que os outros psiquiatras, essa dor em estado puro modelar a canção de alguns doentes, denominados de melancólicos?
Nem colheram um daqueles sonhos com que o sonhador fica transtornado,por ter, na condição sentida de um renascimento inesgotável, estado no âmago da dor de existir?
Ou então, para pôr em seu devido lugar aqueles tormentos do inferno que nunca puderam ser imaginados para-alem daquilo cuja manutenção tradicional os homens garantem neste mundo, porventura havemos de suplicar-lhes que pensem em nossa vida cotidiana como devendo ser eterna?
Nada se deve esperar, nem mesmo desespero, de uma besteira, em suma sociológica, e que só registramos para que, do lado de fora, não se espere nada demais, no que concerne a Sade, dos círculos em que se tem uma experiência mais garantida das formas do sadismo.
Notadamente quanto ao que se difunde de equivoco no tocante a relação de reversão que uniria o sadismo a uma idéia sobre o masoquismo, que de fora não se imagina a misturada que essa idéia suporta. Mais vale encontrar nisso o valor de um historinha, famosa, sobre a exploração do homem pelo homem – definição do capitalismo, como se sabe. Mas, é o socialismo? E o contrário.
Humor involuntário, eis o tom com que vigora uma certa difusão da psicanálise. Ele fascina porque, ainda por cima, passa despercebido.
Mas há doutrinários que se esforçam por uma roupagem mais bem cuidada. E o caso aplicado existencialista, ou, mais sobriamente, do ready-made personalista. Isso resulta emq eu o sádico “nega a existência do Outro”. E justamente, havemos de admitir, o que acaba de aparecer em nossa analise.
Seguindo-a, não será, antes, que o sadismo rechaça para o Outro a dor de existir, mas sem ver que, através disso, ele mesmo se transmuda num “objeto eterno”, se o Sr. Whitehead tiver a bondade de nos ceder novamente esse termo?
Mas, por que não nos seria ele um bem comum? Não é esse - redenção , alma imortal – o status do cristão? Nem tão depressa, para também não ir longe demais.
Constatemos, antes, que Sade não e tapeado por sua fantasia, na medida em que o rigor de seu pensamento passa para a lógica de sua vida.
Pois proponhamos aqui um dever a nossos leitores.
A delegação que Sade faz a todos, em sua Republica, do direito ao gozo, não se traduz em nosso grafo por nenhuma reversão de simetria num eixo ou centro qualquer, mas apenas por uma rotação de um quarto de circulo, ou seja:

ESQUEMA 2:

V, a vontade de gozo, já não permite contestar sua natureza por passar para a coerção moral implacavelmente exercida pela Presidenta de Montreuil sobre o sujeito cuja divisão, como se vê, não exige ser reunida num só corpo.
(Note-se que somente o Primeiro Cônsul ratifica essa divisão, por seu efeito de alienação administrativamente confirmado.)
Essa divisão, aqui, reúne como S, o sujeito bruto que encarna o heroísmo próprio do patológico, sob a forma da fidelidade a Sade que atestarão aqueles que a principio foram complacentes com seus excessos, como sua mulher, sua cunhada – seu lacaio, por que não? -, outros devotamentos apagados de sua historia.
Para Sade, o S (barrado), vemos enfim que, como sujeito, e em seu desaparecimento que ele assina, havendo as coisas chegado a seu termo. Sade desaparece, sem que, incrivelmente, menos ainda do que de Shakespeare, nada nos reste de sua imagem, depois de haver ordenado em seu testamento que um matagal apagasse até mesmo o vestígio na pedra de um nome que selasse seu destino.
Mé phynai, não ter nascido: sua maldição, menos santa que a de Édipo, não o leva para junto dos Deuses, mas se eterniza:
(a) Na obra, da qual, de uma penada, Jules Janin nos mostra a flutuação insubmersível, fazendo-a saudar livros que a mascaram, ao se acreditar nele, em qualquer biblioteca digna, como são João Crisóstomo ou os Pensamentos.
Que obra maçante essa de Sade, a ouvi-los, sim, entendendo-se as mil maravilhas, senhor juiz e senhor acadêmico, mas sempre suficiente para fazer, um através do outro, um e outro, um dentro do outro, com que se perturbem.
E que uma fantasia, com efeito, é bastante perturbadora, pois não se sabe onde situá-la, por ela estar ali, inteira, em uma natureza de fantasia que só tem realidade de discurso e que nada espera de seus poderes, mas que lhes pede, isto sim, que se ponham em dia com seus desejos.
Que o leitor se aproxime agora, com reverencia, das figuras exemplares que, na alcova sadiana, se agenciam e se desfazem num rito de feira. “A postura se rompe.”
Pausa cerimonial, escansão sagrada.
Saudem ali os objetos da lei, dos quais não saberão nada, na impossibilidade de saber como se situarem nos desejos de que eles são causa.
E bom ser caridoso
Mas, com quem? Essa e a questão.

Um certo Sr. Verdoux a resolvia todos os dias, pondo mulheres no forno até ele mesmo ser condenado a cadeira elétrica. Achava que os seus desejavam viver com conforto. Mais esclarecido, o Buda se dava a devorar aqueles que não conhecem que não conhecem o caminho. Apesar desses exemplos eminentes, que bem poderiam basear-se apenas num mal-entendido (não é certo que a tigreza goste de comer Buda), a abnegação do Sr. Verdoux provinha de um erro que justifica a severidade, já que um grãozinho de Critica, que não custa caro, tê-lo-ia evitado. Ninguém duvida que a pratica da Razão teria sido mais econômica, assim como mais legal, mesmo que seus familiares tivessem tido que passar um pouco de fome.
“Mas, o que são”, dirão vocês, “todas essas metáforas, e por quê...?”
As moléculas, monstruosas ao se reunirem aqui para um gozo espinteriano, despertam-nos para a existência de outros mais comuns de encontrar na vida, cujos equívocos acabamos de evocar. Subitamente mais respeitáveis do que estas, por se afigurarem mais puros em suas valências.
Desejos... os únicos a ligá-las aqui, e exaltados por tornarem patente que o desejo e o desejo do Outro.
Se nos leram ate este ponto, sabem que o desejo, mais exatamente, apóia-se numa fantasia da qual pelo menos um pé está no Outro, e justamente o pé que importa, mesmo e sobretudo se vier a claudicar.
O objeto, como mostramos na experiência freudiana, objeto do desejo, ali onde se propõe desnudo, é apenas a escoria de uma fantasia em que o sujeito não se refaz de sua sincope. E um caso de mecrofilia.
Ele vacila completamente ao sujeito, no caso geral.
E nisso que e tão inapreensível quanto, segundo Kant, o objeto da Lei. Mas desponta aqui a suspeita que essa aproximação impõe. Não representa aqui a suspeita que essa aproximação impõe. Não representa, a lei moral o desejo, na situação em que já não e o sujeito e, sim, o objeto que falta?
Não parece o sujeito, o único que esta ali como presença, sob a forma da voz do lado de dentro, quase sempre sem pé nem cabeça no que diz, não parece ele significar-se suficientemente pela barra com que o abastarda o significante S (barrado), solto da fantasia (S<>a) da qual deriva, nos dois sentidos desse termo?
Se esse símbolo cede o lugar ao imperativo interior com que se deslumbra Kant, ele nos abre os olhos para o acaso que, da Lei do desejo, faz mais do que lhes mascarar o objeto, tanto para uma quanto para o outro.
Trata-se do acaso em que entra em jogo o equivoco da palavra liberdade: da qual, ao se apoderar, o moralista sempre nos parece ainda mais impudente do que o imprudente.
Mas, escutemos o próprio Kant ilustrá-lo mais uma vez: “Suponham”, diz ele, “alguém que alegue não poder resistir a sua paixão quando o objeto amado e a oportunidade se apresentam; será que, se lhe houvessem erguido um cadafalso em frente a casa em que ele encontra essa oportunidade, para nele o acorrentar tão logo houvesse saciado seu desejo, ainda lhe seria impossível resistir a este? Não é difícil adivinhar o que ele responderia. Mas, se seu príncipe lhe ordenasse, sob pena de morte, prestar falso testemunho contra um homem de bem a quem ele quisesse arruinar por meio de um pretexto capcioso, consideraria ele possível, em tal caso, vencer seu amor a vida, por maior que pudesse ser? Se o faria ou não, eis o que ele talvez não ousasse decidir, mas, que isso lhe é possível, eis no que convirá sem hesitar. Ele julga, portanto, que pode fazer algo por ter a consciência do dever, e assim reconhece em si mesmo a liberdade que, sem a lei moral, ser-lhe-ia para sempre desconhecida.”
A primeira resposta aqui, supostamente de um sujeito sobre quem de saída nos advertem que, nele, muita coisa acontece em palavras, faz-nos pensar que não nos fornecem sua letra, quando é justamente isso que importa. E que, para redigi-la, preferem remeter-nos a um personagem cujo pudor sempre correríamos o risco de ofender, pois ele jamais faria essas coisas. Trata-se, noutras palavras, do burguês ideal diante de quem, num outro texto, sem duvida para contradizer Fontenelle, o distintíssimo centenário, Kant declara tirar o chapéu.
Assim, dispensaremos o menino malvado do testemunho sob juramento. Mas é possível que um defensor da paixão, e que fosse cego o bastante para lhe associar o ponto de honra, criasse um problema para Kant, por forçá-lo a constatar que nenhuma ocasião precipita alguns com mais certeza para seu objetivo do que vê-lo oferecer-se ao desafio, ou mesmo ao ultraje do cadafalso.
Pois o cadafalso não é a Lei, nem pode ser por ela veiculado aqui. Não há furgão senão da polícia, a qual pode muito bem ser o Estado, como se costuma dizer pelos lados de Hegel. Mas a Lei é outra coisa, como se sabe desde Antígona.
Kant alias, não contradiz isso com seu apólogo: o cadafalso só entra ali para que ele lhe acorrente, junto com o sujeito, seu amor a vida.
Ora, é nisso que o desejo pode, na máxima Et non propter vitam vivendi perdere causas, passar, num ser moral, e justamente por ele ser moral, passar a categoria de imperativo categórico, por menos que ele esteja encostado na parede. O que é justamente para onde ele é empurrado aqui.
O desejo, isso a que se chama desejo, basta para fazer com que a vida não tenha sentido quando se produz um covarde. E, quando a lei esta realmente nisso, o desejo não se sustenta, mas pelo fato de que a lei e o desejo recalcado são uma única e mesma coisa, o que é justamente o que Freud descobriu. Marcamos o ponto no tempo regulamentar, professor.

Atribuamos nosso sucesso ao conjunto da peãozada, dona do jogo, como se sabe. Pois não fizemos intervir nem nosso Cavalo – aquele em função de que, no entanto, tínhamos os trunfos na mão, já que ele seria Sade, que cremos aqui muito qualificado -, nem nosso Bispo, nem nossa Torre – os direitos do homem, a liberdade de pensamento, teu corpo te pertence -, nem nossa Rainha, figura apropriada para designar as proezas do amor cortês.
Isso teria sido movimentar gente demais, para um resultado menos seguro.
Pois, se afirmo que Sade, por algumas estripulias, arriscou-se com conhecimento de causa (vide o que faz com suas “escapadas”, lícitas ou não) a ser aprisionado durante um terço de sua vida – estripulias meio assíduas, sem dúvida, porém ainda mais demonstrativas se comparadas a recompensa -, atraio contra mim Pinel e sua pinelada que vem chegando. Loucura moral, opina ela. E afinal, grande coisa! Eis-me reconvocado a reverência por Pinel, a quem devemos um dos mais nobres passos da humanidade. – Treze anos de Charenton para Sade foram mesmo um passo assim. – Mas aquele não era seu lugar. – Isso é o que interessa. Foi esse passo mesmo que o levou para lá. Pois, quanto a seu lugar, e tudo o que é pensante concorda quanto a isso, ele ficava longe dali. Mas vejam: os que pensam bem acham que seu lugar era do lado de fora, e os bem-pensantes, desde Royer-Collard, que reivindicou isso na época, viam-no no desterro e até no patíbulo. E justamente nisso que Pinel é um momento do pensamento. Querendo ou não, ele afiançou o abate a que, a direita e a esquerda, o pensamento submeteu as liberdades que a Revolução acabara de promulgar em seu nome.
Isso porque, considerando os direitos do homem sob a ótica da filosofia, vemos aparecer o que, aliás, todo o mundo agora sabe de sua verdade. Eles se resumem na liberdade de desejar em vão.
Grande vantagem! – mas oportunidade de reconhecer ai nossa liberdade espontânea de há pouco, e de confirmar que ela é mesmo a liberdade de morrer.
Como também de atrair para nós o cenho franzido daqueles que a consideram pouco nutritiva. Numerosos, em nossa época. Renovação do conflito entre as necessidades e os desejos, onde, como que por acaso, é a Lei que esvazia a concha.
Quanto a contestação a fazer ao apólogo kantiano, o amor cortês não oferece uma via menos tentadora, mas ela exige ser erudita. Ser erudito por postura é atrair para si os eruditos, e os eruditos, nesse campo, são a entrada dos clowns.
Já Kant, aqui, por pouco nos faria perder nossa seriedade, por não ter o menor senso do cômico (como prova o eu diz dele no devido lugar).
Mas alguém aquém ele falta, a este, de um modo completamente absoluto, como já se observou, é Sade. Esse limite talvez lhe fosse fatal, e não se fez um prefácio para não piorar as coisas.

Assim, passemos ao segundo tempo do apólogo de Kant. Ele não é mais conclusivo para seus propósitos. Pois, supondo-se que seu hilota tenha o menor senso de oportunidade, ele lhe perguntará se porventura seria seu dever prestar um testemunho verdadeiro, caso fosse esse o meio de o tirano poder satisfazer sua cobiça.
Deve ele dizer eu o inocente é judeu, por exemplo, se ele realmente o for, diante de um tribunal, já vimos coisas assim, que nisso encontre motivo de censura? – ou então, que ele é ateu, quando, justamente, talvez ele próprio seja um homem mais entendido no peso da acusação do que um consistório que queira apenas um dossiê? – e quanto ao desvio “da linha”, deve ele alegar inocência, num momento e num lugar em que a regra do jogo e a autocrítica? – e o que mais? Afinal, se um inocente nunca é totalmente imaculado, irá ele dizer o que sabe?
Pode-se erigir em dever a máxima de contrariar o desejo do tirano, se o tirano for aquele que se arroga o poder de subjugar o desejo do Outro.
Assim, nas duas extensões (e na mediação precária) de que a Kant se faz a alavanca, para mostrar que a Lei põe em equilíbrio não somente o prazer, mas também a dor, a felicidade, ou igualmente a pressão da miséria e até o amor a vida, todo o patológico, constata-se que o desejo pode não apenas ter o mesmo sucesso, mas alcançá-lo ainda com mais razão.
Mas, se a vantagem que deixamos a Crítica levar, pela alacridade de sua argumentação, deveu alguma coisa a nosso desejo de saber onde ela queria chegar, não pode a ambigüidade desse sucesso inverter seu movimento no sentido de uma revisão das concessões detectadas?
E o caso, por exemplo, do desfavor com que, um tanto apressadamente, foram atingidos todos os objetos propostos como bens, por serem incapazes de harmonizar as vontades: simplesmente por introduzirem nelas a competição. Como Milão, que Carlos V e Francisco I souberam o que lhes custou, por ambos verem nela o mesmo bem.
Isso equivale realmente a desconhecer o que acontece com o objeto do desejo.
O qual só podemos introduzir, aqui, relembrando o que ensinamos sobre o desejo, a ser formulado como desejo do Outro, por ser, originalmente, desejo de seu desejo. O que torna concebível a harmonia dos desejos, mas não sem perigo. Pela simples razão de que, ao se ordenarem numa cadeia que se assemelha a procissão dos cegos de Bruegel, cada um, sem duvida, tem a mão daquele que o precede, mas ninguém sabe para onde todos estão indo.
Ora, ao arrepiar caminho, todos têm realmente a experiência de uma regra universal, mas por não estarem mais informados a respeito dela.
Acaso a solução conforme a Razão prática seria eles ficarem girando em círculos?
Mesmo faltando, o olhar decerto é aí o objeto que apresenta a cada desejo sua regra universal, materializando sua causa ao ligá-la a divisão “entre centro e ausência” do sujeito.
Atenhamo-nos, por conseguinte, a dizer que uma prática como a psicanálise, que reconhece no desejo a verdade do sujeito, não pode desconhecer que virá depois, sem demonstrar aquilo que recalca.
O desprazer é aí reconhecido por experiência, como dando pretexto ao recalque do desejo, ao se produzir no caminho de sua satisfação – mas também como dando a forma assumida por essa mesma satisfação no retorno do recalcado.
Similarmente, o prazer redobra sua aversão ao reconhecer a lei, por dar suporte ao desejo de satisfazê-la que é a defesa.
Se a felicidade é a satisfação ininterrupta do sujeito com sua vida, como a define muito classicamente a Crítica, é claro que ela se recusa a quem ano renúncia a vida do desejo. Essa renúncia pode ser pretendida, mas ao preço da verdade do homem, o que fica bastante claro na reprovação a que se expuseram, diante do ideal comum, os epicuristas e até os estóicos. Sua ataraxia destitui sua sabedoria. Não se lhes leva minimamente em conta que eles rebaixem o desejo, pois não apenas não se considera a Lei tão elevada assim, como também é por isso, quer o saibamos, quer não, que ela é sentida como derrubada.
Sade, o ci-devant, retoma Saint-Just onde convém. Que a felicidade tenha-se tornado um fator da política é uma proposição imprópria. Ela sempre o foi, e levará o cetro e o incensório, que lhe caem muito bem. E a liberdade de desejar que constitui um fator novo, não por inspirar uma revolução – é sempre por um desejo que se luta e se morre - , mas pelo fato de essa revolução querer que sua luta seja em prol da liberdade do desejo.
Daí resulta ela querer também que a lei seja livre, tão livre que lhe convém ser viúva, a Viúva por excelência, aquela que nos joga a cabeça no cesto, por menos que se intrometa no assunto. Houvesse a cabeça de Saint-Just continuado povoada pelas fantasias de Organt, talvez ele tivesse feito de Thermidor seu triunfo.
O direito ao gozo, se fosse reconhecido, relegaria a uma era desde então caduca a dominação do princípio do prazer. Ao enunciá-lo, Sade faz com que se insinue para todos, por uma fresta imperceptível, o antigo eixo da ética: que não é outro senão o egoísmo da felicidade.
A qual não se pode dizer que qualquer referencia esteja extinta em Kant, pela própria familiaridade com que lhe faz companhia e, mais ainda, pelos rebentos que dela captamos nas exigências com que ele argumenta igualmente a favor de uma recompensa no para-alem e de um progresso cá embaixo.
Vislumbre-se uma outra felicidade, cujo nome dissemos no princípio, e o status do desejo se altera, impondo seu reexame.

Mas é aqui que algo deve ser julgado. Até onde nos leva Sade na experiência desse gozo, ou simplesmente de sua verdade?
Pois essas pirâmides humanas, fabulosas para demonstrar o gozo em sua natureza de cascata, essas grandes forças do desejo, edificadas para que o gozo matize os jardins d’Este com uma volúpia barroca, quanto mais alto elas o fizessem jorrar do céu, mais de perto nos atrairia a questão do que flui nele.
Desde os imprevisíveis quanta com que se faz cintilar o átomo amor-ódio até a vizinhança da Coisa, de onde o homem emerge com um grito, o que se experimenta, ultrapassamos certos limites, nada tem a ver com aquilo pelo qual o desejo se apóia na fantasia, que justamente se constitui a partir desses limites.
Esses limites, sabemos que em sua vida Sade os transpôs.
E essa épura de sua fantasia em sua obra, sem dúvida ele não no-la teria dado de outro modo.
Talvez causemos espanto ao questionar o que, dessa experiência real, a obra também traduziria.
A nos atermos a alcova, para um bosquejo bem incisivo dos sentimentos de uma jovem para com sua mãe, o fato é que a maldade,tão justamente situada por Sade em sua transcendência, não nos ensina aqui muito de novo sobre suas modulações amorosas.
Uma obra que se pretende má não pode permitir-se ser má obra, e convém dizer que A filosofia se presta a esta alfinetada por toda uma faceta de boa obra.
Há um pouco de pregação demais dentro dela.
Sem dúvida, é um tratado de educação para moças, e como tal esta sujeito as leis de um gênero. Apesar do proveito que tira de expor as claras o “sádico-anal” que enfumaçava esse tema, em sua insistência obsedante nos dois séculos anteriores, ele continua a ser um tratado educativo. O sermão ali é maçante pra a vítima, e enfatuado por parte do professor.
A informação histórica, ou, melhor dizendo, erudita, é desinteressante no livro e dá saudade de um La Mothe Le Vayer. A fisiologia compõe-se ai com receitas de ama-de-leite. No tocante a educação sexual, e como se lêssemos um opúsculo médico de nossa época sobre o assunto, o que já é dizer tudo.
Uma perseverança maior no escândalo ajudaria a reconhecer, na impotência com que comumente se exibe a intenção educativa, justamente aquela contra a qual a fantasia se esforça ali: daí nasce um obstáculo a qualquer apreciação válida dos efeitos da educação, já que não se pode confessar da intenção o que produziu os resultados.
Esse traço poderia ter sido impagável, pelos efeitos louváveis da impotência sádica. Que tenha escapado a Sade dá o que pensar.
Sua carência se confirma por outra não menos notável: o livro nunca nos apresenta o sucesso de uma sedução, com o qual, no entanto, se coroaria a fantasia: aquela em que a vitima, nem que fosse em seu derradeiro espasmo, viesse a consentir na intenção de seu torturador, e até passasse para o lado dele, pelo ardor desse consentimento.
Com o que se demonstra, por outra visão, que o desejo é o avesso da lei. Na fantasia sadiana, vemos como eles se sustentam. Para Sade, sempre se esta do mesmo lado, o bom e o mau: nenhuma afronta mudará nada. Portanto, é o triunfo da virtude: esse paradoxo só faz reencontrar o sarcasmo próprio do livro edificante, por demais almejado por Justine para que ela não o defenda.
A não ser pelo nariz que se agita, encontrado no final do Diálogo de um padre e um moribundo, póstumo (admitam que esse é um tema pouco propicio a outras graças que não a graça divina), na obra faz-se as vezes sentir a falta de um chiste e, diríamos em termos mais amplos, do wit do qual Pope, fazia quase um século, havia enunciado a exigência.
Evidentemente, isso é esquecido pela invasão pedante que pesa sobre as letras francesas desde a W.W.II.
Mas, se vocês precisam de um estomago resistente para acompanhar Sade quando ele prega a calúnia, primeiro artigo da moral a ser instituída em sua república, preferíamos que ele pusesse nisso a malícia de um Renan. “Felicitemo-nos”, escreve este, “por Jesus não ter deparado com nenhuma lei que punisse o ultraje a uma classe de cidadãos. Os fariseus teriam sido invioláveis.” E continua: “Suas zombarias requintadas, suas provocações mágicas sempre acertavam na mosca. O manto de Nesso do ridículo que o judeu, filho dos fariseus, arrasta em farrapos há dezoito séculos, foi Jesus quem o teceu por um artifício divino. Obra-prima da alta chacota, suas tiradas inscreveram-se qual fio de fogo na carne do hipócrita e do falso devoto. Tiradas incomparáveis, tiradas dignas de um Filho de Deus! Só um Deus sabe matar assim. Sócrates e Moliére apenas roçam a pele. Este leva até a medula o fogo e a ira.
Pois esses comentários ganham valor pela seqüência que conhecemos, ou seja, pela vocação do Apóstolo dentre as fileiras dos fariseus e pela vitoria das virtudes farisaicas, universal. O que, havemos de ouvir, presta-se a uma argumentação mais pertinente do que a desculpa bastante medíocre com que se contenta Sade em sua apologia da calúnia: a de que o homem de bem sempre triunfará sobre ela.
Essa mediocridade não impede a sombria beleza que se irradia desse monumento de desafios. Ela nos atesta a experiência que procuramos por trás da fabulação da fantasia. Experiência trágica, por projetar aqui sua condição num clarão vindo de para-além de qualquer temor e piedade.
Assombro e trevas, eis, ao contrário do chiste, a conjunção, que nessas cenas nos fascina por seu brilho de carvão.
Esse trágico é do tipo cuja precisão, será efetuada em data posterior do século, em mais de um livro, romance erótico ou drama religioso. Nós o chamaríamos o trágico senil, que nem mesmo nos sabíamos, a não ser nas piadas de estudante, estar a uma pedrada de distância do trágico nobre. Que se faça referencia, para nos entender, a trilogia claudeliana do Pai humilhado. (Para nos entenderem, que saibam também que demonstramos nessa obra os traços da mais autentica tragédia. E Melpômene que é gagá, com Clio, sem que se veja qual delas enterrara a outra.)

Ei-nos enfim intimados a interrogar o Sade, meu semelhante, cuja invocação devemos a extrema perspicácia de Pierre Klossowski.
Sem duvida, a discrição desse autor faz com que coloque sua formula sob a proteção de uma referencia a são Labro. Não nos sentimos com maior inclinação a lhe dar a mesma guarida.
Que a fantasia sadiana consiga situar-se melhor nos suportes da ética cristã do que em outros lugares, eis o que nossas balizas de estrutura tornam fácil de apreender.
Mas que Sade, por sua vez, se recusa a ser meu semelhante, eis o que deve ser lembrado, não para lhe pagar na mesma moeda, mas para reconhecer o sentido dessa recusa.
Cremos que Sade não e tão vizinho de sua própria maldade que nela possa encontrar seu próximo. Traço que compartilha com muitos, em especial com Freud. Pois esse é realmente o único motivo do recuo de alguns seres, talvez advertidos, diante do mandamento cristão.
Em Sade, vemos a prova disso –crucial, a nosso ver – em sua recusa da pena de morte, cuja historia bastaria para provar, se não sua lógica, que ela é um dos correlatos da Caridade.
Sade, portanto, deve-se nisso, no ponto em que se ata o desejo a lei.
Se alguma coisa nele deixou-se prender a lei, para nela encontrar a oportunidade, da qual fala São Paulo, de ser desmentidamente pecador, quem lhe atiraria a pedra? Só que ele não foi mais longe.
Não é apenas que nele, como em todo o mundo, a carne seja fraca: é que o espírito é impetuoso demais para não ser tapeado. A apologia do crime impele-o apenas ao reconhecimento indireto da Lei. O Ser supremo é restaurado no Malefício.
Escutem-no exaltar-lhes sua técnica de pôr imediatamente, em prática tudo o que lhe vêm a cabeça, pensando igualmente, ao substituir o arrependimento pela reiteração, acabar com a lei do lado de dentro. Ele não encontra nada melhor para nos encorajar a segui-lo do que a promessa de que a natureza, magicamente, como mulher que é, nos fará cada vez mais concessões.
Seria um erro nos fiarmos nesse típico sonho de poder.
Ele nos indica suficientemente, em todo caso, que não há como conceber que Sade, com P. Klossowski sugere, embora assinale não crer nisso, tenha atingido aquele tipo de apatia que seria “de haver reingressado no seio da natureza, em estado de vigília, em nosso mundo” habitado pela linguagem.
Do que falta aqui em Sade, proibimo-nos de dizer uma palavra. Que o sintam na gradação da Filosofia, pelo fato de ser a agulha curva, tão cara aos heróis de Bunuel, que é finamente chamada a resolver na moça um Penisneid meio visível nela.
Seja como for, evidencia-se que não se ganhou nada ao substituir Diotima por Dormancé, pessoa a quem a vida comum parece assustar mais do que convém, e que, como viu Sade, encerra o assunto com um Noli tangere matrem. V... ée e costurada, a mãe continua proibida. Está confirmado nosso veredito sobre a submissão de Sade a Lei.
De um verdadeiro tratado sobre o desejo, portanto, pouco há aqui, ou mesmo nada.
O que se anuncia nesse revés extraído de um acaso não passa, quando muito, de um tom de razão.

R.G., setembro de 1962.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Introdução teórica as funções da psicanálise em criminologia - JACQUES LACAN

Comunicação para a XIII Conferência dos Psicanalistas de Língua Francesa (29 de maio de 1950), em colaboração com Michel Cénac

I. Do movimento da verdade nas ciências do homem
Se a teoria nas ciências fisicas nunca escapou realmente a exigência de coerência interna que constitui o próprio movimento do conhecimento, as ciências do homem, por se encarnarem em comportamentos na própria realidade de seu objeto, não podem eludir a questão de seu sentido, nem fazer com que a resposta se imponha em termos de verdade.
Que a realidade do homem implique esse processo de revelação, eis ai um fato que fundamenta para alguns pensar a história como uma dialética inscrita na matéria; e inclusive uma verdade que nenhum ritual de proteção “behavorista” do sujeito frente a seu objeto há de castrar com sua agudeza criadora e mortal, e que faz do próprio estudioso, devoto do “puro” conhecimento, um responsável em primeiro grau.
Ninguém sabe disso melhor que o psicanalista, que, no entendimento do que lhe confia seu sujeito assim como no manejo dos comportamentos condicionados pela técnica, age por uma revelação cuja verdade condiciona a eficácia.
Por outro lado, não seria a busca da verdade o que constitui o objeto da criminologia na ordem das coisas judiciárias, e também o que unifica suas duas faces: a verdade do crime em sua face policial, a verdade do criminoso em sua face antropológica?
Em que contribuem para essa busca a técnica que norteia nosso diálogo com o sujeito e as noções que nossa experiência definiu em psicologia, eis o problema que constituirá hoje nosso propósito: menos para falar de nossa contribuição ao estudo da delinqüência – exposta nos outros relatórios – do que para estabelecer seus limites legítimos, e por certo não para propagar a letra de nossa doutrina sem uma preocupação de método, mas para repensá-la, como nos é recomendado fazer incessantemente, em função de um novo objeto.

II. Da realidade sociológica do crime e da lei, e da relação da psicanálise com seu fundamento dialético

Nem o crime nem o criminoso são objetos que se possam conceber fora de sua referencia sociológica.
A máxima “é a lei que faz o pecado” continua a ser verdadeira fora da perspectiva escatológica da Graça em que São Paulo a formulou.
Ela é cientificamente confirmada pela constatação de que não há sociedade que não comporte uma lei positiva, seja esta tradicional ou escrita, de costume ou de direito. Tampouco existe aquela em que não apareçam no grupo todos os graus de transgressão que definem o crime.
A pretensa obediência “inconsciente”, “forçada” ou “intuitiva” do primitivo a regra do grupo é uma concepção etnológica, fruto de uma insistência imaginária que lançou seu reflexo sobre muitas outras concepções das “origens”, porém tão mítica quanto elas.
Toda sociedade, por fim, manifesta a relação do crime com a lei através de castigos cuja realização, sejam quais forem suas modalidades, exige um assentimento subjetivo. Quer o criminoso, com efeito, se constitua ele mesmo no executor da punição que a lei dispõe como preço do crime – como no caso do incesto cometido nas ilhas Trobriand entre primos matrilineares, e cujo desfecho Malinowski nos relata em seu livro, capital nessa matéria, sobre O crime e o costume nas sociedades selvagens (e não importam as motivações psicológicas em que se decompõe a razão do ato, nem tampouco as oscilações de vendeta que as maldições do suicida podem gerar no grupo) -, quer a sanção prevista por um código penal comporte um processo que exija aparelhos sociais muito diferenciados, esse assentimento subjetivo é necessário a própria significação da punição.
As crenças mediante as quais essa punição se motiva no indivíduo, assim como as instituições pelas quais ela passa ao ato no grupo, permitem-nos definir numa dada sociedade aquilo que designamos, na nossa, pelo termo responsabilidade.
Mas, é preciso que a entidade responsável seja sempre equivalente. Digamos que se, primitivamente, é a sociedade em seu conjunto (sempre fechado, em princípio, como realçaram os etnólogos) que é considerada afetada, pelo fato de que um de seus membros deva ser restabelecido de um desequilíbrio, esse membro é tão pouco responsável como indivíduo que, muitas vezes, a lei exige satisfações a custa ou bem de um dos defensores ou bem da coletividade de um “in-group” que o encobre.
Ocorre até que a sociedade se considere tão alterada em sua estrutura que recorre a processos de exclusão do mal sob a forma de um bode expiatório, ou então de regeneração através de um recurso externo. Responsabilidade coletiva ou mística da qual nossos costumes trazem os vestígios, quando não tenta vir novamente a luz por meios invertidos.
Mas, também nos casos em que a punição limita-se a atingir o indivíduo fautor do crime, não é na mesma função nem, se quisermos, na mesma imagem dele mesmo que ele é tido como responsável, o que fica evidente ao refletirmos sobre a diferença da pessoa que tem que responder por seus atos conforme seu juiz represente o Santo Ofício ou presida o Tribunal do Povo.
E é aí que a psicanálise, pelas instancias que distingue no indivíduo moderno, pode esclarecer as vacilações da noção de responsabilidade em nossa época e o advento correlato de uma objetivação do crime para a qual ela pode colaborar.
Pois, com efeito, se em razão de limitar ao indivíduo a experiência que ela constitui, ela não pode ter a pretensão de apreender a totalidade de qualquer objeto sociológico, nem tampouco o conjunto das motivações atualmente em ação em nossa sociedade, persiste o fato de que ela descobriu tensões relacionais que parecem desempenhar em todas as sociedades uma função basal, como se o mal-estar da civilização desnudasse a própria articulação da cultura com a natureza. Podemos estender suas equações, com a ressalva de efetuar sua transformação correta, as ciências do homem que podem utilizá-las e, especialmente, como veremos, a criminologia.
Acresce que, se o recurso a confissão do sujeito, que é uma das chaves da verdade criminológica, e a reintegração na comunidade social, que é uma das finalidades de sua aplicação, parecem encontrar uma forma privilegiada no diálogo analítico, isso se dá, antes de mais nada, porque, podendo ser levado as significações mais radicais, esse diálogo aproxima-se do universal que esta incluído na linguagem e que, longe de podermos eliminá-lo da antropologia, constitui seu fundamento e seu fim, pois a psicanálise é apenas uma extensão técnica que explora no indivíduo o alcance da dialética que escande as produções de nossa sociedade e onde a máxima pauliniana recupera sua verdade absoluta.
A quem nos perguntar aonde nos leva tal colocação, responderemos, com o risco gratamente assumido de descartar a jactância clínica e o farisaísmo preventivo, remetendo-o a um dos diálogos que nos relatam os atos do herói da dialética e, em especial, ao Górgias, cujo subtítulo, invocando a retórica e bem feito para distrair a incultura contemporânea, contém um verdadeiro tratado do movimento do Justo e do Injusto.
Ali, Sócrates refuta a enfatuação do Mestre/Senhor, encarnado num homem livre dessa pólis antiga cujo limite é dado pela realidade do Escravo. Forma que abre caminho para o homem livre da Sabedoria, ao reconhecer o absoluto da Justiça nela estabelecido em virtude da simples linguagem, sob a maiêutica do Interlocutor. Assim, Sócrates, não sem fazê-lo aperceber-se da dialética, tão sem fundo quanto o tonel das Danaides, das paixões do poder, nem poupá-lo de reconhecer a lei de seu próprio ser político na injustiça da polis, acaba por incliná-lo ante os mitos eternos em que se exprime o sentido do castigo, da emenda para o individuo e do exemplo para o grupo, muito embora ele próprio, em nome do mesmo universal, aceite o destino que lhe cabe e se submeta da antemão ao veredito insensato da polis que o fez homem.
Nada há de inútil, com efeito, em lembrar o momento histórico em que nasceu uma tradição que condicionou o aparecimento de todas as nossas ciências e na qual se afirmou o pensamento do iniciador da psicanálise, quando ele proferiu com uma confiança patética: “ A voz do intelecto é baixa, mas não pára enquanto não se faz ouvida” – onde cremos ouvir, num eco abafado, a própria voz de Sócrates dirigindo-se a Cálicles: “A filosofia diz sempre a mesma coisa.”

III. Do crime que exprime o simbolismo do supereu como instancia psicopatológica: se a psicanálise irrealiza o crime, ela não desumaniza o criminoso

Se nem sequer podemos captar a realidade concreta do crime sem referi-lo a um simbolismo cujas formas positivas coordenam-se na sociedade, mas que se inscreve nas estruturas radicais que a linguagem transmite inconscientemente, esse simbolismo foi também o primeiro sobre o qual a experiência psicanalítica demonstrou, através de efeitos patogênicos, a que limites ate então desconhecidos ele repercute no individuo, tanto em sua fisiologia quanto em sua conduta.
Assim, foi partindo de uma das significações de relação que a psicologia das “sínteses mentais” recalcava ao Maximo em sua reconstrução das funções individuais que Freud inaugurou a psicologia que se reconhecer bizarramente como sendo a das profundezas, sem duvida em razão do alcance totalmente superficial daquilo cujo lugar ela tomou.
Esses efeitos, dos quais ela descobriu o sentido, ela os designou audaciosamente pelo sentimento que lhes é correspondente na vivência: a culpa.
Nada poderia manifestar melhor a importância da revolução freudiana do que o uso técnico ou vulgar, implícito ou rigoroso, confesso ou sub-reptício, que é feito em psicologia dessa verdadeira categoria onipresente desde então, de tão desconhecida que era – nada, a não ser os estranhos esforços de alguns para reduzi-la a formas “genéticas” ou “objetivas”, trazendo a garantia de um experimentalismo “behavorista” que há muito se haveria calado, caso se abstivesse de ler nos fatos humanos as significações que os especificam como tais.
E mais, a primeira situação, cuja noção ainda somos devedores a iniciativa freudiana por tê-la introduzido em psicologia para que ele ali obtivesse, no correr do tempo, o mais prodigioso sucesso – primeira situação, dizemos, não como confronto abstrato esboçando uma relação, mas como crise dramática que se resolve como estrutura -, é justamente a do crime em suas duas formas mais abominadas, o Incesto e o Parricídio, cuja sombra engendra toda a patogênese do Édipo.
E é inconcebível que, havendo recebido na psicologia tamanha contribuição do social, o médico Freud tenha ficado tentado a lhe fazer algumas retribuições e que, com Totem e tabu, em 1912, tenha querido demonstrar n crime primordial a origem da Lei universal. Não importa a que critica de método esteja sujeito esse trabalho, o importante foi que ele reconheceu que com a Lei e o Crime começava o homem, depois de o clinico haver mostrado que suas significações sustentavam inclusive a forma do individuo, não apenas em seu valor para o outro, mas também em sua ereção para si mesmo.
Assim veio a luz a concepção do supereu, inicialmente fundamentada em efeitos de censura inconsciente que explicavam estruturas psicopatológicas já identificadas, logo depois esclarecendo as anomalias da vida cotidiana e, por último, correlata a descoberta de uma morbidez imensa, ao mesmo tempo que de seus moveis psicogenéticos: a neurose de caráter, os mecanismos do fracasso, as impotências sexuais, “der gehemmte Mensch”.
Revelou-se assim uma imagem moderna do homem que contrastava estranhamente com as profecias dos pensadores do fim do século, imagem tão derrisória para as ilusões alimentadas pelos libertários quanto para as inquietações inspiradas nos moralistas pela emancipação das crenças religiosas e pelo enfraquecimento do laços tradicionais. A concupiscência que reluzia nos olhos do velho Karamazov quando ele interrogava seu filho – “Deus está morto, agora tudo é permitido” -, esse homem, o mesmo que sonha com o suicídio niilista do herói de Dostoievski ou se obriga a encher a lingüiça nietzschiana, responde com todos os seus males e com todos os seus gestos: “Deus está morto, nada mais é permitido.”
Esses males e esses gestos, a significação da autopunição os abrange a todos. Caberá então estende-la a todos os criminosos, na medida em que, segundo a formula pela qual se exprime o humor glacial do legislador, como ninguém pode alegar desconhecer a lei, qualquer um pode prever sua incidência e deve, portanto, ser tido com procurando seu castigo?
Esse comentário irônico deve, ao nos obrigar a definir o que a psicanálise reconhece como crimes ou delitos provenientes do supereu, permitir-nos formular uma critica do alcance dessa noção em antropologia.
Reportemo-nos as notáveis observações princeps pelas quais Alexander e Staub introduziram a psicanálise na criminologia. Seu teor é convincente, quer se trate de “tentativa de homicídio de um neurótico”, quer dos furtos singulares do estudante de medicina que não sossegou enquanto não se fez aprisionar pela policia berlinense, e que, em vez de adquirir o diploma a que seus conhecimentos e seus dons reais lhe davam direito, preferia exercê-los infringindo a lei, quer ser trate ainda do “possesso das viagens de automóvel”. Releiamos também a análise que fez a sra. Marie Bonaparte do caso da sra. Lefebvre: a estrutura mórbida do crime ou dos delitos é evidente: o caráter forçado destes na execução, sua estereotipia quando eles se repetem, o estilo provocador da defesa ou da confissão, a incompreensibilidade dos motivos, tudo confirma a “coação por uma força a que o sujeito não pode resistir”, e os juízes de todos esses casos concluíram nesse sentido.
Essas condutas, no entanto, tornam-se perfeitamente claras a luz da interpretação edipiana. Mas o que as distingue como mórbidas é seu caráter simbólico. Sua estrutura psicopatológica não está, de modo algum, na situação criminal que elas exprimem, mas no modo irreal dessa expressão.
Para nos fazermos compreender ate o fim, contrastemos com elas um fato que, apesar de constante nos anais dos exércitos, adquire toda a sua importância do modo, ao mesmo tempo muito extenso e seletivo dos elementos associais, pelo qual se efetua há mais de um século, em nossas populações, o recrutamento dos defensores da pátria ou da ordem social, qual seja, o gosto que se manifesta na coletividade assim formada, no dia de gloria que a põe em contato com seus adversários civis, pela situação que consiste em violar uma ou varias mulheres na presença de um macho, de preferência idoso e previamente reduzido a impotência, sem que nada leve a presumir que os indivíduos que a realizam se distingam, antes ou depois, como filhos ou maridos, com pais ou cidadãos, da moralidade normal. Fato simples, que bem podemos qualificar de fait divers , pela diversidade do credito que lhe é atribuído conforme sua fonte, e até, propriamente falando, de divertido, pelo material que essa diversidade oferece as propagandas.
Dizemos que há nisso um crime real, embora ele seja praticado precisamente numa forma edipiana, e o fautor seria justificadamente castigado se as condições heróicas em que se considera que tenha sido realizado não fizessem, na maioria das vezes, com que a responsabilidade fosse assumida pelo grupo que encobre o individuo.
Reencontramos, pois, as formulas límpidas que a morte de Mauss traz de novo a luz de nossa atenção: as estruturas da sociedade são simbólicas: o individuo, na medida em que é normal, serve-se delas em condutas reais; na medida em que é psicopata, exprime-se por condutas simbólicas.
Mas e evidente que o simbolismo assim expresso só pode ser parcelar, ou, quando muito, pode-se afirmar que ele marca o ponto de ruptura ocupado pelo individuo na rede das agregações sociais. A manifestação psicopática pode revelar a estrutura da falha, mas essa estrutura só pode ser tomada por um elemento na exploração do conjunto.
Eis por que as tentativas sempre renovadas e sempre falaciosas de fundamentar na teoria analítica noções como as de personalidade modal, caráter nacional ou supereu coletivo devem por nos ser dela distinguidas com o máximo rigor. Compreende-se, é claro, a atração que uma teoria que deixa transparecer de maneira tão sensível a realidade humana exerce sobre os pioneiros de campos da mais incerta objetivação; acaso não ouvimos um eclesiástico, cheio de boa vontade, prevalecer-se perante nós de sua intenção de aplicar os dados da psicanálise ao simbolismo cristão? Para cortar pela raiz essas extrapolações indevidas, basta sempre referir novamente a teoria a experiência.
E é nisso que o simbolismo, doravante reconhecido na primeira ordem de delinqüência que a psicanálise isolou como psicopatológica, deve permitir-nos precisar, em extensão e em compreensão, a significação social do edipianismo, bem como criticar o alcance da noção de supereu para o conjunto das ciências do homem.
Ora, em sua maior parte, senão em sua totalidade, os efeitos psicopatológicos em que se revelaram as tensões oriundas do edipianismo, não menos do que as coordenadas históricas que impuseram esses efeitos ao talento investigativo de Freud, permitem-nos pensar que eles exprimem uma deiscência do grupo familiar no seio da sociedade. Essa concepção, que se justifica pela redução cada vez mais estreita desse grupo a sua forma conjugal, e pela conseqüência que se segue do papel formador cada vez mais exclusivo que lhe é reservado nas primeiras identificações da criança e na aprendizagem das primeiras disciplinas, explica o aumento do poder captador desse grupo sobre o individuo, na medida mesma do declínio de seu poder social.
Evoquemos apenas, para fixar as idéias, o fato de que, numa sociedade matrilinear como a dos Zuni ou dos Hopi, os cuidados com a criança, a partir do momento de seu nascimento, cabem por direito a irma de seu pai, o que a inscreve, desde que ela vem a luz, num duplo sistema de relações parentais, que se enriquecerão a cada etapa de sua vida por uma crescente complexidade de relações hierarquizadas.
Esta portanto superando o problema de comparar as vantagens que pode apresentar, para a formação de um supereu suportável para o individuo, uma certa pretensa organização matriarcal da família, em relação ao triangulo clássico da estrutura edipiana. A experiência deixou patente, doravante, que esse triangulo e apenas a redução ao grupo natural, efetuada por uma evolução histórica, de uma formação em que a autoridade reservada ao pai, único traço subsistente de sua estrutura original, mostra-se, de fato, cada vez mais instável ou obsoleta, e as incidências psicopatológicas dessa situação devem ser referidas tanto a escassez das relações grupais que ela assegura ao individuo quanto a ambivalência cada vez maior de sua estrutura.
Essa concepção confirma-se pela noção de delinqüência latente a que Aichhorn foi conduzido, ao aplicar a experiência analítica aos jovens de quem estava encarregado a titulo de uma jurisdição especial. Sabemos que Kate Friedlander elaborou dela uma concepção genética, sob a rubrica do “caráter neurótico”, e também que os críticos mais informados, desde o próprio Aichhorn ate Glover, pareceram surpreender-se com a incapacidade da teoria de distinguir a estrutura desse caráter, enquanto criminogênica, da estrutura desse caráter, enquanto criminogênica, da estrutura da neurose, onde as tensões permanecem latentes nos sintomas.
A colocação aqui trabalha permite entrever que o “caráter neurótico” é o reflexo, na conduta individual, do isolamento do grupo familiar, cuja posição associal esses casos sempre demonstram, ao passo que a neurose exprime, antes, suas anomalias estruturais. Alias, o que exige uma explicação é menos a passagem ao ato delituoso, num sujeito encerrado no que Daniel Lagache qualificou, muito justificadamente, de conduta imaginária, do que os processos pelos quais o neurótico adapta-se parcialmente ao real: trata-se, como sabemos, dessas mutilações autoplásticas que podemos reconhecer na origem dos sintomas.
Essa referencia sociológica do “caráter neurótico” concorda, de resto, com a gênese que dele fornece Kate Friedlander, se e exato resumi-la como a repetição, através da biografia do sujeito, das frustrações pulsionais que estariam como que detidas num curto-circuito na situação edipiana, sem nunca mais se engajar numa elaboração estrutural.
A psicanálise, em sua apreensão dos crimes determinados pelo supereu, tem como efeito, portanto, irrealizá-los. No que se harmonia com um obscuro reconhecimento que há muito se impôs aos melhores dentre aqueles a quem coube assegurar a aplicação da lei.
Alias, as vacilações registradas na consciência social ao longo de todo o século XIX, quanto a questão do direito de punir, são características. Seguro de si e até implacável, desde que apareça uma motivação utilitária – a ponto de o uso inglês da época tomar o pequeno delito, até mesmo de furto, que desse ensejo a um homicídio, como equivalente a premeditação que define o assassinato (cf. Alimena, La premeditazione) -, o pensamento dos penalogistas hesita diante do crime em que surgem instintos cuja natureza escapa ao registro utilitarista no qual se manifesta o pensamento de um Benthan.
Uma primeira resposta foi dada pela concepção lombrosiona nos primórdios da criminologia, considerando esses instintos atávicos e fazendo do criminoso um sobrevivente de uma forma arcaica da espécie, biologicamente isolável. Resposta da qual podemos dizer que trai sobretudo uma regressão filosófica muito mais real em seu autores, e cujo sucesso só pode explicar-se pelas satisfações que a euforia de classe dominante podia exigir, tanto para seu conforto intelectual quanto sua consciência pesada.
Havendo as calamidades da Primeira Guerra Mundial marcado o fim dessas pretensões, a teoria lombrosiana foi devolvida aos tempos d’antanho, e o mais simples respeito pelas condições apropriadas a qualquer ciência humana, as quais julgamos ter que relembrar em nosso exórdio, impôs-se até mesmo ao estudo do criminoso.
The Individual Offender, de Healy, marcou época no retorno aos princípios, instituindo antes de mais nada o de que esse estudo devia ser monográfico. Os resultados concretos trazidos pela psicanálise marcam uma outra época, tão decisiva pela confirmação doutrinaria que ele dão a esse principio quanto pela amplitude dos fatos valorizados.
Do mesmo modo, a psicanálise soluciona um dilema da teoria criminológica: ao irrealizar o crime, ela não desumaniza o criminoso.
Mais ainda, pela mola da transferência ela da acesso ao mundo imaginário do criminoso, que pode ser para ele a porta aberta para o real.
Observem-se aqui a manifestação espontânea dessa mola na conduta do criminoso e transferência que tende a se produzir para pessoa de seu juiz, da qual seria fácil colher provas. Citemos apenas, pela beleza do fato, as confidencias do chamado Frank ao psiquiatra Gilbert, encarregado da boa apresentação dos réus no processo de Nuremberg: esse Maquiavel derrisório, e neurótico a tal ponto que a ordem insensata do fascino confiou-lhe suas grandes obras, sentia o remorso agitar sua alma ante a simples aparência de dignidade encarnada na figura de seus juízes, particularmente a do juiz inglês, “tão elegante”, em suas palavras.
Os resultados obtidos com “grandes” criminosos por Melitta Schmideberg, embora sua publicação esbarre no obstáculo com que deparam todas as nossas análises, mereceriam ser acompanhados em sua catamnese.
Seja como for, os casos que decorrem claramente do edipianismo deveriam se confiados ao analista, sem nenhuma das limitações que podem entravar sua ação.
Como não fazer a experiência inteira disso, quando a penalogia justifica-se tão mal que repugna a consciência popular aplicá-la até mesmo aos crimes reais, como se vê no célebre caso, na América, relatado por Grotjahn em seu artigo “Searchlights on delinquency”, onde se vê o júri absolver os acusados, para entusiasmo do público, embora todas as acusações parecessem incriminá-los na prova do assassinato, simulado de acidente marítimo, dos pais de um deles?
Concluamos estas considerações completando as conseqüências teóricas que decorrem da utilização da noção de supereu. O supereu, diremos, deve ser tomado como uma manisfetação individual, ligada as condições sociais do edipianismo. Assim e que as tensões criminosas incluídas na situações familiar só se tornam patogênicas nas sociedade onde essa própria situação se desintegra.
Nesse sentido, o supereu revela a tensão, tal como a doença as vezes esclarece uma função na fisiologia.
Mas, nossa experiência dos efeitos do supereu, assim como a observação direta da criança a luz dessa experiência, revela-nos seu surgimento num estádio tão precoce que ele parece ser contemporâneo ou mesmo anterior ao surgimento do eu.
Melaine Klein afirma as categorias do Bom e do Mau no estádio infans do comportamento, levando o problema da implicação retroativa das significações numa etapa anterior ao surgimento da linguagem. Sabemos como seu método, manejando, sem levar em conta nenhuma objeção, as tensões do edipianismo numa interpretação ultraprecoce das intenções da criança pequena, desatou esse no pela ação, não sem provocar discussões apaixonadas em torno de suas teorias.
O fato e que a persistência imaginaria dos bons e maus objetos primordiais, em comportamentos de fuga que podem colocar o adulto em conflito com suas responsabilidades, levaria o supereu a ser concebido como uma instancia psicológica que, no homem, tem uma significação genérica. Essa noção, no entanto, nada tem de idealista; ela se inscreve na realidade da miséria fisiológica própria dos primeiros meses de vida do homem, genérica de fato em relação ao meio humano.
Que essa dependência possa surgir como significante no individuo, num estádio incrivelmente precoce de seu desenvolvimento, não e um fato diante do qual o psicanalista deva recuar.
Se nossa experiência com os psicopatas levou-nos a articulação da natureza com a cultura, nela descobrimos essa instancia obscura, cega e tirânica que parece ser a antinomia, no pólo biológico do individuo, do ideal do Dever puro que o pensamento kantiano coloca como contraparte da ordem incorruptível do céu estrelado.
Sempre pronta a emergir da desordem das categorias sociais, para recriar, segundo a bela expressão de Hesnard, o Universo mórbido da falta (faute), essa instância só e apreensível , contudo, no estado psicopático, isto é, no individuo.
Nenhuma forma do supereu, portanto, é passível de ser inferida do individuo para uma dada sociedade. E o único supereu coletivo que se pode conceber exigiria uma desagregação molecular integral da sociedade. E é verdade que o entusiasmo em que vimos toda uma juventude sacrificar-se por ideais de nada faz-nos entrever sua realização possível no horizonte de fenômenos sociais de massa que assim suporiam uma escala universal.

IV. Do crime em suas relações com a realidade do criminoso: se a psicanálise fornece sua medida, ela indica seu móvel social fundamental

A responsabilidade, isto é, o castigo, é uma característica essencial da idéia do homem que prevalece numa dada sociedade.
Uma civilização cujos ideais sejam cada vez mais utilitários, empenhada como esta no movimento acelerado da produção, nada mais pode conhecer da significação expiatória do castigo. Se ela conserva seu peso exemplar, é tendendo a absorvê-lo em seu fim correcional. E alem do mais, este muda imperceptivelmente de objeto. Os ideais do humanismo se resolvem no utilitarismo do grupo. E, como o grupo que faz a lei não está, por razões sociais, completamente seguro da justiça dos fundamentos de seu poder, ele se remete a um humanitarismo em que se exprimem igualmente a revolta dos explorados e a consciência pesada dos exploradores, para os quais a noção de castigo tornou-se igualmente insuportável. A antinomia ideológica reflete, aqui como em outros aspectos, o mal-estar social. Ela agora busca sua solução numa formulação cientifica do problema, isto é, numa análise psiquiátrica do criminoso a que deve reportar-se, após examinar todas as medidas de prevenção contra o crime e de proteção contra sua recidiva, o que podemos designar como uma concepção sanitária da penalogia.
Essa concepção supõe resolvidas as relações do direito com a violência e o poder de uma policia universal. Com efeito, nós vimos a consideração que recebeu em Nuremberg e, embora o efeito sanitário desse processo continue duvidoso, no tocante a supressão dos males sociais que ele pretendia reprimir, o psiquiatra não poderia ter-lhe faltado, por razões de “humanidade” que podemos ver que decorrem mais do respeito pelo objeto humano que da noção do próximo.
A evolução do sentido do castigo corresponde, com efeito, uma evolução paralela da formação da prova do crime.
Começando nas sociedades religiosas pelo ordálio ou pela prova do juramento, em que ou se designa o culpado a partir das motivações das crenças ou ele oferece seu destino ao julgamento de Deus, a formação da prova, a medida que se precisa a personalidade jurídica do individuo, exige cada vez mais seu compromisso com a confissão. Por isso é que toda a evolução humanista do Direito na Europa, que começa com a redescoberta do Direito romano na Escola de Bolonha e vai até a completa captação da justiça pelos jurisconsultos reais e a universalização da noção de direito das nações, é estritamente correlata, no tempo e no espaço, da difusão da tortura, igualmente inaugurada em Bolonha como meio de formação da prova do crime. Fato cujo alcance até hoje não parece ter sido considerado.
E que o desprezo da consciência que se manifesta no ressurgimento geral dessa pratica como método de opressão oculta-nos que fé ele supõe no homem como procedimento de aplicação da justiça.
Se foi no exato momento em que nossa sociedade promulgou os direitos do homem, ideologicamente baseados na abstração de seu ser natural, que a tortura foi abandonada em seu uso jurídico, isso não se deu em razão de um abrandamento dos costumes, difícil de sustentar na perspectiva histórica que temos da realidade social do século XIX; pois esse novo homem, abstraído de sua consistência social, já não é digno de crédito, nem em um nem no outro sentido desse termo; ou seja, já não estando ele sujeito a pecar, não se pode dar credito a sua existência como criminoso, nem tampouco, do mesmo modo, a sua confissão. Desde então, é preciso que haja seus motivos, com os móveis do crime, e esses motivos e esses móveis devem ser compreensíveis, e compreensíveis para todos, o que implica – como o formulou uma das melhores mentes dentre aquelas que tentaram repensar a “filosofia penal” em sua crise, e isto com uma retidão sociológica digna de fazer com que se reveja um esquecimento injusto, estamo-nos referindo a Tarde – o que implica, diz ele, duas condições para a plena responsabilidade do sujeito: a similitude social e a identidade pessoal.
Portanto, esta aberta ao psicólogo a porta do pretório, e o fato de ele só raramente aparecer ali em pessoa prova tão-somente a carência social de sua função.
A partir desse momento, a “situação de réu”, para empregar a expressão de Roger Grenier, já não pode ser descrita senão como o encontro de verdades inconciliáveis, como fica patente ao se assistir ao menor processo do Tribunal do Júri em que um perito seja chamado a depor. E flagrante a falta de um denominador comum entre as referencias sentimentais em que se confrontam o ministério publico e o advogado, por serem as do júri, e as noções objetivas que o perito traz, mas que, pouco dialético, não consegue fazer apreender, por não conseguir com elas obter uma conclusão de irresponsabilidade.
E podemos ver essa discordância, no espírito do próprio perito, voltar-se contra sua função num ressentimento que se manifesta com prejuízo de seu dever; pois já houve o caso de um perito junto ao Tribunal que se recusou a qualquer outro exame, afora o físico, de um réu alias manifestamente valido sob o aspecto mental, entrincheirando-se atrás do Código sob a alegação de que não tinha que chegar a uma conclusão sobre a realidade do ato imputado ao sujeito pelo inquérito policial, embora uma pericia psiquiátrica o advertisse expressamente de que um simples exame por esse ponto de vista demonstrava com certeza que o ato em questão era de pura aparência e que, como gesto de repetição obsessiva, não podia constituir, no local fechado, embora vigiado, em que se havia produzido, um delito de exibicionismo.
Ao perito, no entanto, é conferido um poder quase discricionário na dosagem da pena, por menos que ele se sirva do adendo acrescentado pela lei, para sua utilização, ao artigo 64 do Código.
Mas, com o simples instrumento desse artigo, ainda que ele não possa responder sobre o caráter coercitivo da força que acarretou o ato do sujeito, ao menos pode descobrir quem sofreu essa coerção.
A essa pergunta, porém, só o psicanalista pode responder, na medida em que só ele tem uma experiência dialética do sujeito.
Observe-se que um dos primeiros elementos cuja autonomia psíquica essa experiência o ensinou a apreender, ou seja, o que a teoria aprofundou progressivamente como representando a instancia do eu, é também aquilo que, no diálogo analítico, é declarado pelo sujeito como sendo dele mesmo, ou,mais exatamente, aquilo que, tanto por seus atos quanto por suas intenções, possui a declaração do sujeito. Ora, dessa declaração Freud reconheceu a forma que é mais característica da função que ela representa: é a Verneinung, a denegação.
Poderíamos descrever aqui toda uma semiologia das formas culturais pelas quais se comunica a subjetividade, a começar pela restrição mental característica do humanismo cristão – e que se recriminou tanto aqueles admiráveis moralistas que foram os jesuítas por haverem codificado seu uso – continuando pelo Kêtman, uma espécie de exercício de proteção contra a verdade que Gobineau nos indica ser geral, em seus relatos tão penetrantes sobre a vida social do Oriente Médio, e passando para o Jang, cerimonial de recusas que a polidez chinesa estabelece como graus no reconhecimento do outro, para reconhecer a forma mais característica de expressão do sujeito na sociedade ocidental, no protesto de inocência, e dizer que a sinceridade e o primeiro obstáculo encontrado pela dialética na busca das verdadeiras intenções, parecendo o uso primário da fala ter por fim disfarçá-las.
Mas, esse é apenas o afloramento de uma estrutura que se encontra através de todas as etapas da gênese do eu, e mostra que a dialética fornece a lei inconsciente das formações, mesmo as mais arcaicas, do aparelho de adaptação, assim confirmando a gnoseologia de Hegel, que formula a lei geradora da realidade no processo tese-antítese-síntese. E decerto é instigante ver os marxistas se esforçarem por descobrir,no progresso das noções essencialmente idealistas que constituem as matemáticas, os vestígios imperceptíveis desse processo, e desconhecerem sua forma ali onde ela deve com mais probabilidade aparecer, isto é, na única psicologia que manifestamente toca no concreto, por menos que sua teoria se declare guiada por essa forma.
E ainda mais significativo reconhecê-la na sucessão das crises – desmame, intrusão, Édipo, puberdade, adolescência – que reformulam, cada uma delas, uma nova síntese dos aparelhos do eu, numa forma cada vez mais alienante para as pulsões que ali são frustradas, e cada vez menos ideal para as que ali encontram sua normalização. Essa forma é produzida pelo fenômeno psíquico mais fundamental, talvez, que a psicanálise descobriu: a identificação, cujo poder formativo revela-se até na biologia. E cada um dos chamados períodos de latência pulsional (cuja serie correspondente e complementada pelo que Franz Wittels descobriu quanto ao ego adolescente) é caracterizado pelo predomínio de uma estrutura típica dos objetos do desejo.
Um de nos descreveu, na identificação do sujeito infans com a imagem especular, o modelo que ele considera mais significativo, ao mesmo tempo que o momento mais original da relação fundamentalmente alienante em que o ser do homem se constitui dialeticamente.
Ele demonstrou também que cada uma dessas identificações desenvolve uma agressividade que a frustração pulsional não basta para explicar, a não ser na compreensão do comum sense, tão cara ao Sr. Alexander, mas que exprime a discordância que se produz na realização alienante: fenômeno cuja noção podemos exemplificar através da forma caricata que dele fornece a experiência com animais na ambigüidade crescente (como a de uma elipse para um circulo) de sinais inversamente condicionados.
Essa tensão manifesta a negatividade dialética inscrita nas próprias formas em que se entranham no homem as forcas da vida, e podemos dizer que o talento de Freud deu a medida dela ao reconhecê-la como “pulsão do eu” sob o nome de instinto de morte.
Toda forma do eu encarna, com efeito, essa negatividade, e podemos dizer que se Clotó, Láquesis e Atropos partilham entre si o cuidado com nosso destino, é de comum acordo que elas torcem o fio de nossa identidade.
Assim, como a tensão agressiva ao integrar a pulsão frustrada cada vez que a falta de adequação do “outro” faz abortar a identificação resolutiva, ela determina com isso um tipo de objeto que se torna criminogênico na suspensão da dialética do eu.
Foi da estrutura desse objeto que um de nós tentou mostrar o papel funcional e a correlação com o delírio em duas formas extremas de homicídio paranóico, o caso “Aimée” e o das irmãs Papin. Este último caso comprova que só o analista pode demonstrar, contrariando o sentimento comum, a alienação da realidade do criminoso, num caso em que o crime dá a ilusão de responder a seu contexto social.
São também essas estruturas do objeto que Anna Freud, Kate Friedlander e Bowlby determinam, como analistas, nos casos de furto em jovens delinqüentes, conforme neles se manifeste o simbolismo do dom do excremento ou a reivindicação edipiana, a frustração da presença nutriz ou a da masturbação fálica – e a noção de que essa estrutura corresponde a um tipo de realidade que determina os atos do sujeito guia a parte que eles chamam de educativa em sua conduta para com eles.
Educação que é, antes, uma dialética viva, segundo a qual o educador, através de sue não-agir, leva as agressões próprias ao eu a se ligarem para o sujeito, alienando-se em suas relações com o outro, para que ele possa então desligá-las através das manobras da analise clássica.
E, certamente, a engenhosidade e a paciência que admiramos nas iniciativas de um pioneiro como Aichhorn não fazem esquecer que sua forma tem que ser sempre renovada, para superar as resistências que o “grupo agressivo” não pode deixar de manifestar contra qualquer técnica aceita.
Tal concepção da ação “correcional” opõe-se a tudo o que possa inspirar uma psicologia que se rotula de genética, a qual, na criança, só faz medir suas aptidões decrescentes para responder as perguntas que lhe são feitas no registro puramente abstrato das categorias mentais do adulto, e que basta para derrubar a simples apreensão do fato primordial de que a criança, desde suas primeiras manifestações de linguagem, serve-se da sintaxe e das partículas de acordo com nuances que os postulados da “gênese” mental só deveriam permitir-lhe atingir no auge de uma carreira de metafísico.
E já que essa psicologia pretende atingir, sob esses aspectos cretinizados, a realidade da criança, dizemos que é ao pedante que podemos realmente advertir que ele terá de corrigir seu erro, quando as palavras “Viva a morte”, proferidas por lábios que não sabem o que dizem, fizerem-no entender que a dialética circula ardente na carne, junto com o sangue.
Essa concepção especifica ainda o tipo de pericia que o analista pode fornecer da realidade do crime, fundamentando-se no estudo do que podemos chamar de técnicas negativistas do eu, sejam elas sofridas pelo criminoso ocasional ou dirigidas pelo criminoso contumaz: a saber, a inutilização basal das perspectivas espaciais e temporais exigidas pela previsão intimidante em que se fia ingenuamente a chamada teoria “hedonista” da penalogia: a supressão progressiva dos interesses no campo da tentação objetal, o retraimento do campo da consciência, proporcional a uma apreensão sonambúlica do imediato na execução do ato, e sua coordenação estrutural com fantasias que dele ausentam o autor – anulação ideal ou criações imaginárias em que se inserem, conforme uma espontaneidade inconsciente, as denegações, os álibis e as simulações em que se sustenta a realidade alienada que caracteriza o sujeito.
Queremos dizer aqui que toda essa cadeia não tem comumente a organização arbitrária de uma conduta deliberada, e que as anomalias estruturais que o analista nela possa destacar serão, para ele, outros tantos referenciais no caminho da verdade. Assim, ele interpretara mais profundamente o sentido dos traços freqüentemente paradoxais pelos quais se designa o autor do crime, e que menos significam os erros de uma execução imperfeita do que os fiascos de uma “psicopatologia cotidiana” por demais real.
As identificações anais, que a analise descobriu nas origens do eu, dão seu sentido ao que a medicina legal designa, no jargão policial, pelo nome de “cartão de visita”. A “assinatura” deixada pelo criminoso, muitas vezes flagrante, pode indicar em que momento da identificação do eu se produziu a repressão pela qual é possível dizer que o sujeito não pode responder por seu crime, e também pela qual ele permanece preso em sua denegação.
Até mesmo no fenômeno do espelho, em que um caso recentemente publicado pela Srta. Boutonier mostra-nos a mola de um despertar do criminoso para a consciência daquilo que o condena.
Essas repressões, haveremos nós de recorrer, para superá-las, a um desses métodos de narcose tão singularmente promovidos a ordem do dia pelos sustos que provocam nos virtuosos defensores da inviolabilidade da consciência?
Ninguém há de se extraviar menos que o psicanalista nesse caminho, antes de mais nada porque, contrariando a mitologia confusa em nome da qual os ignorantes esperam a “suspensão das censuras”, o psicanalista sabe o sentido exato das repressões que definem os limites da síntese do eu.
Por conseguinte, se ele já sabe que, no tocante ao inconsciente recalcado, quando a analise o restaura na consciência, e menos o conteúdo de sua revelação do que a mola de sua reconquista que constitui a eficácia do tratamento, a fortiori, no tocante as determinações inconscientes que sustentam a própria afirmação do eu, ele sabe que a realidade, quer se trate da motivação do sujeito, quer, as vezes, de sua própria ação, só pode aparecer através do progresso de um dialogo que o crepúsculo narcótico só poderia tornar inconsistente. Aqui, como em outros lugares, a verdade não e um dado que se possa captar em sua inércia, mas uma dialética em marcha.
Não busquemos a realidade do crime, portanto, nem tampouco a do criminoso, por meio da narcose. Os vaticínios que ela provoca, desnorteantes para o investigador, são perigosos para o sujeito que, por menos que participe de uma estrutura psicótica, pode encontrar nela o “momento fecundo” de um delírio.
A narcose, como a tortura, tem seus limites: não pode fazer o sujeito confessar aquilo que ele não sabe.
Assim, nas Questões medico-legais , que o livro de Zacchias nos atesta terem sido formuladas desde o século XVII em torno da noção de unidade da personalidade e das possíveis rupturas que nela pode introduzir a doença, a psicanálise traz o aparato de exame que abarca mais um campo de ligação entre a natureza e a cultura: aqui, o da síntese pessoal, em sua dupla relação de identificação formal, por um lado, que se abre para as hiânsias das dissoluções neurológicas (desde as crises epiléticas ate as amnésias orgânicas), e, por outro, de assimilação alienante, que se abre para as tensões das relações grupais.
Aqui, o psicanalista pode apontar ao sociólogo as funções criminogênicas próprias de uma sociedade que, exigindo uma integração vertical extremamente complexa e elevada da colaboração social, necessária a sua produção, propõe aos sujeitos, aos que ele se dedica, ideais individuais que tendem a se reduzir a um plano de assimilação cada vez mais horizontal.
Essa fórmula designa um processo cujo aspecto dialético podemos exprimir sucintamente, observando que, numa civilização em que o ideal individualista foi alçado a um grau de afirmação ate então desconhecido, os indivíduos descobrem-se tendendo para um estado em que pensam, sentem, fazem e amam exatamente as mesmas coisas nas mesmas horas, em porções do espaço estritamente equivalentes.
Ora, a noção fundamental da agressividade correlata a qualquer identificação alienante permite discernir que deve haver, nos fenômenos de assimilação social a partir de uma certa escala quantitativa, um limite, no qual as tensões agressivas uniformizadas tem de se precipitar em pontos onde a massa se rompe e se polariza.
Sabemos alias, que esses fenômenos, sob o simples ponto de vista da produtividade, já chamaram a atenção dos exploradores do trabalho que não ficam apenas nas palavras, e justificaram, para a Hawthorne Western Eletric , a despesa de um estudo sistemático das relações de grupo em seus efeitos sobre as disposições psíquicas mais desejáveis nos empregados.
Uma separação completa, por exemplo, entre o grupo vital, constituído pelo sujeito e pelos seus, e o grupo funcional, em que devem ser encontrados os meios de subsistência do primeiro, fato que basta ilustrar dizendo que ele torna verossímil o Sr. Verdoux – uma anarquia tão maior das imagens do desejo quanto mais elas parecem gravitar progressivamente em torno de satisfações escopofílicas, homogeneizadas na massa social, e pela posse e pelo prestigio nos ideais sociais, são outros tantos objetos de estudos para os quais a teoria analítica pode oferecer ao estatístico coordenadas corretas para introduzir suas mensurações.
Assim, o próprio político e o filosofo se beneficiado disso, conotando, numa dada sociedade democrática cujos costumes estendem sua dominação sobre o mundo, o surgimento de uma criminalidade recheando o corpo social, a ponto de assumir nele formas legalizadas, a inserção do tipo psicológico do criminoso entre os do recordista, do filantropo ou da estrela famosa, ou então sua redução ao tipo geral da servidão do trabalho, com a significação social do crime reduzida a seu uso publicitário.
Essas estruturas, nas quais uma assimilação social do indivíduo, levada ao extremo, mostra sua correlação com uma tensão agressiva cuja relativa impunidade no Estado é muito perceptível para um sujeito de uma cultura diferente (como era, por exemplo, o jovem Sun Yat Sen), aparecem invertidas quando, segundo um processo formal já descrito por Platão, a tirania sucede a democracia e efetua com os indivíduos, reduzidos a seu numero ordinal, o ato cardinal da adição, prontamente seguido pelas outras três operações fundamentais da aritmética.
E assim que, na sociedade totalitária, se a “culpa objetiva” dos dirigentes faz com que eles sejam tratados como criminosos e responsáveis, o apagamento relativo dessas noções, indicado pela concepção sanitária da penalogia, rende frutos para todos os outros. Abre-se o campo de concentração, para cuja alimentação as qualificações intencionais da rebelião são menos decisivas do que uma certa relação quantitativa entre as massas social e a massa excluída.
Sem duvida será possível avaliá-lo nos termos da mecânica desenvolvida pela chamada psicologia de grupo, permitindo determinar a constante irracional que deve corresponder a agressividade característica da alienação fundamental do individuo.
Assim, na injustiça mesma da polis – sempre incompreensível para o “intelectual” submetido a “lei do coração” – revela-se o progresso em que o homem se cria a sua própria imagem.

V. Da inexistência dos “instintos criminosos”: a psicanálise detém-se na objetivação do Isso e reivindica a autonomia de uma experiência irredutivelmente subjetiva

Se a psicanálise traz os esclarecimentos que dissemos a objetivação psicológica do crime e do criminoso, não terá ela também uma palavra a dizer sobre seus fatores inatos?
Observemos, primeiramente, a critica a que convém submeter a idéia confusa em que se fiam muitos homens de bem: a que vê no crime uma irrupção dos “instintos” que derrubam a “barreira” das forcas morais de intimidação. E uma imagem difícil de extirpar, pela satisfação que dá até mesmo as cabeças sisudas, ao lhes mostrar o criminoso fortemente guardado e o guarda tutelar, que, por ser característico de nossa sociedade, passa aqui a uma tranqüilizadora onipresença.
Pois, se o instinto significa efetivamente a incontestável animalidade do homem, não vemos por que esta seria mais dócil por estar encarnada num ser racional. A forma do adágio homo homini lupus é enganosa quanto a seu sentido, e Balthazar Gracian, num capitulo de seu Criticon, inventa um fabula em que mostra o que quer dizer a tradição moralista ao exprimir que a ferocidade do homem em relação a seu semelhante ultrapassa tudo o que podem fazer os animais, e que, ante a ameaça que ela representa para a natureza inteira, os próprios carniceiros recuam horrorizados.
Mas essa própria crueldade implica a humanidade. E um semelhante que ela visa, mesmo num ser de outra espécie. Nenhuma experiência sondou mais que a do analista, na vivência, a equivalência de que nos adverte o patético apelo do Amor – é a ti mesmo que atinges – e a gélida dedução do Espírito: é na luta mortal de puro prestígio que o homem se faz reconhecer pelo homem.
Se, num outro sentido, designam-se por instintos certas condutas atávicas cuja violência teria sido exigida pela lei da selva primitiva, e que qualquer enfraquecimento fisiopatológico libertária, a maneira dos impulsos mórbidos, do nível inferior em que elas estariam contidas, podemos indagar-nos por que, desde que o homem é homem, também não se revelaram nele impulsos de lavrar, plantar, cozinhar, ou até mesmo de enterrar os mortos.
A psicanálise decerto comporta uma teoria dos instintos, bastante elaborada e, para dizer a verdade, a primeira teoria verificável que deles se fez no homem. Mas ela os mostra comprometidos com um metamorfismo em que a fórmula de seu órgão, de sua direção e de seu objeto é uma faca de Jeannot com peças infinitamente intercambiáveis. Os Triebe ou pulsões que ali se isolam constituem apenas um sistema de equivalências energéticas em que referenciamos as trocas psíquicas, não na medida em que elas se subordinem a alguma conduta inteiramente montada, natural ou adquirida, mas na medida em que simbolizam, ou integram dialeticamente, as funções dos órgãos em que aparecem as trocas naturais, isto é, os orifícios bucal, anal e gênito-urinário.
Por conseguinte, essas pulsões só nos aparecem em ligações muito complexas, onde sua própria deformação não pode fazer com que se prejulgue sua intensidade originária. Falar de um excesso de libido é uma formulação desprovida de sentido.
Se há de fato uma noção que se depreende de um grande numero de indivíduos, capazes, tanto por seus antecedentes quanto pela impressão “constitucional” que se retira do contato com eles e de seu aspecto, de dar a idéia de “tendências criminosas”, trata-se mais de uma deficiência que de um excesso vital. A hipogenitalidade deles é freqüentemente manifesta, e seu clima irradia frieza libidinal.
Se numerosos sujeitos, em seus delitos, exibições, furtos, calotes e difamações anônimas, ou nos crimes da paixão homicida, encontram e buscam um estimulo sexual, este, sejam quais forem os mecanismos que o causam, angustia, sadismo ou associação situacional, não poderia ser tido como um efeito de transbordamento dos instintos.
Seguramente, é evidente a correlação de numerosas perversões nos sujeitos que vão a exame criminológico, mas ela só pode ser psicanaliticamente avaliada em função da fixação objetal, da estagnação do desenvolvimento, da implicação, na estrutura do eu, dos recalques neuróticos que constituem o caso individual.
Mais concreta é a noção com que nossa experiência completa a tópica psíquica do indivíduo – a do Isso -, porém, igualmente quão mais difícil que as outras de apreender.
Fazer a soma das predisposições inatas é uma definição puramente abstrata e sem valor de uso.
O termo constante situacional, fundamental naquilo que a teoria designa por automatismo de repetição, parece relacionar-se com isso, deduzidos os efeitos do recalcado e das identificações do eu, e pode ser de interesse nos casos de recidiva.
O Isso também implica, sem duvida, as escolhas fatais manifestas no casamento, na profissão ou na amizade, e que amiúde aparecem no crime como uma revelação das figuras do destino.
As “tendências” do sujeito, por outro lado, não deixam de mostrar deslizamentos ligados ao nível de sua satisfação. Gostaríamos de levantar a questão dos efeitos que pode ter ai um certo indicio de satisfação criminosa.
Mas, nesse ponto, talvez estejamos nos limites de nossa ação dialética, e a verdade que nos é dado reconhecer com o sujeito não pode ser reduzida a objetivação cientifica.
Pela confissão que recebemos do neurótico ou do perverso sobre o gozo inefável que eles obtêm ao se perderem na imagem fascinante, podemos avaliar o poder de hedonismo que nos introduzirá nas relações ambíguas da realidade com o prazer. Se, ao nos referirmos a esses dois grandes princípios, descrevemos o sentido de um desenvolvimento normativo, como não ser captados pela importância das funções fantasísticas nos motivos desse progresso, e quão cativa permanece a vida humana da ilusão narcísica que sabemos tecer suas coordenadas mais “reais”? E, por outro lado, já não está tudo pesado, junto ao berço, nas incomensuráveis balanças da Discórdia e do Amor?
Para-alem dessas antinomias que nos levam ao limiar da sabedoria, não há crime absoluto, e existem ainda, malgrado a ação policial estendida por nossa civilização ao mundo inteiro, associações religiosas ligadas por uma prática do crime, onde seus adeptos sabem encontrar as presenças sobre-humanas que, no equilíbrio do Universo, zelam pela destruição.
Para nós, dentro dos limites que nos esforçamos por definir como aqueles a que nossos ideais sociais reduzem a compreensão do crime, e que condicionam sua objetivação criminológica, se nos é possível trazer uma verdade de um rigor mais justo, não nos esqueçamos de que devemos isso a uma função privilegiada: a do recurso do sujeito ao sujeito, que inscreve nossos deveres na ordem da fraternidade eterna: sua regra é também a regra de toda noção permitida a nós.