POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ

POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Análise acerca de O Crime das Irmãs Papin de Jacques Lacan - por Yuri Campagnaro

Jacques Lacan, autor que revolucionou o estudo da psicanálise, analisa, no texto em questão, do ponto de vista desses estudos, crime peculiar que ocorreu em sua época. O crime, dotado de características terríveis e intrigantes foi de autoria de duas irmãs, de 28 e 21 anos, que foram durante anos criadas de uma família burguesa, com a qual, estranhamente, não dialogavam, não trocavam palavra alguma, numa relação de silêncio absoluto e “obscuro”.

Certa noite, após banal corte de eletricidade e consequente reclamação das patroas (mãe e filha), as irmãs, num ato de furor, “...cada uma se apoderou de uma adversária, arrancou-lhe em vida os olhos das órbitas, fato espantoso, disseram nos anais do crime, e os destroçou. Depois, com a ajuda do que encontraram ao seu alcance, martelo, pichel de estanho, faca de cozinha, atacaram os corpos de suas vítimas, destruíram-lhes o rosto e, expondo seu sexo, talharam profundamente as coxas e nádegas de uma, para macular com esse sangue as da outra. Em seguida, lavaram os instrumentos desses ritos atrozes, purificaram-se e se deitaram na mesma cama.”.

Agiram com comportamento inusitado também durante o processo, quando não demonstraram qualquer motivo de raiva contra as vítimas, tendo apenas como preocupação partilharem a responsabilidade do crime. Após cinco meses afastadas uma da outra, Christine (uma das irmãs), apresentou violenta crise, com alucinações, em que tenta sem sucesso arrancar seus próprios olhos. Após, ambas foram condenadas à morte.

Seguiram-se intensos debates na tentativa de compreender o crime ocorrido por parte de psicólogos e cientistas. Lacan sugere uma teoria autônoma para solucionar o mistério, partindo de uma análise psicanalítica.

Segundo ele, a pulsão agressiva pode ser considerada inconsciente, “o que significa que o conteúdo intencional que a traduz na consciência não pode se manifestar sem um compromisso com as exigências sociais integradas pelo sujeito, isto é, sem uma camuflagem de motivos que é precisamente todo o delírio”. Ou seja, as explicações conscientes, que parecem muitas vezes sem nexo lógico, são manifestações, exigidas socialmente, do desejo inconsciente – manifestações que não tem linearidade, que se sucedem, repetem-se, como significantes, sintoma, afinal, “o inconsciente se estrutura como linguagem”.

Mas essa pulsão é dotada de relatividade social, sempre tem a intencionalidade de um crime, quase sempre de uma vingança, frequentemente de uma punição, uma expiação moralista proveniente de ideais sociais.

É dessa forma que o conteúdo intelectual do delírio parece uma superestrutura ao mesmo tempo justificadora e negativa da pulsão criminal. O delírio varia, dissipando-se com a realização dos fins do ato, e tais variações são, para Lacan, essenciais. Os temas delirantes expressos por Christine na prisão são sintomas típicos do delírio, da mesma forma que o desconhecimento sistemático da realidade, tomado efeito na ambivalência de toda crença delirante.

A forma da psicose das irmãs é estreitamente correlata, senão idêntica. Para Lacan, Freud dá a chave dessa compreensão. Segundo este, em seus estudos sobre a sexualidade infantil, ocorre, em certa época, redução forçada da hostilidade primitiva entre os irmãos, mas pode aí haver uma inversão anormal, em que hostilidade se converte em desejo, causando uma “fixação amorosa”. “Essa integração se faz, no entanto, segundo a lei da mínima resistência, por uma fixação afetiva ainda muito próxima do eu (moi) solipsista, fixação que merece ser chamada de narcísica e na qual o objeto escolhido é o mais parecido com o sujeito: esta é a razão de seu caráter homossexual”.

A ambivalência afetiva em relação à irmã mais velha dirige o comportamento autopunitivo da irmã mais nova: cada uma delas, prisioneira do narcisismo, se torna nova imagem dessa Irmã que nossa doente transformou em seu ideal. Tornam-se “almas siamesas”. Segundo Lacan, “na noite fatídica, sob a ansiedade de uma punição iminente, as irmãs misturam à imagem de suas patroas a miragem de seu mal”.

Do ponto de vista criminal, não restam dúvidas de que as irmãs são as autoras, confessas, do crime. O que torna tão intrigante o caso é que elas não fazem questão de se eximir da culpa, pelo contrário, assumem-na conjuntamente. A questão é se a punição a elas deve ser realizada sem discriminações, de maneira severa, levando em conta a crueldade do crime; ou se elas merecem ser tratadas, como vítimas de problemas psicológicos, do ponto de vista da saúde mental.

Como o próprio Jacques Lacan coloca, “Mas, observamos, utilizando-nos daqueles a quem assusta a via psicológica à qual engajamos o estudo da responsabilidade, que o adágio ‘compreender é perdoar’ está submetido aos limites de cada comunidade humana e que, fora desses limites, compreender (ou acreditar compreender) é condenar”.

O que se entende de toda a análise do caso em questão é que por mais hediondo que tenha sido o crime, o estado de saúde mental das autoras é evidentemente um estado de doença, em que são acometidas por aflições psíquicas. Não se deve analisar o fenômeno social e psicológico do crime como um julgamento entre o bem e o mal, uma luta maniqueísta cristã, cruzada moralista, ou coisa do gênero.

Dizem as teorias burguesas mais avançadas sobre o Estado que o crime tem razões mais complexas, e sua sanção é realizada pelo Estado, que não deve perseguir os anseios de particulares, mas preservar a ordem social e comum de todos, de maneira neutra e impessoal, e isso é alcançar a justiça. A função da pena, ao menos em teoria, no plano do dever-ser, é de ressocialização do condenado, de melhoramento do tecido social. Dessa forma, questiona-se que tipo de bem à sociedade e que tipo de justiça seria vindo do encarceramento ou pena de morte das autoras.

Entretanto, esse discurso apenas oculta a real causa de crimes extremos. A própria psicanálise ensina que elementos que parecem estar fora do sistema (no caso o social), que contradizem o todo e a unidade desse sistema, não são elementos externos, patológicos, mas parte integrante desse todo, manifestação do seu Real mais íntimo, são seus sintomas.

Crimes de tamanha crueldade e de difícil explicação são excessos de uma mesma realidade, que cria crimes mais brandos na sociedade, que provoca exploração, miséria e violência institucionalizada e internalizada enquanto saberes inconscientes na forma de ideologia.

Como coloca Slavoj Zizek, assim como a sociedade de consumo capitalista produziu um excesso que fugiu do seu controle, o fascismo, e necessitou da ajuda de seu oposto, o socialismo soviético, para dar cabo a esse extremo; nossa sociedade do fim da história, modelo, democrática, produz um excesso demasiado terrível, que lhe foge do controle, a criminalidade1, a qual para ser combatida, necessita da união com o lado mais terrível, oposto, da realidade democrática liberal, o sistema prisional absurdo e a polícia exterminadora – ambos pairam muito longe das garantias democráticas mínimas incluídas mesmo em legislação.

Mas o problema do crime está longe de ser resolvido, pois não pode ser tratado como elemento patológico, estranho, ao “desenvolvimento” do restante da sociedade (que segue como uma locomotiva que anda por sobre trilhos derretidos rumo ao abismo interminável) – a totalidade das relações explicita que o culpado flagrante pela realidade produtora de irmãs que cometem crimes brutais contra suas patroas, pedofilia, crimes contra mulheres (como a do recente caso do goleiro Bruno), etc. é a própria realidade.

O dever-ser dos manuais, que cinicamente colocam as metas de ressocialização em um Estado “neutro”, “impessoal”, como dito antes, fetichiza o problema, ocultando-o pro trás de pseudossolucões de caráter burocrático e técnico, elucubrando acerca de mil meias soluções que visam justamente fazer o que está sendo feito: recalcar os sintomáticos excessos de si mesmo, sem psicanalista, sem anestesia.

Esse fukuyamismo presente de maneira tão forte no “pensamento” jurídico deve ser combatido radicalmente, e, como dito por célebre filósofo alemão, ser radical é agarrar as coisas pela raiz, e a raiz para o homem é o próprio homem. Simplesmente, para acabar com o problema, deve-se acabar com o problema, e não preservar sua essência e causa ao tolher os repetitivos sintomas horríveis, que representam não mais que a própria totalidade das relações – a face oculta que os fukuyamistas (alguns de “esquerda”) preferem não ver.

O caso das irmãs Papin leva o debate sobre a consciência humana e sobre as causas obscuras de crimes estranhos e aparentemente injustificáveis, em que as causas são ocultadas pela vileza do ato praticado, de fato horrendo.

Compreender aqui significa muito mais que perdoar ou condenar as irmãs assassinas, tão culpadas quanto vítimas do crime de sangue que cometeram. Significa, inescapavelmente, agir. E esse agir, simplesmente, significa socialmente.

A igualdade formal assegura a existência de seu oposto perversor de sua unidade lógica, a desigualdade material – essa situação, aliada com outros excessos produz a necessidade do crime para sobrevivência, tanto material quanto psicológica.

REVISITANDO O CASO DAS IRMÃS PAPIN - por Francisco Ronald Capoulade Nogueira

O crime das irmãs Papin ocorreu no dia 2 de fevereiro de 1933, na cidade de Le Mans. Antes
de adentrarmos na análise dos textos de Lacan e Le Guillant sobre esse assunto, proponho
uma breve exposição do crime. Exposição essa que se fará a partir de uma compilação de
várias versões deste mesmo crime, dentre as quais privilegiei os elementos em comum. Entre
elas estão os artigos que analisaremos, fragmentos dos documentos policiais que retrataram o
crime junto com os depoimentos das irmãs, obras literárias e cinematográficas.
Era inicio de uma noite de inverno e estavam em casa apenas as empregadas. O Sr.
Lancelin, sua esposa e sua filha haviam saído. Após um pequeno incidente doméstico com o
ferro de passar roupas que resultou em um curto-circuito e deixou a casa dos Lancelin às
escuras, Léa e Christine ficaram apreensivas com qual poderia ser a reação de suas patroas e
se trancaram no quarto. Ao ouvirem suas patroas chegarem e chamarem seus nomes
incansavelmente, Christine resolver descer e explicar o ocorrido e, em seguida, desceu Léa.
Ao constatarem que a casa estava sem energia elétrica a Sra. e Srta. Lancelin exigiram
explicações a Léa, já que o fato ocorreu enquanto ela usava o ferro de passar e também por ser
reincidente em “desleixos” domésticos. Daí por diante, ao que tudo indica, iniciou-se uma
discussão ríspida e de ânimos alterados que chegou ao nível extremo de violência.
Christine relata aos policiais em seu depoimento que quando suas patroas voltaram
para casa e perceberam o breu que ali estava, ficaram furiosas, já que tal incidente havia
ocorrido outras vezes. Christine afirma que a Sra. Lancelin
(...) disse-lhe que o ferro estava estragado, de novo, e que eu não tinha conseguido
passar a roupa. Ao falar assim, ela quis atirar-se contra mim (...) Ao verificar que a
Sra. Lancelin vinha em cima de mim, agarrei-lhe seu rosto e arranquei-lhe os olhos
com os dedos. Quando digo que avancei para cima da Sra. Lancelin, estou equivocada
porque a pessoa que agarrei foi a Srta. Geneviève a quem arranquei os olhos (...)
Entrementes, minha irmã Léa avançou para cima da Sra. Lancelin e, igualmente,
arrancou-lhe os olhos (LE GUILLANT, 1963/2006, p. 288).
Iniciada as agressões das Papin o desfecho foi um tanto mais cruel. Depois de terem
arrancado os olhos de suas patroas, ainda vivas, e de as terem espancando até a morte, elas
continuaram o massacre com objetos cortantes. Usaram martelos, facas e também uma vasilha
de estanho. Dilaceraram suas nádegas, suas coxas, seus rostos e deixaram à mostra os sexos
de suas patroas e, por fim, esquartejaram-nas. A violência de seus golpes era de tamanha força
que as paredes da sala estavam cobertas de sangue até uma altura aproximada de mais dois
metros.
Ao fim e ao cabo de tudo isso, elas se limparam, e também limparam os objetos
usados dizendo uma para outra “agora tudo está limpo”. Deitaram-se nuas no quarto delas e lá
ficaram a espera da polícia e do Sr. Lancelin.
Esse crime insólito e brutal causou tanto impacto na opinião pública francesa da época
que sua repercussão pôde ser vista muito além dos meios midiáticos comum àquele período.
Diversos intelectuais e artistas daquela época e de épocas posteriores, inspirados por essa
história, produziram artigos e obras artísticas no afã de compreender o que poderia ter
motivado tal crime. Entre eles estão Jean Genet, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir,
Benjamin Peret, Jean-Pierre Denis, Niko Papatakis, Louis Le Guillant e o jovem Jacques
Lacan.
Os principais ingredientes em questão eram a brutalidade do crime, o incesto, a
homossexualidade feminina e o conflito de classes.
Em seu artigo Motivos do Crime Paranoico: O Crime das Irmãs Papin, publicado na
revista Minotaure, em dezembro daquele mesmo ano, Lacan inicia seu texto fazendo
referência à repercussão que o horrendo crime cometido pelas assassinas Léa e Christine
Papin tomou na opinião pública.
Primeiramente, Lacan chama a atenção para o fato de que entre as Papin, que eram
criadas-modelo ao mesmo tempo que criadas-mistério, e suas patroas havia uma ausência de
comunicação. Ou seja, entre os dois grupos (patrões e empregadas) havia um silêncio, mas
não era um silêncio vazio, ainda que fosse turvo aos atores em questão. Segundo Lacan, a
materialização desse pavoroso silêncio se dá de maneira súbita e simultânea classificado por
ele como uma “verdadeira orgia sangrenta”. O que Lacan apresenta nesse inicio é uma análise
superficial do caso; superficial no sentido de que está à superfície, daquilo que pode ser visto
primeiro, aquilo que foi privilegiados pela análise de outros intelectuais.
No entanto, essa não é a tônica de sua análise. Instigado pelas considerações do Dr.
Logre, Lacan viu nesse crime indícios de uma anomalia mental das irmãs. A partir de um
pressuposto da psiquiatria vigente que se pautava, grosso modo, em três traços clássicos para
o reconhecimento da paranoia, a saber, delírio intelectual com ideias de grandeza variadas
indo até ideias persecutórias; reações agressivas podendo chegar a homicídios e; uma
evolução crônica, Lacan procurou identificar “a influência das relações sociais incidentes em
cada uma destas três ordens de fenômenos”, admitindo assim uma noção dinâmica das
tensões sociais para explicar os fatos da psicose.
Mas o que Lacan quer dizer com o termo tensões sociais? Teria esse termo o mesmo
significado daquilo que os intelectuais e artistas franceses influenciados pelo marxismo
chamaram de conflitos de classe? Provavelmente, não.
Essa foi a critica feita por Le Guillant ao texto de Lacan. Segundo ele, em seu artigo
publicado na revista Les Temps Modernes, em novembro de 1963, “a condição doméstica
contém um poder patogênico”. O fato de Christine e Léa serem empregadas domésticas e, por
isso, viverem em condições desiguais as de suas patroas torna a questão das relações de
trabalho central em sua análise psicopatológica. Nesse artigo, ele afirma, parafraseando
Simone de Beauvoir, que “é unicamente a violência do crime cometido que nos leva a avaliar
a atrocidade do crime invisível, cujas vítimas são as empregadas domésticas” (LE
GUILLANT, 1963/2006, p. 325). Tal pensamento sintetizava a opinião de muitos intelectuais
acerca do caso das irmãs Papin.
Sobre Lacan, Le Guillant diz, em uma nota de roda pé desse mesmo texto, o seguinte:
Em um brilhante artigo que acaba de chegar ao meu conhecimento – e que, se eu
pudesse, reproduziria integralmente –, Jacques Lacan associa o caso das Irmãs Papin à
psicose paranóica.(...) Por mais qualificada e enriquecedora que seja a sua análise, é
impossível deixar de observar que, praticamente, ela não comporta nenhuma alusão ao
fato de que Christine e Léa eram empregadas domésticas; (...) À semelhança de todos
os que tiveram conhecimento do caso das Irmãs Papin, Lacan não chega a vislumbrar
que sua condição de empregadas domésticas possa ter desempenhado um papel na
gênese desse crime (LE GUILLANT, 1963/2006, p. 322).
Contudo, as tensões sociais para as quais Lacan aponta são tensões muito primitivas,
relacionadas com os primeiros estádios da sexualidade infantil. Segundo ele, nesses estádios
se opera
a redução forçada da hostilidade primitiva entre irmãos, uma anormal inversão pode se
produzir desta hostilidade em desejo e que esse mecanismo engendra um tipo especial
de homossexuais entre os quais predominam os instintos e atividades sociais. De fato,
esse mecanismo é constante: esta fixação amorosa é a condição primordial da primeira
integração nas tendências instintivas do que nós chamamos as tensões sócias
(LACAN, 1933).
Essa sua análise era fruto, em grade parte, de sua leituras da obra de Freud que vinha
se desenvolvendo desde sua tese de doutorado defendida no ano anterior. Nessa perspectiva, o
que Lacan postulava era, grosso modo, uma análise da paranoia mais profunda na qual –
inspirado nos textos freudianos – privilegiava a dinâmica das tensões sociais, não apenas as
superficiais, mas aquelas que surgiam de uma investigação psicanalítica cuja máxima é: o
homem não é senhor em sua própria casa.

O CRIME DAS IRMÃS PAPIN: O TEMPO DO ESPELHO - por Zilda Fabris

De olho nos fatos:
1- As irmãs Christine e Léa Papin, uma de 28 e outra de 21 anos, trabalham como empregadas numa casa de família burguesa.
2- Em 2 de fevereiro de 1933, as irmãs matam a patroa e sua filha a sangue frio sem motivo aparente.
3- Em 30 de setembro de 1933, Christine e Léa Papin são condenadas pelo júri.
4- As irmãs são presas em celas separadas e Christine faz um surto psicótico. Surgem dúvidas quanto a responsabilidade do crime.
5- Doutor Logre, psiquiatra, testemunha no sentido da irresponsabilidade das irmãs Papin, adiantando várias hipóteses sobre a presumível anomalia mental de ambas.
6- Christine e Léa Papin não são executadas e cumprem a pena separadamente.
7- Christine morre na prisão e Léa ao ser solta vai trabalhar como camareira num hotel.

Objetivo: O texto se propõe a oferecer algumas considerações psicanalíticas sobre o motivo do crime paranóico cometido por Christine e Lea Papin no dia 2 de fevereiro de 1933. Um artigo foi publicado sobre este assunto em dezembro de 1933 pela revista Minotaure, incluído na edição de Da Psicose Paranóica em suas relações com a Personalidade (seguido de "Primeiros Escritos sobre a Paranóia") de Jacques Lacan. Minhas palavras, aqui, se organizam em torno de 4 pontos:

Apresentando as irmãs Papin;
As irmãs Papin no espelho;
O olho e um olhar;
Uma conclusão não-toda.

O fato jornalístico mostrou as imagens do crime, porém não conseguiu explicar o seu enigma, ou seja, o motivo pelo qual levou as duas assassinas, Christine e Léa Papin a passaram ao ato porque as palavras faltaram. O que poderia ter levado as irmãs a cometer este crime?

A imprensa, na época, divulgou que as duas irmãs trabalhavam como empregadas na casa burguesa, onde moravam mãe e filha. Eram consideradas empregadas-modelo e desenvolviam bem a arte culinária. No ato do julgamento, as irmãs nada alegaram como motivo para o crime e, até, disseram que gostavam das patroas.

Um detalhe sutil e não menos estranho parece oferecer uma pista do poderia ter ocorrido. A palavra não circulava entre as patroas, entre as irmãs e nem entre umas e outras. A entrada de um terceiro era impossível, transformando, assim, as relações num jogo dual e, consequentemente, mortal. Essa forma de mudez, longe de ser um vazio sem sentido, se transformou em um curto-circuito das palavras, materializando-se através de um simples curto-circuito elétrico. Dito de outra forma, o ato assassino foi em decorrência de um silêncio que questiona toda linguagem e subverte toda a autoridade. Ato, este, que não atinge as palavras mas que carrega um sentido que explode em violência.

Na noite do crime, as patroas, ao chegarem em casa, se dão conta da falta de luz e ficam muito aborrecidas com as irmãs. Mas o que elas teriam dito para ocasionar o ato assassino? Qual seria a palavra "mágica" que nunca poderia ter sido dita?

A cena foi aterradora. Uma irmã como mandante do ato assassino e a outra como diria o dito popular: "macaca de imitação", arrancam os olhos das vítimas ainda vivas e usando vários instrumentos cortantes, matam-nas como se estivessem preparando pedaços de carne para servir no jantar. A agressividade é correlata da identificação narcísica, ou seja, é própria do tempo especular. Já a violência é a ação da pulsão agressiva. No caso das paranóias essa pulsão agressiva é encontrada de modo muito intenso e não há mediação da lei. O ato desfaz a construção delirante. É uma descarga súbita para se afastar do desamparo diante do corpo morcelado. Há um tipo de apaziguamento no crime e isso é encontrado no caso das irmãs, quando depois do ato dizem: "Agora, está tudo limpo". Lavam as ferramentas sujas de sangue e se deitam na cama. Depois do ato , aí mesmo é que não há nada o que dizer.

AS IRMÃS PAPIN NO ESPELHO

Lacan diz que entrou na psicanálise " com uma vassourinha que se chamava o estádio do espelho". Mas o que é o estádio do espelho? Resume-se no processo pelo qual o bebê assume a imagem de seu corpo como sendo sua, ou seja, identificando-se com ela. "Eu sou essa imagem". As consequências desta frase revelam que o bebê fica capturado por essa imagem e, apesar de ficar preso nela por toda sua vida, isso é fundamental para a constituição do eu. Afinal, o eu não existe desde o nascimento. Ele é constituído num determinado tempo lógico, onde o bebê não se vê mais aos pedaços e sim como uma unidade. Na verdade, é uma construção, uma ilusão e até mesmo uma invenção necessária, pois o que realmente existe é o vazio deixado pela mãe, que é tamponado por algo. Longe de se tratar de um momento pacífico, este poderia ser descrito como o horror do jogo especular. O bebê ao se ver no espelho pensa que o eu é o outro semelhante e rivaliza com sua própria imagem. A descoberta de ser igual ao outro, seu semelhante, gera uma disputa acirrada, pois o mesmo objeto será desejado. Assim, nesta luta pelo objeto de desejo, alguém precisa morrer, pois neste lugar só há espaço para um e não para dois. É o que acontece entre as irmãs que tomam as patroas como rivais.

A paixão de Narciso por sua própria imagem, não reconhecida por ele mesmo, leva-o a morte ao tentar fundir-se à ela. Momento dual e mortal, onde a agressividade se manisfesta como sendo própria da constituição subjetiva para que o eu possa ser investido amorosamente. Talvez o amor seja o maior inferno pelo qual o humano terá que passar.

As irmãs Papin são como almas gêmeas. Uma espelha a outra, adiando o trágico desmantelamento desta sensível imagem especular. A palavra não entra como meio de fazer com que esta imagem se mantenha enquanto uma unidade.Houve a foraclusão de uma palavra, a qual, era encarregada de dar o sentido da cadeia das palavras. A foraclusão possui uma breve semelhança com o termo jurídico préclusão que significa a perda do direito por não exercer a defesa no tempo devido. Fazendo uma ponte entre direito e psicanálise, foraclusão diz respeito a um tempo lógico em que a palavra é expulsa, ou seja, nada se quer saber sobre seu sentido e uma vez rejeitada não tem mais o direito de voltar ao lugar de onde foi excluído. Penso que o ato criminoso na psicose acontece, como um retorno dessa palavra foracluída pela via do real devido ao sujeito não querer saber sobre o simbólico. Qualquer iminência de furo, aponta para o perigo da aparição do corpo morcelado. Partindo deste princípio, seria neste ponto frágil que as patroas teriam tocado, provocando a fúria das irmãs?

As patroas ameaçam separá-las devido a inabilidade de uma das irmãs, Léa, e isso transferiu o que deveria ter ficado como metáfora de ódio "eu lhe arrancarei os olhos", para a passagem ao ato de arrancar os olhos das vítimas. A perturbação com as palavras apareceu na ausência da metáfora. Aí, só resta uma saída que é pelo ato criminoso onde as irmãs tentam não se despersonalizar. Na prisão, as irmãs são separadas e Christine não aguenta que sua outra metade seja tirada de si, seu espelho através do qual poderia manter a ilusão de uma unidade, e surta. Para Christine a dor da separação é insuportável, levando-a à morte tempos depois. É como no mito de Aristófanes, onde existiria um tempo de completude em que os seres eram duplos.Estes começaram a se achar mais poderosos que o próprio Zeus. Assim, Zeus indignado com tal audácia separa os seres duplos e eles ficam tentando encontrar sua outra metade para voltar ao estado de completude. Esse mito revela um pouco sobre a questão dos crimes duplos cometidos geralmente por parentes próximos, pai e filho, mãe e filha, irmãos e irmãs. Esta loucura à dois se refere a este tempo de completude, onde a falta é faltosa, possibilitando, assim, essa união, onde o que um faz é imitado pelo outro pois um se reconhece no olhar do outro e vice-versa e mantem a ilusão da imagem. Partindo da ilusão da imagem por que Léa consegue se manter narcisicamente e Christine não?

O OLHO E UM OLHAR

Dos olhos vazados de Édipo ao olhar mortal da Medusa, é da castração que se trata. Édipo possuído pela loucura de saber quem ele era, tentando se apropriar de seu próprio destino, paga um preço que vai lhe "custar os olhos da cara", como diz o dito popular, pois já não era mais possível se ver e nem ser visto. Mas as irmãs não se situam neste mesmo tempo lógico em que Édipo se pergunta: Quem sou eu? Que queres de mim? O que é uma mãe? Elas não querem saber sobre isso. Apenas estão unidas no espelho e presas pelo olhar. Christine não aguenta ficar sem ver seu próprio reflexo no olhar de Léa. É aí, olho no olho, que uma sustenta a imagem da outra. Assim, elas se reconhecem como uma só. Para tal Léa empresta o seu olhar para a irmã Christine.

Arrancar os olhos das patroas me fez a seguinte questão: que tipo de olhar era o olhar dessa mãe para essas filhas? Talvez um olhar perseguidor, explorador, invasivo, que merecesse ser arrancado literalmente? Sobre isso nada é sabido. É apenas uma questão.

UMA CONCLUSÃO NÃO-TODA

Este trabalho teve a proposta de refletir sobre o crime cometido pelas irmãs Papin e questionar a terminologia da psiquiatria clássica que definiria as duas como psicopatas. Afinal, o que é um psicopata? Esta pergunta perde sua importância, na medida em que o estudo do caso, pelo viés da psicanálise, vai fazendo emergir aquilo que no âmbito das imagens não é passível de entendimento. A Psicanálise oferece um ensinamento não no sentido de mestria, e, sim, para mostrar como a vida possui um equilíbrio instável. Todo homem carrega seus demônios em sua alma e o que faz uns permanecerem nas palavras e outros recorrerem ao ato ainda constitui um enigma. Somente através da singularidade de cada caso é que se desvenda o mistério do crime estudado. Sendo assim, o tempo do crime e a escolha do objeto criminógeno possuem uma relação pré-estabelecida com o sujeito criminoso que executa literalmente o que deveria ficar em palavras. O insuportável da alternativa que se coloca no plano imaginário "ou ele ou eu" revela que é só a partir de um simbólico que poderia haver um espaço para caberem dois, para que isso pudesse ser articulado de outra forma e não ao pé da letra.

NOTAS E REFERÊCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. MILLER, J. Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1994, pag.16.



BIBLIOGRAFIA

1. LACAN, J. "O estádio do espelho como formador da função do eu." in Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1998.

2._______, "A agressividade em psicanálise." in Escritos, op. cit.

3._______, "Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia." in Escritos, op.cit.

O CRIME DAS IRMÁS PAPIN - por Mariana Anconi

Como no momento tenho lido muito a respeito do tema "Psicose" devido a elaboração da minha monografia, decidi compartilhar com vocês este caso estudado por Jacques Lacan na época em que fazia sua tese de doutorado.



As irmãs Papin e suas patroas


"Quinta-feira, 2 de fevereiro de 1933, na cidade de Le Mans, província de Sarthe. São cerca de vinte horas; a polícia municipal é chamada à residência de René Lancelin, que não havia conseguido entrar em sua casa, arromba a casa do antigo procurador e, no primeiro andar, encontra a Sra. Lancelin e sua filha assassinadas, com os corpos pavorosamente mutilados e os olhos arrancados das órbitas.
No segundo andar, refugiadas num canto da cama e agarradas uma à outra, as duas empregadas exemplares, Christine e Léa Papin, confessam sem dificuldade haver cometido o duplo assassinato de suas patroas - patroas irrepreensíveis, segundo suas palavras. Um simples incidente insignificante, a propósito um ferro de passar com defeito e de um fusível queimado, parecia haver desencadeado a carnificina sangrenta".
(Nasio - Os grandes casos da Psicose, 2001, p. 191)


Diante deste contexto, apresento-lhes um caso muito famoso e comentado na época, notícia na primeira página do jornal local La Sarthe.



Le Mans - France


As irmãs Papin eram as empregadas exemplares, que todo patrão gostaria de ter em sua residência. Dedicadas ao serviço, esforçadas ao máximo, para que não houvesse reclamação alguma das patroas. Raramente eram vistas na rua, não tinham amigos, namorado, ou mesmo vida social... "Que estranho!" - comentavam os cidadãos da cidade.
Christine e Léa não tinham mais contato com a mãe. Esta por sua vez, nunca desempenhou a função materna da maneira "adequada" com sua filhas (que eram três por sinal). Sempre as entregava a outras pessoas e quando quisesse as buscava novamente, exercendo um poder sobre elas, em outras palavras, fazendo-as de objeto. A filha mais velha (Emilia) abandonou a familia para dedicar-se a igreja, já as outras duas (Christine e Léa) foram abandonadas pela mãe e juntas conseguiram o emprego na casa dos Lancelin.
As duas irmãs, abandonadas pela mãe, desenvolveram uma relação simbiótica, ou seja, uma era o espelho da outra, uma completava a outra. No entanto, no decorrer dos estudos, percebe-se que Christine desenvolve uma estrutura psicótica, enquanto que Léa (a mais nova e "frágil") se deixa influenciar pelos delírios da irmã mais velha.
Nasio (psicanalista) comenta sobre este caso, que, como as duas irmãs sempre viveram juntas, compartilharam do mesmo pensamento, idéias e almejavam as mesmas coisas, isso foi possível para que o delírio de uma contagiasse a outra. Mas, em outros casos isso é muito raro acontecer, ou seja, uma pessoa "normal" (neurótico) se deixar levar pelos delírios de um psicótico.





Irmãs Papin


Bom, as irmãs tinham um forte sentimento de abandono e viram na Sra. Lancelin a figura materna que faltava em suas vidas, tendo até um momento que chegaram a chamá-la de mãe. Através desta transferência extremamente forte e positiva, as irmãs conseguiram desempenhar um papel aceitável na sociedade - até certo momento!
Eis que chegou o dia em que as estruturas psíquicas balançaram e, num momento súbito, aquela transferência positiva se transformara em negativa, devido a um olhar da patroa de reprovação e insulto direcionado às irmãs. Que péssimo para as patroas...Porque uma vez que o psicótico se sente ameaçado, ele faz de tudo para se proteger! De tudo mesmo, até arrancar os olhos do outro que lançou o "olhar invasivo", que foi o caso.



As duas vítimas


E no fim da história, as irmãs são presas, Christine de fato surta na prisão, apresentando ataques violentos contra os outros e a si mesma, morre por lá mesmo. Léa condenada a dez anos de trabalhos forçados, saiu da prisão por conduta exemplar, e voltou para junto da mãe Clémence, com quem viveu até o fim de seus dias. E como Nasio disse em seu texto: "Foi essa a história das irmãs Papin, filhas de Clémence: Emilia foi destinada a Deus, Christine à loucura e Léa à Clémence, sua mãe".


Gostaria de comentar muito mais a respeito, pois este é um caso rico em informações sobre esta estrutura psíquica, mas não quero me estender muito neste post!


Até a próxima ...




Mariana Anconi

SOBRE JACQUES LACAN...

Paranoia e Estádio do Espelho

Lacan graduou-se em medicina, especializou-se em psiquiatria e logo depois trabalhou na enfermaria especial de alienados da Chefatura de Polícia, sob a direção de Clérambault, um dos mestres da psiquiatria francesa da época, criador do conceito de "automatismo mental", de muita importância para o pensamento de Lacan.

Na enfermaria onde Lacan trabalhou eram levadas pessoas que haviam cometido algum crime, mas que não poderiam ser responsabilizadas caso apresentassem um distúrbio mental. Foi nesse lugar que Lacan elaborou sua tese de psiquiatria "Da psicose paranóica e suas relações com a personalidade". Nela Lacan relata o fato de alguns pacientes se curarem após cometerem um crime. A partir dessa observação, Lacan propôs um novo diagnóstico, denominado "paranoia de autopunição".

A característica principal da paranoia de autopunição é o efeito de cura que um ato criminoso produz num sujeito que o comete em decorrência de um delírio. Apesar de ter recolhido muitos casos dessa manifestação, Lacan escreveu sua tese fundamentando-se no Caso Aimeé, que se tornou o paradigma da paranoia de autopunição.

Aimeé era uma mulher que pertencia à burguesia, uma funcionária pública fascinada por uma atriz famosa. Ela foi à saída do tetro onde a atriz trabalhava e atacou-a com uma navalha. A atriz teve os tendões das mãos cortados, e Aimeé foi então presa e levada para a clínica de Clérambault.

A conclusão a que Lacan chegou foi que o que estava em jogo naquele caso era uma idealização patológica, a princípio pela irmã, depois pela atriz. Porém, as únicas noções que poderiam explicar a razão da conduta da paciente não estavam na psiquiatria: eram conceitos que só existiam na psicanálise. No caso, o conceito de Superego.

Logo em seguida, em 1933, Lacan publicou dois textos: "O problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranoicas da experiência" e "Motivações do crime paranoico: o crime das irmãs Papin", sendo este o relato do caso de duas irmãs, empregadas domésticas em Paris, que em certo dia, por um motivo fútil - a falta de luza em casa - mataram e esquartejaram suas patroas.

Ao publicar esse texto, propondo as razões do crime paranoico, Lacan avançou em relação à sua tese anterior: a concepção de que o outro é o que o criminoso quer ser, então, ele tem de anular o outro para que possa existir - caso contrário, se perde nesse outro. Segundo Lacan, o que provocou o crime foi a realização de fantasias de estripação, fantasias que Lacan chamou de "corpo despedaçado". Assim como Freud descobriu as fantasias neuróticas, Lacan evidenciou as "fantasias paranoicas", porém dirá que todos temos essas fantasias, e o paranoico seria o sujeito que as coloca em prática.

Em 1936, com 35 anos de idade, já como psicanalista, Lacan apresentou no Congresso Marienbad, o texto "O Estádio do Espelho". Na época, o subtítulo desse texto era "Teoria do momento estruturante genético da constituição da realidade conhecida em relação à experiência analítica".

Nele, Lacan produziu uma teoria sobre a conformação da estrutura psíquica do sujeito, e o que ela elabora nele não é mais o motivo do crime paranoico, e sim a constituição da realidade.

Em 1949, ao ser apresentado como nós conhecemos, "O Estádio do Espelho" recebeu o título de "O Estádio do Espelho como formador da função do Eu tal como nos é revelado pela experiência analítica", escrito desde o ponto de vista da observação e da metodologia da psicanálise - e o que se deduz: a constituição do Eu (Je).

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"Psicanálise Lacaniana"
Autor: Márcio Peter de Souza Leite
Editora: Iluminuras

O caso Aimée e a causalidade psíquica

Andréa Hortélio Fernandes

Psicanalista, bolsista de Desenvolvimento Científico Regional (CNPq) no Departamento de Psicologia da UFBA. Rua Rio São Pedro, 24 ap. 501, 40150-350, Salvador BA; ahfernandes@zaz.com.br






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RESUMO

O artigo discute as formulações acerca da causalidade psíquica nos primórdios da obra de Jacques Lacan. Com base na análise do caso Aimée, presente na tese de psiquiatria de Lacan, busca demonstrar como a hipótese de uma origem social nos mecanismos psíquicos de autopunição da paranóia permite a Lacan articular, alguns anos depois, identificação e causalidade psíquica.

Palavras-chave: identificação, causalidade psíquica, origem social, autopunição, psicanálise.


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ABSTRACT

The case of Aimée and psychic causality. The article discusses the formulations about psychic causality in Lacan's early work. Based on the analysis of the Aimée case of Lacan's psychiatric thesis, it tries to demonstrate how the hypothesis of social origin in the psychic mechanisms of self-punishment present in the paranoia, make it possible for Lacan to articulate, years later, identification and psychic causality.

Keywords: identification, psychic causality, social origin, self-punishment, psychoanalysis.


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Lacan, em 1946, estabelece uma articulação entre a causa-lidade psíquica e a identificação. No entanto, é possível encontrar as bases desta formulação lacaniana já na tese de psiquiatria defendida 14 anos antes. Vislumbra-se então que Lacan desdobra certos aspectos clínicos da sua pesquisa sobre a origem social dos mecanismos psíquicos de autopunição da paranóia e, assim, formula a causalidade psíquica em termos de identificação, pondo em destaque a função da imago. Desse modo, é possível supor que este tempo propiciou a Lacan elaborar alguns conceitos utilizados no seu trabalho acadêmico. Tais conjecturas convidam a uma análise retrospectiva deste período, como forma de esclarecer a relação entre causalidade psíquica e identificação nos primórdios da teorização lacaniana.

Logo, é preciso voltar a 1932, ano em que o jovem psiquiatra Jacques Lacan apresenta a uma banca presidida por Henri Claude sua tese intitulada: "Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade". Nesta ocasião, ele declara que a originalidade da tese encontra-se no fato de, pela primeira vez, na França, buscar-se uma interpretação exaustiva dos fenômenos mentais de um delírio em função da história concreta do sujeito. De acordo com Leguil, as primeiras reflexões clínicas e teóricas de Lacan estão sob a influência de Karl Jaspers (LEGUIL, 1989); cabe então examinar a que Lacan se refere quando fala em "história concreta do sujeito".

Constata-se que a historicidade está veiculada ao acompanhamento, durante um ano e meio, de uma paciente que ele chamou de Aimée. É com base neste trabalho que Lacan constrói a tese segundo a qual a natureza da cura demonstraria a natureza da doença. É importante pontuar que o termo "cura" é utilizado no seu valor clínico de redução de todos os sintomas mórbidos. Desse modo, o fato de a paciente, cerca de vinte dias após ter cometido um atentado contra a atriz Huguette ex-Duflos, não apresentar nenhum delírio focaliza a problemática do estudo.

Inicialmente, Lacan tenta resolver o enigma do desaparecimento do delírio em Aimée, pensando no mesmo como sendo um delírio passional. Neste quadro, a realização da obsessão assassina, através do assassinato, faz-se acompanhar pela queda imediata de toda a convicção delirante do agressor. Porém, isso não acontece no caso em questão. A agressão deferida por Aimée provoca um ferimento na mão da atriz e Aimée não demonstra nenhuma satisfação especial pela evolução favorável da sua vítima. A situação delirante, mantendo-se por mais de quinze dias, passa a fugir às características dos delírios passionais.

Assim sendo, a saída encontrada por Lacan para explicar a natureza da cura vai buscar o que muda para a paciente depois que ela comete o atentado. O então jovem psiquiatra acredita que a paciente "realiza" seu castigo. Segundo Lacan, isso se revela de duas formas. De um lado, ela experimenta a companhia de outras delinqüentes que expressam opiniões cínicas sobre sua pessoa, além de vivenciar a desaprovação e o abandono dos seus familiares e próximos, com exceção apenas daqueles que como ela cometeram um delito e pelos quais ela sente repulsa. De outro lado, ele defende que ela agride a si mesma, o que se expressa pelos seus choros e a conseqüente queda do delírio, caracterizando, de acordo com Lacan, a satisfação da obsessão passional.

O passo seguinte de Lacan será o de buscar uma teorização que sustente sua compreensão deste caso. Como diz Philippe Julien, Lacan recorre a certos textos de Freud para poder explicar por que acredita que Aimée seja um caso de uma paranóia de autopunição (JULIEN, 1990). É na tese que Lacan promulga esta nova entidade nosológica fazendo referência a textos de Freud que tratam especificamente da gênese do supereu.

Os textos selecionados da obra freudiana buscam sustentar a hipótese de Lacan segundo a qual os mecanismos psíquicos de autopunição teriam uma origem social. Esta origem estaria demarcada pela presença de sentimentos de culpa que expressariam a atitude subjetiva dos pacientes. Interessado em demonstrar a validade da sua hipótese, Lacan cita textos da segunda tópica freudiana que tratam da origem do supereu. É assim que ele recomenda a leitura de "O Eu e o Isso",1 pois esta é para ele a obra fundamental de Freud sobre a doutrina do supereu.

Seguindo a orientação formulada por Lacan, verifica-se que, de fato, Freud (1923), no terceiro capítulo de "O Eu e o Isso", trabalha detalhadamente como se dá a formação do supereu. A investigação freudiana aí está fundada na análise dos sentimentos de culpa. Através de uma citação deste texto, é possível compreender o destaque dado por Lacan a este artigo na sua tese de psiquiatria. Logo, neste capítulo, Freud afirma que:

"A tensão entre as exigências da consciência e os sentimentos concretos do eu é experimentada como sentimento de culpa. Os sentimentos sociais repousam em identificações com outras pessoas, na base de possuírem o mesmo ideal do eu. A religião, a moralidade e senso social foram originalmente uma só e mesma coisa. [...] Mesmo hoje os sentimentos sociais surgem no indivíduo como uma superestrutura construída sobre impulsos de rivalidade ciumenta contra seus irmãos e irmãs. Visto que a hostilidade não pode ser satisfeita, desenvolveu-se uma identificação com o rival anterior." (FREUD, 1923/ 1969, p. 52)

Freud continua seu texto retomando o artigo "Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no homossexualismo", de 1922, que é também citado por Lacan, na tese. Neste artigo de 1922, Freud examina os três graus do ciúme encontrados no trabalho analítico. Seriam eles: o ciúme competitivo ou normal, o projetado, e o delirante. Em 1923, ele retoma sucintamente o que tinha declarado um ano antes.

"O estudo de casos brandos de homossexualidade confirma a suspeita de que também neste caso a identificação constitui substituto de uma escolha objetal afetuosa que ocupou o lugar da atitude hostil, agressiva." (FREUD, 1923/1969, p. 52)

Uma passagem do texto "Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no homossexualismo" revela a relação feita por Freud, nesta época, entre ciúme, rivalidade, homossexualismo e sentimento social, e esclarece os motivos que levaram Lacan a fazer referência a este texto.

"É bem conhecido que um bom número de homossexuais se caracteriza por um desenvolvimento especial de seus impulsos instintuais sociais e, por sua devoção aos interesses da comunidade. [...], contudo, o fato de a escolha homossexual de objeto não sem freqüência provir de um anterior sobrepujamento da rivalidade com os homens não pode passar sem relação com a vinculação entre homossexualismo e o sentimento social." (FREUD, 1922/ 1969, p. 281)

A citação acima explica ainda porque Lacan, ao referir-se a este texto, considera-o como sendo um trabalho tanto sociológico como clínico, que ilustra a "gênese dos instintos sociais". No entanto, baseando-se também na teoria do desenvolvimento da libido, elaborada por Karl Abraham (1916), Lacan trabalhará a questão social partindo do pressuposto da existência de uma fixação da libido em objetos fraternos. Nesta perspectiva, outro trecho de "Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no homossexualismo" demonstra como Lacan busca nos textos de Freud elementos para sustentar a tese de uma origem social nos mecanismos psíquicos da paranóia de autopunição.

"Sabendo que, no paranóico, é exatamente a pessoa mais amada de seu próprio sexo que se torna seu perseguidor, surge a questão de saber onde essa inversão de afeto se origina. Não se precisa ir longe para buscar a resposta: a sempre presente ambivalência de sentimento fornece-lhe a fonte e a não-realização de sua reivindicação de amor a fortalece." (FREUD, 1922/ 1969, p. 275)

A leitura deste texto realizada por Lacan possibilitará a ele compreender a origem da inversão de afeto presente na psicose paranóica. De fato, durante uma entrevista, Lacan declara em 1933 que, na elaboração da sua tese, ele considerava a "noção dinâmica das tensões sociais" como primordiais e explicativas da paranóia. Afirma ainda que, para ele, seriam o equilíbrio ou a ruptura das tensões sociais que poderiam definir a personalidade do paciente. Deixa claro então a relevância do aporte freudiano para suas elaborações, pois relata que foi tomando por base o "texto admirável" de Freud de 1922 que pôde identificar a condição primordial das tensões sociais. Dito de outro modo, partindo das contribuições acerca das fixações amorosas existentes no complexo fraterno relatadas por Freud em "Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no homossexualismo", Lacan interpreta que a hostilidade primitiva entre os irmãos estaria na base de uma inversão anormal, que transformaria hostilidade em desejo, desejo de ser como o objeto que está no lugar do ideal do eu.

Lacan faz referência a outros textos de Freud. Entre eles, cabe salientar aqueles que desempenharam um papel importante para a explicitação da hipótese dos mecanismos psíquicos de autopunição. Deste ponto de vista, tanto "Luto e melancolia" (1915a/1969) como "O problema econômico do masoquismo" (1924/1969) devem ser colocados em destaque, uma vez que, em 1924, Freud vai propor os termos "necessidade de punição" no lugar de "sentimento inconsciente de culpabilidade". Para Freud, neste momento preciso de sua obra, a necessidade de punição expressaria uma exigência legal de sanção. Com efeito, percebe-se que, nas últimas citações feitas a Freud, Lacan apóia-se na conceitualização freudiana das neuroses de autopunição para circunscrever o caráter autopunitivo da paranóia.

Nesta ocasião, Lacan acredita que a análise dos determinantes autopunitivos e a teoria da gênese do supereu que ela fomentou representam na teoria psicanalítica uma síntese superior e nova (LACAN, 1932/1987). Apoiando-se nisto e buscando meios para sustentar sua nova entidade nosológica, ele afirma que a análise das correlações objetivas ou subjetivas permite demonstrar que os mecanismos psíquicos de autopunição têm uma origem social. A partir deste momento, ele empenhar-se-á em saber se o valor patogênico de uma fixação pode ser aproximado do de uma constituição. Logo, ele prolongará o exame da origem social da paranóia, examinando a fixação da libido no complexo fraterno enquanto condição primordial das "tensões sociais".

É surpreendente que Lacan, tendo explorado a origem social da paranóia, cite apenas de passagem o texto de Freud "Psicologia das massas e análise do Eu" e abstenha-se de trabalhá-lo com maior afinco. Tal evidência causa surpresa, pois não são poucos os textos em que Freud fala do social, e é neste especificamente que, trabalhando o conceito de identificação, ele demonstra que o contraste entre a psicologia individual e a psicologia social perde sua importância, dado ao fato de que, invariavelmente, algo mais está envolvido na vida mental do indivíduo, seja como um modelo, um objeto, um adversário, de modo que, desde o começo, toda psicologia individual é, ao mesmo tempo, também uma psicologia social (FREUD, 1921/1969).

Por intermédio de uma leitura cronológica dos textos de Freud, constata-se que, a partir de Totem e tabu (1913), ele constrói artigos nos quais a temática gira em torno da terapêutica do sujeito e dos transtornos do mesmo na sua relação com o mundo. Neste sentido, serão os distúrbios identificatórios postos em relevo. Logo, o texto sobre a psicologia das massas vai tentar esclarecer a origem do instinto social, pontuando que o primórdio de sua evolução pode estar associado a "um círculo mais estreito, como o da família" (FREUD, 1921/1969, p. 92). Será então através do exame do papel da identificação na história primitiva do complexo de Édipo que Freud reunirá elementos para a compreensão da sintomatologia apresentada pelos pacientes que muitas vezes dificulta o relacionamento destes sujeitos com o mundo.

Na tese, Lacan fornece material que ilustra os transtornos no nível da identificação, sofridos pela paciente. Entretanto, a noção de identificação será explorada apenas de relance no que toca ao seu interesse em evidenciar o caráter autopunitivo característico da psicose paranóica. Com efeito, Lacan revela estar mais preocupado em demonstrar que o paranóico, ao cometer um crime, conhece a lei que transgride, do que em analisar os transtornos identificatórios de Aimée que comprovam a tese freudiana de que "o eu não é o senhor da sua própria casa" (FREUD, 1917a/1969). Cabe então entender quais os critérios da seleção dos textos de Freud trabalhados por Lacan em sua tese.

Em "De nossos antecedentes", Lacan indica como ele "desemboca" em Freud. Segundo Lacan, é por intermédio de Alexander e Staub que chega a Freud (LACAN, 1966/1988). Neste sentido, é sob a influência de Alexander, ou seja, influenciado pelos trabalhos sobre autopunição da criminologia berlinense, que Lacan orientará seus estudos em torno da discussão acerca do supereu e da autopunição.

Elisabeth Roudinesco admite que, estando Lacan interessado na gênese do supereu, ele tomará Freud por um viés acadêmico, no qual a obra freudiana está associada ao eu, às resistências e aos mecanismos de defesa (ROUDINESCO, 1993). A afirmação desta autora torna compreensível o motivo por que Lacan faz referência aos trabalhos de Anna Freud sobre o papel do ambiente na patologia infantil e de Ernest Jones acerca da tendência autopunitiva do supereu. Estas referências, de acordo com Tendlarz (1989), coincidem com a hipótese lacaniana da ação do meio social sobre o indivíduo.

Estas bases teóricas contribuíram para que Lacan declarasse, na tese, que o tratamento das psicoses torna mais necessária uma psicanálise do eu do que uma psicanálise do inconsciente. Neste momento, ele apóia-se na idéia segundo a qual o estudo das resistências poderia fornecer novos manejos terapêuticos que poderiam ajudar a encontrar soluções técnicas para os impasses vividos na clínica das psicoses.

Como é sabido, Lacan inicia sua clínica atendendo casos de psicose. Ainda não exercendo a psicanálise e tendo começado sua análise pessoal somente no ano em que publica sua tese, Lacan afirma, nesta ocasião, ter como único mestre em psiquiatria Clérambault. Entretanto, ele não será partidário das idéias defendidas por seu mestre sobre uma natureza constitutiva da doença mental nem tampouco sobre o automatismo mental.

Na terceira parte da tese, Lacan, afirmando não pretender retomar a crítica das hipóteses usadas até então no estudo das psicoses paranóicas, apresenta as conclusões a que chegou através do seu trabalho. Assim sendo, a conclusão da tese é guiada por uma pergunta inicial que ele se propõe a responder. A questão é formulada assim: "a psicose, com efeito, é determinada por uma constituição?" (LACAN, 1932/1987, p. 314).

Para Lacan, a resposta a esta indagação só pode ser formulada através da apresentação de uma característica concreta ao quadro clínico estudado. Tendo este objetivo, ele afirma ter deixado de lado as hipóteses sobre a psicose paranóica que desconhecem o que há de mais simples a compreender nestes casos. A compreensão almejada por Lacan busca dar um sentido humano às condutas que são passíveis de observação nos pacientes; entre elas, cita os fenômenos mentais trazidos pelos mesmos. O entendimento do propósito almejado por Lacan poderá ser esclarecido por intermédio da análise do que ele consegue construir em torno do caso Aimée.

Quando encontra a paciente pela primeira vez, ela apresenta um histórico de internamento psiquiátrico de dez anos, período que teve início quando estava grávida. Durante todo este tempo, Aimée mostra-se num estado depressivo, acompanhado por interpretações delirantes sobre temas de perseguição associados a idéias de ciúme e prejuízo contra sua pessoa. Lacan relata o quadro apresentado por Aimée durante a gravidez:

"As conversas de seus colegas parecem, então, visá-la: eles criticam suas ações de maneira desagradável, caluniam sua conduta e lhe predizem infortúnios. Na rua, os transeuntes sussurram a seu respeito e lhe demonstram desprezo. Reconhece nos jornais alusões dirigidas contra ela." (LACAN, 1932/1987, p. 155)

Ainda, de acordo com Lacan, Aimée teria repetido para si mesma a pergunta: "Por que fazem isso comigo? Eles querem a morte de meu filho. Se esta criança não viver, eles serão responsáveis" (LACAN, 1932/1987, p. 155-156).

Aimée dá à luz uma menina que nasce morta. Atordoada pelos delírios de perseguição, ela acusa uma amiga de longa data de ser a responsável pelo infortúnio. Esta amiga, depois de um longo período sem dar notícias, sabendo que Aimée teve criança, telefona buscando retomar o contato. Logo, é em torno desta amiga que um primeiro perseguidor cristaliza-se.

Pouco tempo depois, Aimée fica novamente grávida. E, mais uma vez, apresenta um quadro depressivo. Segundo Aimée, em cada gravidez ela ficava triste e seu marido censurava suas melancolias; além disso, também se mantinham as interpretações delirantes. Desta segunda gravidez, nasce um menino ao qual ela será a única a dedicar-se durante os cinco primeiros meses, pois acredita que todos ameaçam seu filho.

Paralelamente aos delírios de perseguição, há evidências de delírios de grandeza. Tendo certeza de que o futuro lhe reserva o destino de uma grande romancista, Aimée entrega seu filho aos cuidados de sua irmã mais velha, que é viúva. Esta vem morar na casa de Aimée para auxiliá-la nas atividades domésticas, que ela executa com dificuldade. A partir daí, Lacan formula uma descrição das perseguidoras.

Ele defende que elas são sucessivas "tiragens" de um protótipo, tendo esse protótipo um duplo valor afetivo e representativo (LACAN, 1932/1987, p. 253). De acordo com Lacan, esse protótipo instaura-se em razão do poder afetivo que ele tem na vida da Aimée. Nesta perspectiva, esse protótipo ou modelo é representado por Elise, a irmã mais velha de Aimée. Para Lacan, o fato de esta irmã ter um papel muito importante na vida afetiva de Aimée explica por que esta última não entra diretamente em confronto com ela. Ele explica isso com maiores detalhes na seguinte passagem:

"Não é, com efeito, dos elogios e da autoridade que lhe são conferidos pelos que a cercam que sua irmã vai tirar sua principal força contra Aimée, é da própria consciência de Aimée. Aimée reconhecia por seu valor as qualidades, as virtudes, os esforços de sua irmã. Ela é dominada por ela, que lhe representa sob um certo ângulo a imagem mesma do ser que ela é impotente para realizar." (LACAN, 1932/1987, p. 231)

Lacan pontua dois momentos distintos na fala de Aimée em relação à sua irmã. Se, por um lado, Aimée se felicita por sua irmã cuidar do seu filho, afastando-o da severidade do pai; no momento em que dá livre curso às suas associações, o seu dizer aponta para o fato de ela suportar mal o lugar que Elise passa a ocupar na educação de seu filho. É desta divisão subjetiva que Lacan extrai o tema em torno do qual se forma o delírio.

Constata-se assim que, apesar de não realizar uma psicanálise neste caso, Lacan através da sua escuta pôde demarcar escansões na fala de Aimée que lhe revelaram o tema central do delírio. De fato, a escuta de Lacan, neste caso, aponta para a necessidade de respeitar o preceito freudiano de que no inconsciente não há contradição ou negação (FREUD, 1915b/1969). Logo, a livre associação de Aimée é tomada por Lacan como:

"A confissão do que é tão rigorosamente negado, a saber, no caso presente, da queixa que Aimée imputa à sua irmã por ter raptado seu filho, queixa em que é surpreendente reconhecer o tema que sistematizou o delírio." (LACAN, 1932/1987, p. 232)

Lacan busca, assim, explicitar sua formulação acerca da sistematização do delírio em Aimée. Com este intuito, ele alerta para o fato de que a formalização do delírio de perseguição manifesta-se pela primeira vez na pessoa da antiga amiga de Aimée. As circunstâncias em que isto acontece servem a Lacan para exemplificar suas elaborações. Aimée estando deprimida durante a gravidez, fica mais abalada ainda ao dar à luz um bebê natimorto. Pouco depois recebe um telefonema de sua antiga amiga. Logo, a explosão de ódio contra a Senhorita C. de la N. acontece, de acordo com Lacan, justamente quando Aimée fracassa no seu desejo de ser mãe. Para ele, neste momento, Aimée perde por completo suas esperanças de realizar seu "destino de mulher", uma vez que ela já havia demonstrado dificuldades para as atividades domésticas e agora não poderia ser mãe.

Lacan defende, então, a existência de uma relação mais profunda entre a pessoa na qual sistematiza-se a primeira perseguidora e o conflito moral de amor e ódio que Aimée vive com a irmã. Conclui que a amiga tomada por perseguidora representa ao mesmo tempo a amiga querida e a pessoa dominadora da qual ela tem inveja; esta é, na verdade, uma substituta da irmã. Lacan declara que a Senhorita representa a adaptação e a superioridade para com seu meio, sendo também um objeto invejado por Aimée. Desse modo, seguindo os traços dos sentimentos ambivalentes, presentes na inveja, Lacan chega à identificação. Estaria a identificação associada aí à causalidade psíquica? Estaria a identificação vinculada à constituição psicótica? A maneira como ele vai tratar a identificação no caso Aimée poderá responder a estas questões.

Constata-se que, mesmo sem citar A interpretação dos sonhos (1900), mais explicitamente o sonho do salmão defumado de uma paciente de Freud, mas seguindo a lógica freudiana, Lacan chega ao mecanismo da identificação presente nos sentimentos ambivalentes da inveja. Para ele, tanto a amiga como a irmã mais velha são tomadas por objetos de "íntima" inveja de Aimée, isto porque, para Lacan, a inveja considerada como um sentimento ambivalente denota a presença da identificação. A partir daí, ele deduz um "valor representativo" para as séries de perseguidoras de Aimée.

"Mulheres de letras, atrizes, mulheres do mundo, elas representam a imagem que Aimée concebe da mulher que, em algum grau, goza da liberdade e do poder social. Mas aí explode a identidade imaginária dos temas de grandeza e dos temas de perseguição: este tipo de mulher é exatamente o que ela sonha se tornar. A mesma imagem que representa seu ideal é também o objeto de seu ódio." (LACAN, 1932/1987, p. 254)

Esta formulação de Lacan se aproxima em muito da que ele passa a trabalhar, nos anos 40, acerca da causalidade psíquica. Na realidade, desde meados dos anos 30, quando do texto sobre o estádio do espelho, Lacan põe em destaque a função da imago na captação identificatória à qual o sujeito está submetido pela imagem do outro.

Pode-se afirmar que, na tese, encontram-se as bases sobre as quais Lacan constrói as formulações acerca da causalidade psíquica definida em termos de identificação; contudo, ele aí ainda não as explora neste sentido. Na última citação, assim como em ao menos uma outra passagem do texto de 1932, Lacan pontua o papel da imagem no caso Aimée. Ele diz então: "Compreendemos agora qual é o obstáculo de vidro que faz com que ela não possa nunca saber, ainda que o grite, que todas essas perseguidoras, ela as ama: elas são apenas imagens" (LACAN, 1932/1987, p. 297).

Com efeito, a frase da tese acima referida, aproxima-se bastante da "fórmula geral da loucura" que Lacan, em 1946, baseando-se em Hegel, vai propor como estando na constituição de todo sujeito (LACAN, 1946/1966, p. 173). Esta fórmula demonstra como o desenvolvimento dialético do ser humano se realiza sempre numa identificação sem mediação com o que o sujeito tem de melhor e, tal qual o caso Aimée, trata-se de uma identificação ideal em que a agressividade está presente.

Voltando à tese, é possível inferir que Lacan, buscando responder à questão: se a psicose seria determinada por uma constituição, passe a analisar as identificações explicativas ou mnêmicas pontuadas por ele no caso clínico. Neste sentido, ele defende que a imprecisão lógica do delírio tem importância na medida em que o delírio pode ser tomado como tendo um valor de realidade. Aqui, mais uma vez, Lacan é freudiano, pois ele reafirma que é a realidade psíquica que interessa e não a realidade material, apesar de não citar o texto de Freud sobre "Os caminhos da formação dos sintomas" (FREUD, 1917b/1969). Logo, o delírio, em seu valor de realidade, diz Lacan, "exprime claramente as tendências psíquicas de que só a expressão lógica normal é recalcada" (LACAN, 1932/1987, p. 299).

Partindo do princípio defendido por Colette Soler (1986) de que as identificações são denunciadas ao longo de um processo analítico, pode-se entender, conforme a citação que segue, o valor dado por Lacan às identificações explicativas ou mnêmicas.

"Ele diz, então, que mesmo que as identificações explicativas ou mnêmicas sejam posteriores aos distúrbios iniciais do delírio e racionalmente ilusórias, nem por isso estão menos em uma relação constante com o complexo ou o conflito, de natureza ético-sexual, e gerador do delírio." (LACAN, 1932/1987, p. 299)

É prudente salientar que, mesmo antes, quando discute o diagnóstico, prognóstico, profilaxia e tratamento da paranóia de autopunição, Lacan já tinha demarcado o papel das identificações sistemáticas, explicativas ou mnêmicas.

"Não se teria absolutamente razão para considerar a priori as primeiras identificações sistemáticas do delírio como puramente secundárias a esses fenômenos. Ainda que estas identificações, explicativas ou mnêmicas, sejam posteriores aos fenômenos ditos primários e ao período de inquietude que os acompanha, elas têm freqüentemente a relação mais direta com o conflito e com os complexos realmente geradores do delírio." (LACAN, 1932/1987, p. 274)

A partir destas citações, pode-se compreender como a tese fundamenta as elaborações seguintes de Lacan acerca da relação entre a causalidade psíquica e a identificação. De fato, o caso Aimée ilustra o que Lacan vem a estabelecer como sendo a função da imago na causalidade psíquica dos sujeitos.

"A história do sujeito desenvolve-se numa série mais ou menos típica de identificações ideais que representam os mais puros dentre os fenômenos psíquicos por eles revelarem essencialmente a função da imago. E não concebemos o Eu senão como um sistema central dessas formações, sistema que é preciso compreender, à semelhança delas, na estrutura imaginária e em seu valor libidinal." (LACAN, 1946/1966, p. 179)

Porém, em 1932, Lacan tomará a causalidade psíquica por um outro viés. Como já foi dito anteriormente, baseando-se em Karl Abraham, Lacan defende que a gênese da psicose está fundada no conflito moral de Aimée com sua irmã. Logo, ele vai trabalhar este caso à luz de uma fixação no complexo fraterno, que justificaria a existência de uma fixação na gênese do supereu. Assim, a compreensão da identificação interativa serve a Lacan para explicar o processo pelo qual Aimée transfere para as mais diferentes pessoas sua ambivalência afetiva. Contudo, baseando-se na afirmação de Colette Soler de que as identificações são denunciadas ao longo do tratamento, compreende-se por que Lacan sublinha que o processo envolvido na identificação interativa é um esforço abortado de Aimée para se liberar de sua fixação primeira. Para ele:

"Se, no curso de seu delírio, Aimée transfere para várias cabeças sucessivas as acusações de seu ódio amoroso, é por um esforço para se liberar de sua fixação primeira, embora este esforço seja abortado: cada uma das perseguidoras não é verdadeiramente nada mais que uma nova imagem, sempre inteiramente prisioneira do narcisismo, desta irmã da qual nossa doente fez seu ideal." (LACAN, 1932/1987, p. 389)

Já no texto "Formulações sobre a causalidade psíquica" de 1946, Lacan apóia-se na estrutura geral de desconhecimento manifestada perfeitamente em Aimée, para propor a universalidade da loucura, expressa em termos de identificação, como estando no cerne de todo sujeito. Na passagem abaixo, trata especificamente disso.

"Esse desconhecimento revela-se na revolta com que o louco quer impor a lei de seu coração ao que lhe afigura como sendo a desordem do mundo, iniciativa insensata, [...] dizia eu, basicamente porque o sujeito não reconhece nessa desordem do mundo a própria manifestação de seu ser atual, nem que o que ele sente como lei de seu coração é apenas a imagem invertida quanto virtual desse mesmo ser. Ele desconhece duplamente, portanto, e precisamente por separar a atualidade da virtualidade. Ora, ele só pode escapar dessa atualidade através dessa virtualidade. Assim seu ser está encerrado num círculo, a menos que ele o rompa por alguma violência.

Tal é a fórmula geral da loucura que encontramos em Hegel, pois não creiam que estou inovando, ainda que tenha tomado o cuidado de apresentá-la a vocês de forma ilustrada. Digo "fórmula geral da loucura" no sentido de que podemos vê-la aplicar-se particularmente a qualquer uma das fases pelas quais se realiza mais ou menos, em cada destino, o desenvolvimento dialético do ser humano, e de que ela sempre se realiza ali como uma estase do ser, numa identificação ideal que caracteriza esse ponto de um destino particular." (LACAN, 1946/1966, p. 172-173)

Entretanto, na tese de psiquiatria, como afirma Borch-Jacobsen (1995), Lacan faz eco aos estudos de Georges Politzer, admitindo assim que o paranóico que comete um crime conhece a lei que transgride. Ao retomar o caso Aimée, quando vai tratar do crime das irmãs Papin, Lacan dá mostras do quanto está influenciado por Politzer.

"A pulsão agressiva, que se resolve no assassinato, aparece assim como uma afecção que serve de base à psicose. [...] Mas a pulsão está marcada em si mesma de relatividade social: ela tem sempre a intencionalidade de um crime, quase constantemente a de uma vingança, freqüentemente o sentido de uma punição, isto é, de uma sanção oriunda dos ideais sociais, muitas vezes, enfim, ela se identifica com o ato da moralidade, tem o alcance de uma expiação (autopunição)." (LACAN, 1933/1987, p.392)

Efetivamente, a orientação de Lacan nestes dois períodos difere bastante, porém ocorre um intercruzamento. Na tese, a ambivalência afetiva de Aimée dirigida contra a sua irmã é entendida como condição primordial das tensões sociais que guiará toda a hipótese de Lacan sobre o comportamento autopunitivo de Aimée. Com isso, ele defende que esta fixação no complexo fraterno deve ser ultrapassada para que Aimée possa aceder a uma moralidade socialmente eficaz. No entanto, todo o esforço de Aimée em deslocar para outras mulheres o estatuto de perseguidora só faz confirmar que ela se encontra presa no complexo fraterno. Nos anos 30, baseando-se no caso Aimée, ele vai nomear o transtorno experimentado pelos paranóicos como o "mal de ser dois" e afirmar que ele se faz acompanhar da necessidade de punição (LACAN, 1933/1987, p. 397). Isto viria então evidenciar que a natureza da cura demonstra a natureza da doença.

Deste modo, Lacan consegue os subsídios necessários para propor que Aimée seja considerada um caso de paranóia de autopunição. Ele demonstra que, atacando a rival que ela inveja, Aimée pune a si própria. Assim, "pelo mesmo golpe que a torna culpada diante da lei, Aimée atinge a si mesma, e, quando ela o compreende, sente então a satisfação do desejo realizado: o delírio, tornado inútil, se desvanece" (LACAN, 1932/1987, p. 254).

Comprova-se que, no decorrer da tese, o conceito de identificação é de início e de uma maneira precisa levado em consideração, porém ele é posto de lado quando Lacan trata da nova entidade nosológica. Em outras palavras, se Lacan se dá conta do papel das identificações ditas explicativas ou mnêmicas no complexo formador do delírio, a causalidade psíquica não é ainda associada ao mecanismo da identificação.

Entretanto, a elaboração teórica de Lacan, em 1932, fornece as bases sobre as quais ele vai construir uma teoria da constituição do sujeito por identificação. Ogilvie (1993) sintetiza bem este momento da obra lacaniana.

"Como se constitui de início o sujeito humano, levando-se em conta sua 'natureza' particular de ser social? Lacan consagra os anos que seguem a Tese para a elaboração de uma resposta. Nós encontramos os elementos principalmente em dois textos: o artigo sobre 'A família' sendo o título original 'Os complexos familiares na formação do indivíduo' (1938), e o artigo intitulado 'O estádio do espelho como formador da função do eu tal como ela nos é revelada na experiência psicanalítica' (1949)." (OGILVIE, 1993, p. 86)

Ainda, de acordo com este mesmo autor, se compararmos os dois títulos, é possível extrair deles o trabalho ao qual Lacan vai se dedicar nos anos seguintes. Tendo dado por resolvida a tentativa de provar a origem social da paranóia de autopunição na sua tese, Lacan delimitará seu campo de investigação ao aspecto psíquico da questão; este objetivo fará com que ele deixe de lado toda a preocupação de ordem "sociológica" que o orientou durante a tese.

Os textos escritos entre 1938 e 1949, já pelos seus títulos, anunciam ser o momento propício para Lacan elaborar aquilo que havia recolhido da sua tese. Tanto em 1946, com "Formulações sobre a causalidade psíquica", como em 1948, com "Agressividade em psicanálise", Lacan vai desdobrar certos aspectos clínicos da sua tese sobre a psicose paranóica. Interessando-se pela gênese do eu, Lacan, por intermédio do estádio do espelho, vai definir o eu como tendo uma estrutura paranóica, revertendo assim a idéia de tensão social tal qual ela foi entendida na tese para a de uma tensão entre o eu e o outro, semelhante, adversário, modelo.

Por fim, constata-se que, por ser freudiano, Lacan pôde dentro de um tempo lógico compreender a importância da afirmação de Freud em 1921, segundo a qual a psicologia individual, num sentido ampliado e inteiramente justificável, é também uma psicologia social. Tal entendimento foi fundamental para ampliar os conhecimentos adquiridos na tese no sentido da formalização de uma teoria da constituição do sujeito por identificação.



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Recebido em 15/9/2001. Aprovado em 21/11/2001.





1 Buscando uniformizar as referências, optou-se por chamar "ego" de "eu", "superego" de "supereu" e "ça" de "isso".

Crime e ideologia: do Terceiro Reich ao assassinato de Moisés*

Crime and ideology: from the Third Reich to the murder of Moses





Verônica Martinelli

Doutora em teoria psicanalítica pelo Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro; desenvolve atividade de pós-doutoramento no mesmo Programa; veronicam@infolink.com.br






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RESUMO

Objetiva-se considerar em quais condições o homicídio se torna moralmente aceitável como forma de restauração social. Ademais, trata do funcionamento de certos grupos que legitimam o mal e o crime. Para tanto, recorre-se ao modelo fornecido pelo nazismo. A Alemanha de Hitler estabeleceu novos laços sociais, possibilitando a legitimação de uma lei de gozo. Considera-se, aqui, o nazismo, sobretudo, como instrumento para uma leitura do Moisés e o monoteísmo. O texto freudiano aborda a origem do judaísmo, articulando as noções de "estrangeiro" e "assassinato". Freud evidencia, então, que os ideais, o que há de mais nobre em nós, também empuxam ao crime.

Palavras-chave: Psicanálise, ideal, grupo, crime, mal.


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ABSTRACT

This article refers to the conditions that make homicide morally acceptable as an instrument for social restoration. It also considers the way certain groups that legitimate evil and crime work. In order to reach these goals, it resorts to the model that Nazism provides. The Hitler Administration in Germany created new social ties that permitted to legitimate a Law of enjoyment. However, in this article Nazism is essentially a means to draw a particular approach to Moses and Monotheism, by Freud. The Freudian text articulates the notions of "foreigner" and "murder" to deal with the origins of Judaism. Then, Freud evidences that ideals, the noblest objectives we have, favor crime.

Keywords: Psychoanalysis, ideal, group, crime, evil.


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A questão do mal no século XX adquiriu, nos campos de extermínio nazistas, a face do horror. O Terceiro Reich se transformou num marco do declínio moral. No entanto, "a maioria das tentativas de afirmar um tipo de assassinato em massa como pior do que os demais é motivada por preocupações políticas" (NEIMAN, 2003, p.272). Apresentar o Holocausto como o terror único e maior pode servir, por exemplo, para assegurar que qualquer coisa diferente de colocar crianças em câmaras de gás seja relativamente benigna. A dificuldade para graduar atrocidades deriva da falta de um instrumento capaz de medir o sofrimento e a maldade.

Contudo, o Terceiro Reich evidencia aspectos relevantes sobre o mal e o crime, articulando o problema à noção de ideologia e à formação dos grupos. Por isso, será o instrumento para a análise de um dever moralmente pervertido. O Holocausto mostra as condições nas quais faz sentido recuperar a questão recusada por Lacan (1963/1998, p.780) a respeito de Sade: "Não perguntaremos se é necessário nem suficiente uma sociedade sancionar um direito ao gozo, permitindo a todos valer-se dele, para que a partir daí sua máxima pretexte o imperativo da lei moral." Para alcançar nosso intuito, recorreremos ao trabalho de Hannah Arendt. Obviamente, não pretendemos uma discussão exaustiva do tema. Vamos considerar apenas alguns elementos centrais para o debate a que nos propomos.

Segundo Arendt (2000), um dos pré-requisitos para que se estabeleça um Estado totalitário é o desenraizamento das massas. A ideologia de tal forma de Estado ganha força nos momentos históricos nos quais tanto as posições quanto as funções das nações e dos sujeitos já não encontram uma ilusão de garantia no Outro. Num cenário como esse, onde havia desestruturação e insegurança, os judeus transformaram-se em catalisadores da intranqüilidade – até "a sociedade desintegrada recristalizar-se ideologicamente em torno de um possível massacre" (ARENDT, 2000, p. 75).

O crime parece, à primeira vista, essencialmente desagregador. Freud, entretanto, percebeu a capacidade do homicídio para construir, ao seu redor, a fraternidade. Tal idéia foi expressa em Totem e tabu (FREUD, 1913/1996). Afinal, a irmandade originária resultou de um acordo para viabilizar o assassinato do Pai primevo. Partindo desse ponto, a cultura se estabilizou sobre a marca da morte, perpetuada por meio da identificação com o Tirano destituído. Embora a escolha do homicídio como maneira de restauração social não seja surpreendente, podemos nos perguntar em que condições ela se tornou moralmente aceitável.

Uma das principais características do nazismo era o papel do Líder. O Führer comandou o Estado proclamando sua responsabilidade pessoal por todos os atos oficiais de cada membro do movimento. O totalitarismo indica "um governo no qual o poder é exercido por um só homem" (ARENDT, 2000, p.513). Tal onipotência se justifica, pois os funcionários não são apenas designados, encarnam o desejo do Chefe – fonte de qualquer ordem.

A função do Líder totalitário, e de sua Lei, é servir de ponto de articulação para o lugar de cada pessoa numa organização orientada por determinada ideologia. Segundo a estrutura apresentada por Freud em "A psicologia de grupo e a análise do ego" (1921/1996), tal mecanismo permanece similar ao dos demais grupos. No entanto, em geral, um homem transmite o Mandamento, em vez de se espelhar nele. Além disso, Hitler pretendeu fundar uma nova sociedade apoiada num Imperativo siderante: façam do outro a coisa disponível para qualquer ato livre de pudor e culpa.

Exemplarmente, Eichmann, em seu julgamento em Jerusalém, declarou que seus atos eram crimes apenas do ponto de vista retrospectivo. Fora um inabalável respeitador das leis, pois as ordens assassinas de Hitler "possuíam força de lei no Terceiro Reich" (ARENDT, 2001, p.35). Então, o acusado só cumpria suas obrigações. Tal questão surgiu no interrogatório, quando ele asseverou ter vivido de acordo com o preceito moral kantiano: "Quis dizer que o princípio de minha vontade deve ser sempre tal que possa se transformar no princípio de leis gerais" (ARENDT, 2001, p.153). A fala de Eichmann provoca estranheza porque a filosofia moral de Kant está ligada à faculdade do juízo, eliminando a obediência cega. Todavia o nazismo distorceu o Mandamento ético para: "Aja como se o princípio de suas ações fosse o mesmo do legislador ou da legislação local. [...] O Imperativo categórico do Terceiro Reich: aja de modo que o Führer, se souber da sua ação, a aprove" (ARENDT, 2001, p.153).

Segundo Kant, todo homem legisla ao agir, e a fonte da Lei é a razão prática. Para Eichmann, tal fonte era o desejo do Führer. Entretanto, o acusado ultrapassou a simples obediência, identificou sua vontade com a de Hitler e fez do Mandamento algo suficientemente absoluto para não comportar exceções. Por isso, ficou constrangido ao confessar o pecado cometido ao condescender com suas obrigações para ajudar um primo meio-judeu, evitando um assassinato. A questão incômoda era perceber como fora não um fanatismo homicida, mas a consciência escrupulosa a responsável pela atitude de Eichmann perante suas tarefas na execução da Solução Final: "Na apologia do crime [...] o Ser supremo é restaurado no Malefício" (LACAN, 1963/1998, p. 802). Então, o Terceiro Reich nos mostra que não basta um Imperativo buscado como um dever, para a assunção do sujeito faltoso e capaz de assumir o desejo como se fosse seu.

Assim, como a palavra do Führer tinha a força de Mandamento do mundo, toda regra contrária aos seus pronunciamentos era, por definição, ilegal. Nesse contexto, as ordens geralmente legítimas se tornam inaceitáveis e o assassinato transmuta-se em obrigação. Afinal, o horror não implicava uma exceção ao Imperativo vigente; era sua norma: "As categorias do crime são sempre relativas aos costumes e às leis existentes. [...] A psicanálise afirma que sua grande determinação é a concepção de responsabilidade recebida pelo sujeito da cultura em que vive" (LACAN, 1950/2003, p.130).

Eichmann, de certo modo, notou como o próprio Mandamento o transformou num facínora. Na maior parte dos países, a voz da consciência dita "não matarás", mesmo que o desejo de alguns seja assassino. Na terra de Hitler, o dever era "matarás", embora o homicida pudesse ter anseios mais nobres. Dessa maneira, no Terceiro Reich o mal perdeu a qualidade pela qual muitos o reconhecem: a tentação. Vários nazistas provavelmente se sentiram tentados a renegar o papel de cúmplices da carnificina, porém aprenderam a resistir (ARENDT, 2001).

A Lei totalitária estava intrinsecamente articulada a um discurso ideológico. Esse discurso arrumava os fatos sob a forma de um processo absolutamente lógico, que se inicia com uma premissa aceita axiomaticamente, tudo sendo deduzido dela. Age-se, então, "com uma coerência inexistente no terreno da realidade" (ARENDT, 2000, p.523). Graças ao pavor da contradição, tal mecanismo foi irresistível, subjugou a muitos inteiramente. Assim, quem concordasse que o direito de viver tinha relação com a raça, concluiria sobre a necessidade de matar os povos ditos inferiores.

O discurso ideológico pressupõe a suficiência de uma idéia para gerar uma compreensão coerente e abrangente do mundo. Logo, contém em si elementos totalitários prontos para se manifestar, para revelar sua estrutura, através de uma ação totalitária. Eichmann se descrevia como um homem capaz de viver para um ideal, sacrificando qualquer coisa em seu favor. Para salientar essa perfeita devoção, disse que mataria o próprio pai se isso lhe fosse exigido. Em outras palavras, ser idealista não significa deixar de vender a alma ao diabo; significa somente a possibilidade de uma venda absoluta.

Apesar de desafiar as leis positivas, a ideologia nazista não é arbitrária, pois obedece a um suposto princípio natural e histórico que estaria na base de todos os imperativos.1 O regime totalitário alegou recorrer à fonte das leis, de onde receberia sua legitimidade. Assim, o Führer sacrificou interesses vitais e imediatos à execução de um preceito primordial, esperando, dessa forma, engendrar a humanidade ideal como produto derradeiro. Portanto, embora Hitler exercesse o poder, permaneceu submetido à lógica do Mandamento a ele identificado.

As leis positivas são mutáveis. Entretanto, se comparadas à transformação constante das ações, indicam estabilidade. Porém, no totalitarismo, o Imperativo deixa de ter tal caráter estabilizador, porque se identifica ao próprio movimento. A história, assimilada à natureza, progrediria infinitamente. Então, a idéia de sobrevivência dos mais aptos – apoiada sobre a noção darwinista de evolução – foi usada pelos racistas: o extermínio seria necessário para se atingir um estágio superior.

Como esse movimento de superação seria intrínseco à natureza histórica, não pode ter fim. Se os nazistas conseguissem eliminar tudo o que fosse nocivo e indigno da vida, exterminariam também a lógica do suposto Imperativo primordial: é preciso perpetuar a morte como forma de garantir o poder. Por isso, no Terceiro Reich, o terror – destinado a converter em realidade o ideal da história – toma o lugar das leis positivas. O crime não significa simplesmente o meio para oprimir a oposição; representa a essência de um Estado que nega a permanência e se afirma pela transformação.

Em tal regime, os culpados são os entraves ao caminho do progresso, que já emitiu sua sentença a respeito das raças. No julgamento da história, todos os demais atores seriam inocentes: os mortos não agrediram o sistema; os assassinos, por outro lado, só executam o mandado de um tribunal superior.

Assim, o horror implica uma sociedade criada a partir do Mandamento da mudança. Para produzir tal modelo, precisa-se expulsar da realidade justamente o elemento responsável, segundo Freud, por fundá-la: a perda, presente como uma ausência sempre mesma. Esse termo originário alicerça a dimensão histórica e, simultaneamente, está excluído dela. No entanto, o projeto ideal nazista é tão moralmente contundente quanto irrealizável. O permanente retorna através de uma negação, pois o próprio movimento deve insistir infindavelmente na busca da comunidade almejada.

Então, no nazismo, o crime se escreve como execução de um Imperativo absoluto cujo fim último não indica o bem comum, nem o interesse individual, mas a fabricação do mundo ideal através da eliminação do sujeito em favor da transformação evolutiva da espécie. Promete-se libertar o dever do desejo – fazendo da humanidade a encarnação de uma Lei que, supostamente, não produz falta alguma. Há, dessa forma, a queda de qualquer valor singular, em prol da unificação – da ilusão de milhares serem um. Em vez de diversas pessoas, existe uma espécie.

Portanto, o funcionamento ideológico totalitário tem o efeito de exacerbar a relação especular entre os semelhantes. Como um só corpo social encarnava a Lei promulgada pelo Líder, também a fraternidade se reduzia a um ser composto de milhares de elementos. Hitler via a grandeza de seu projeto em tal exclusão das diferenças. Ele declarou: "[nossos partidários] são uniformes não apenas nas idéias, mas até a expressão facial é quase igual. Vejam seus olhos [...] e ficarão sabendo como cem mil homens podem tornar-se um só" (ARENDT, 2000, p.468).

Outra característica do movimento era que os nazistas não se detinham perante a prova de realidade. Logo, Hitler conseguiu desprezar a miséria presente e local em favor de uma ilusão paradisíaca a se concretizar num futuro indefinido e distante. Dessa maneira, coloca-se a imagem de um destino pleno sobre a ausência inassimilável e imóvel – o objeto perdido assim como o Pai morto – que, segundo Freud, funda a história do sujeito e da cultura: o porvir destitui a origem. A realidade construída por meio de tal mecanismo tem certa similaridade com o delírio. Por isso o assombro e a falta de reconhecimento das demais nações ao olhar para a Alemanha do Terceiro Reich.

O nazismo cai no abismo entre a realidade, socialmente legitimada, e os ideais que exigem sua transformação. A ideologia, mesmo pervertida, contém efetivamente um protesto contra a existência atual, pois introduz modelos na cultura e, então, reclama a perfeição em nome deles. Seu método é inscrever, através de uma ficção, um significado novo para a vida, ao desvincular o homem dos significantes produtores das referências antes compartilhadas. O séqüito do Führer criou, por exemplo, "regras de linguagem" que não deixavam as pessoas ignorantes quanto a seus atos, porém as impediam de equacioná-los com suas antigas noções de mentira e crime. No lugar do velho mundo, constrói-se outro, escondido sob o presente e capaz de dominá-lo.

Segundo Arendt (2000), o projeto totalitário atua na esfera onde se anuncia: "tudo é possível". Os campos de extermínio foram os laboratórios destinados a demonstrar tal crença. Entretanto, apenas se afastando de uma realidade estabelecida, alguém consegue afirmar algo assim. Esse princípio representa uma das maiores rupturas do Terceiro Reich com o resto da humanidade, porque quase sempre recuamos perante determinadas fronteiras e recebemos com horror o gozo monstruoso produzido pela pretensão de subjugar o impossível. Os partidários de Hitler, dispostos a desconhecer qualquer barreira em nome de uma Lei total, só podem despertar o pavor bestial. Nós os vemos como Lázaro ressuscitado.

Para os nazistas se afastarem de seus valores tradicionais, foi preciso destruir os claudicantes laços sociais preexistentes e substituí-los por uma nova organização. O grupo reinventado objetivava garantir a verdade da ideologia que supostamente coloca as coisas onde deveriam estar ao exigir a igualdade entre a realidade e os modelos.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo celerado assolou quase a totalidade do povo alemão. Entretanto, nas demais nações a situação foi diversificada: "a lição dos países aos quais se propôs a Solução Final é que ela poderia acontecer na maioria dos lugares, mas não aconteceu em todos" (ARENDT, 2001, p.254). Os partidários de Hitler acreditavam no potencial do anti-semitismo para ser o denominador comum capaz de unificar a Europa. Esse foi um erro, pois o terror assumia tantas faces quantas eram as fronteiras do velho continente. Em alguns Estados, o Holocausto foi devastador. Na Romênia, por exemplo, até a SS ficou perplexa com os horrores provocados pela população. Os nazistas chegaram a intervir para salvar judeus da barbárie, em favor de um assassinato "civilizado".

Por outro lado, na Dinamarca, não somente os habitantes do local se negaram a participar do programa de extermínio, como os próprios membros da SS deslocados para o país mudaram de posição. Assim, inclusive homens da elite da Gestapo – envolvidos antes na efetivação da Solução Final em nações diferentes – passaram a se recusar a atender as ordens do Führer. Tal exemplo evidencia que o jogo de identificações e ideais constrói e determina o sujeito. Quando se viram numa cultura em que o crime continuava ilegítimo, nazistas recuperaram padrões morais tradicionais – o "não matarás" converteu-se, novamente, numa Lei vigente e numa força oposta ao Imperativo homicida.

Antes de encerrarmos esta rápida apresentação das características do Terceiro Reich, resta-nos fazer algumas considerações sobre o lugar ocupado pelos judeus na sociedade européia. Desde o início, os anti-semitas da Alemanha de Hitler assumiram um discurso supranacional. Visavam a um governo intereuropeu. O fato de o "povo eleito" constituir, num continente dividido em países, o elemento além das fronteiras indicava a íntima relação entre a sua condição e a ideologia nazista. Unificando as nações através de um projeto racista, pretendia-se eliminar os pretensos manipuladores do destino dos Estados, apoderando-se de seus segredos e armas (ARENDT, 2000).

Ainda que os judeus habitassem a Europa há vários séculos, nunca deixaram de representar uma "nação dentro de outra nação" (ARENDT, 2000, p.54). Tratava-se de um grupo sem governo próprio, sem terra, disperso pelos Estados, estranho e estrangeiro em toda parte. Para um movimento com a pretensão de eliminar qualquer diferença em favor de uma raça internacional unificada, o "povo eleito" encarnava o alvo, não exclusivo, mas privilegiado: o visitante indesejável comum aos países do velho continente. Essa posição das vítimas era tão importante que, em geral, os judeus oficialmente estrangeiros foram os primeiros a serem perseguidos. Ademais, muito freqüentemente, o extermínio era precedido por medidas legais para transformar em apátridas os futuros objetos do sacrifício.

Assim, o Holocausto estava relacionado à noção de estrangeiro. Porém, curiosamente, a discriminação também foi potencializada pelo crescimento das idéias igualitárias – disseminadas desde a Revolução Francesa. Afinal, a afirmação da igualdade dos homens converteu as diversidades em paradoxo.

Efetivamente, quanto menos se percebiam os judeus como iguais, mais interessantes se tornavam. A cultura burguesa, apaixonada por quem diferia das normas, seduziu-se pelo misterioso, pelo perverso ou mau: "A sociedade, constantemente à espreita do estranho, do exótico, do perigoso, finalmente identifica o refinado com o monstruoso e se prontifica a admitir monstruosidades" (ARENDT, 2000, p.104). A imagem incomum vinculada ao "povo eleito" ajudou a temperar o racismo com o fanatismo capaz de conduzir as massas na direção dos homicídios. Quando promulgaram as leis anti-semitas, foi como se os nazistas expurgassem o mundo de uma depravação, um estigma poderoso pelo qual cidadãos decentes haviam sentido grande atração: "a sociedade [...] estaria agora pronta a purificar-se do mal, reconhecendo abertamente os criminosos para publicamente cometer os crimes" (ARENDT, 2000, p.110). O curioso é que encontramos a maior proporção de assassinos nos grupos antes íntimos dos judeus – aqueles que avidamente desejaram o desigual procuraram com pertinácia excluí-lo.

O nazismo foi um momento particular do século XX que evidenciou as dificuldades e os impasses da apreensão moral. O extremo da crueldade e a presença excessiva da morte fazem toda busca de sentido parecer perigosa e inútil. Não existe uma significação pertinente para o horror desmedido. Porém, como apreender, a partir dos conceitos da psicanálise, o funcionamento de determinados grupos que legitimam o mal e o crime?

O Simbólico permite o laço social através de uma Lei ao mesmo tempo interditora e gozosa. No Terceiro Reich, o caráter proibitivo do Imperativo se manteve sob a forma de obediência incondicional ao desejo do Líder humano e pretensamente onipotente, estabelecendo-se, assim, um vínculo orientado pela massiva assimilação da palavra do Chefe. Contudo, o Mandamento da sociedade nazista era governado pelo gozo. Até a interdição guiava o sujeito em sua direção. Quando o significante se estrutura de maneira a exacerbar a incidência do Real, o Imaginário também se torna desmedido; por isso, no Terceiro Reich a identificação dos integrantes do grupo está marcada pela ilusão de uma radical unificação dos sujeitos mutuamente refletidos. Afinal, se a Lei já não cumpre seu papel de contenção, impõe-se ainda mais a necessidade de tamponar o impossível. Tal enodamento do Simbólico com o Imaginário, dominado pelo gozo, assume feições diversas ao longo da história. Todavia, é uma ocorrência tão antiga quanto a vocação do mal e do crime para se transformarem em núcleo de uma ideologia capaz de apoiar um modo de laço social totalizante e, logo, excessivo, que destitui as barreiras construídas pela moral tradicional e pelas leis reconhecidas pela comunidade de Estados.

A crueldade não foi invenção do Terceiro Reich. Horrores como o fogo da Inquisição, o massacre dos armênios e a Primeira Guerra Mundial provam isso. "Até para os historiadores esperançosos, esses acontecimentos bastavam para dissipar qualquer fé ilimitada na humanidade" (NEIMAN, 2003, p.258). Se olharmos para dois mil anos atrás, veremos um homem açoitado, coroado com espinhos, carregando publicamente o símbolo da sua tortura, e, no fim, pregado numa cruz onde morreu. Tal cena, relembrada nas igrejas, evidencia que os sujeitos há muito se unem ao redor da violência – embora seja diferente idealizar a vítima ou o assassino.

No entanto, como foi dito, o nazismo constitui um fenômeno privilegiado para apresentarmos certos aspectos do mal articulado à estrutura de um grupo. O Terceiro Reich, obviamente, não nos mostra todos os ângulos da questão. Mas alguns dilemas morais – dos quais falaremos agora – foram especialmente prementes nesse caso.

O primeiro problema diz respeito à produção do mal como efeito de uma engrenagem na qual as pessoas funcionam como peças de uma máquina mortal. Todas as instituições públicas da Alemanha, pelo menos durante os anos de guerra, estavam envolvidas em ações criminosas. Tal absorção da burocracia por desígnios assassinos justifica a expressão escolhida por Arendt (2001, p.311) para se referir à Solução Final: "massacre administrativo".

Essa estrutura estatal sofria de um curioso amorfismo. As organizações eram incessantemente multiplicadas e o poder transladado sem interrupções. As constantes mudanças atingiam os departamentos, mas também as pessoas. Existia uma infindável transferência de postos e desestimulava-se o contato duradouro entre integrantes do partido: "O isolamento de indivíduos atomizados constitui a base para o domínio totalitário" (ARENDT, 2000, p.457). Dessa forma, a ilusória unificação do movimento se apoiava na impossibilidade de cada sujeito definir seu lugar particular. Como quase ninguém sabia exatamente qual era sua posição, sua missão e o valor de seus atos na máquina, disseminava-se a cumplicidade pela população e, ao mesmo tempo, diluía-se a responsabilidade. Assim, na máquina de homicídios o criminoso transforma homens em cadáveres numerados, porém ele próprio está ausente.

Uma curiosa imagem da destituição do sujeito, produzida no exercício de certa função, é fornecida por Herman Melville (1986) numa pequena novela intitulada Bartleby, o escriturário. O livro narra a história de um rapaz contratado por um advogado. A princípio, o novo funcionário cumpria sua tarefa incansavelmente. No entanto, depois de algum tempo, começou a se negar a prestar uma série de serviços, até que, por fim, nada realizava. Ficava, então, longas horas atrás de seu biombo, calado, olhando pela janela, para a cinzenta parede fronteiriça. Era uma perpétua alma penada, cercada por uma indiferença cadavérica. Nessa insólita situação, o patrão afirmou: "Tivesse sentido qualquer coisa de normalmente humana em Bartleby, que sem dúvida o teria escorraçado do meu escritório. Porém em tais circunstâncias, mais depressa pensaria em atirar pela porta o meu busto de Cícero em gesso branco" (MELVILLLE, 1986, p.33).

Com o tempo, percebeu-se que Bartleby vivia no escritório sem jamais sair. Como a situação tornou-se insuportável, o advogado decidiu demiti-lo. O rapaz, todavia, sem discutir ou explicar, permanecia atrás do biombo. Perante as dificuldades práticas geradas por aquela insólita presença, o patrão retirou-se – vendeu a propriedade. O funcionário "ali ficou, o imóvel ocupante na sala vazia" (MELVILLE, 1986, p.83). Entretanto, o novo dono, para livrar-se do incômodo e estranho ser, chamou a polícia. Bartleby morreu na cadeia, olhando para uma parede cinzenta.

Alguns meses após a morte, o advogado conseguiu uma vaga informação sobre seu antigo escriturário. Ele teria exercido um cargo subalterno na seção de cartas extraviadas, de onde fora dispensado de repente, por causa de uma reforma administrativa:

"Concebam um homem propenso a uma pálida desesperança: haverá melhor atividade para desesperá-lo do que o contínuo manuseio dessas cartas extraviadas, mortas, e com elas alimentar o fogo? Porque são queimadas todos os anos, às carradas. Por vezes, dentre as folhas dobradas de uma carta, o pálido escriturário retirava um anel – o dedo ao qual estivera destinado estava talvez apodrecendo no túmulo; uma nota de banco retirada remetida com solícita caridade – e aquele a quem se destinava a socorrer já não come, já nem tem mais fome [...]. Nas mensagens da vida, tais cartas apressam a morte." (MELVILLE, 1986, p.100)

Bartleby carecia de desejo. O rapaz é a peça do escritório. Parado diante da janela, ele perturba por sua perversa ausência permanentemente presente. Vivendo maquinicamente, desconhecia sua missão na sala fria que, no entanto, abarcava sua vida de forma total. O funcionário associado à morte, ao cadavérico, assombra.

No Seminário sobre "A carta roubada", Lacan usa o conto de Edgar Allan Poe. O estatuto do "verdadeiro sujeito" da história, a carta, é plural. Todavia, vou pensá-la como o "significante". Boa parte do artigo de Lacan (1956/1998) dedica-se a evidenciar a supremacia desse elemento na estrutura da narrativa. Ao longo das cenas, conforme a missiva se desloca, os personagens também ocupam diferentes lugares. Enquanto se movem, vão se modificando suas visões, suas falas... Essa translação enfatiza como nenhum dos atores preexiste a suas posições. Eles estão lá pela força do percurso de uma carta que os comanda: "o deslocamento do significante determina os sujeitos em seus atos, seu destino, suas recusas, suas cegueiras, seu sucesso e sua sorte" (LACAN, 1956/1998, p. 34).

Assim, Lacan (1956/1998) fala de uma carta cuja função é instaurar, mediante seu circuito, o lugar do sujeito. Melville descreve outra, incapaz de atingir seu destino, porque o caminho foi interrompido. Trata-se de uma mensagem vazia, pervertida e endereçada à morte. Se o significante tem seu percurso impedido, deixa de cumprir sua missão – ao invés de construir o sujeito, o destitui ao demarcar uma posição inapreensível, devastada pelo gozo. O Terceiro Reich foi uma monstruosa fábrica de cartas extraviadas.

O segundo dilema moral evidenciado por meio do Holocausto indica os impasses da idéia de intenção. Como dissemos antes, a engrenagem chefiada por Hitler disseminou a cumplicidade, minimizando a incidência da culpa. Porém, para produzir esse efeito, precisou diluir a força da noção de intenção. Dessa maneira, de acordo com a ideologia nazista, os carrascos representavam apenas objetos a serviço das onipotentes leis naturais. Por isso "em vez de dizer 'Que coisas horríveis eu fiz!', os assassinos podiam dizer 'Que coisas horríveis tive de ver na execução de meus deveres!'" (ARENDT, 2001, p.122). Então, o governo do Führer levou as pessoas a abdicar de suas objeções morais por acreditarem que ações más exigem má vontade. Afinal, os crimes do regime do qual participavam justificavam-se por motivos supostamente aceitáveis. A eficácia de tal método mostra como o sentimento de culpa constitui um critério pouco confiável para avaliar problemas éticos.

Eichmann, por exemplo, declarou até gostar dos judeus. Todavia, enquanto ajudava a efetuar a Solução Final, "só ficava com a consciência pesada quando descumpria suas ordens – embarcar milhões de homens, mulheres e crianças para a morte, com grande aplicação e o mais meticuloso cuidado" (ARENDT, 2001, p.37). Os arautos do horror foram salvos da culpa pela submissão à Lei do gozo. Tal destruição dos preceitos morais e legais instituiu a eficácia maléfica do Holocausto.

A psicanálise nunca se orientou pelo conceito de intenção. Na medida que considera o inconsciente, sua questão aponta para uma direção diferente. Se lembrarmos a tragédia de Édipo – modelar no quadro da teoria freudiana – veremos um homem cujos esforços se exauriram na tentativa de evitar seu destino. Assim, o crime por ele cometido não foi deliberado. A vontade repudiava o oráculo. No entanto, ao contrário de Eichmann, a personagem de Sófocles fica soterrada pela culpa, preço pago pela realização de um desejo inacessível e inaudito. Justamente por indicarmos o mal além do duvidoso jogo das intenções, podemos reafirmar, em outro nível, a exigência de responsabilidade: "Porque a verdade buscada pela psicanálise é a verdade de um sujeito, ela tem que manter a idéia de responsabilidade" (LACAN, 1950/2003, p.131). Afinal, ademais de sermos efeitos da linguagem, nós a produzimos. Os imperativos não são unicamente entidades lógicas, são dizeres constantemente atualizados. Cada sujeito, desejante e dividido, ao afirmar a legislação vigente em sua cultura, demarca sua posição e simultaneamente reinstaura o princípio regulador de certo grupo. Dessa forma, a responsabilidade indica que o poder de um preceito implica sua enunciação.

Segundo Freud, o sentimento de culpa representa um obstáculo à repetição do homicídio – desejado e repudiado – apoiando a produção do sujeito por meio do recalcamento. Todavia, o remorso surgiu, na tragédia de Édipo, a respeito do ato perpetrado contra o Pai. Também Eichmann se arrependeu de cada deslize na execução do dever identificado à vontade do Líder. Então, a culpa se torna pouco confiável como critério para julgamentos morais, pois não está vinculada ao Bem, mas à contraditória Lei paterna: "goza!" e "jamais podes gozar!". Por isso, Freud (1930/1996) insistia na incidência desmedida, injusta da culpa – capaz de, às vezes, assolar os santos e se desviar dos homicidas. Logo, numa máquina regida pelo Imperativo do gozo, carrascos cumprem a penitência por alguma eventual piedade.

O último dilema moral que discutiremos, a partir dos eventos ocorridos durante o Terceiro Reich, é a banalidade do mal. Seria cômodo descrever os nazistas como monstros terríveis. Eichmann, entretanto, nos revela algo diferente. Ele não era especialmente sádico ou violento, e sim uma pessoa assustadoramente vulgar. Como dissemos, muitos homens responsáveis pela Solução Final cometeram seus crimes por estarem num ambiente onde foi possível esquecer a distinção entre o certo e o errado – em outras circunstâncias, talvez não entrassem para a história como homicidas: "Se isso é banal e até engraçado, se nem com a maior boa vontade se extrai qualquer profundidade diabólica ou demoníaca de Eichmann, isso está longe de ser lugar-comum" (ARENDT, 2001, p.311). Realmente, nada há de comum em jogar seres humanos nos fornos. O nazismo nos mostrou como um evento excepcional conseguiu conduzir ao extremo da maldade: sua banalização.

Esse projeto cultural celerado não teria atingido tamanha proporção no Terceiro Reich, se estivesse restrito a um número limitado de militantes do partido nazista. No entanto, a desvalorização da vida alcançou a maioria da população alemã. A banalidade do mal emergiu do tecido social cotidiano. Arendt (2001) nos fornece como exemplo a história de um médico perseguido por certa mulher decidida a tratar de uma veia varicosa. Tentaram convencer a senhora de que o importante, naquele momento, seria fugir, porque os russos estavam prestes a invadir a região. Todavia, a enferma respondeu sem se alterar: "Nunca vão nos pegar. O Führer nunca vai permitir. Antes disso nos põem na câmara de gás" (ARENDT, 2001, p.127). O médico olhou em volta, porém ninguém parecia achar a declaração anormal. Esse aspecto banal, indiferente, transforma o gozo em horror. Lacan (1963/1998) apontou o problema ao imaginar a vítima de algum carrasco criado por Sade reagindo assim à tortura: observa sua perna e diz, calmamente, "Tu a quebraste". Tal miséria assusta mais do que o próprio ato sádico.

O mal tem faces diversas. Sade representa um modelo. Como seu oponente era Deus, buscava criminosos atrozes o suficiente para acertar o alvo: seres com apetites incomensuráveis e repugnantes. Entretanto, nem sempre o mal se realiza mediante a grandeza simbolizada por esses personagens. Afinal, mesmo o diabo em pessoa pode ser decepcionante. Os demônios de Goethe e Dostoievski, por exemplo, exalam miséria. Ambos se oferecem como servos de impulsos mais mesquinhos do que terríveis. Mefistófeles sequer entra no escritório de Fausto sem cumprir determinadas exigências, tamanha a sua submissão à regra. Cada palavra e gesto seu circunscreve a impotência. O pobre-diabo de Goethe não está entre os grandes. O anjo decaído de Ivan Karamazov, por sua vez, encarna o fracasso: um serviçal, um palhaço. Tais Príncipes das Trevas, movidos por anseios reles, indicam apenas a soma das fraquezas humanas (NEIMAN, 2003).

A banalidade do demônio provoca desconforto. Sade conquistou nossa imaginação porque almejamos tanto os heróis quanto o tipo certo de vilão. Goethe e Dostoievski, todavia, resistiram à tentação de descrever o mal atribuindo-lhe "grandeza satânica". Eichmann espanta, pois se esperava encontrar uma personagem sádica, mas se vê um idiota. Horrível é saber que alguém tão desprovido de ferocidade infernal participou da produção em massa de cadáveres – participou da produção de tamanho mal.



O ESTRANGEIRO

Em 1938, Freud escrevia um texto sobre a origem do judaísmo e as características do "povo eleito". No preâmbulo da segunda parte de Moisés e o monoteísmo (1939/1996, p.71) lemos: "Estamos vivendo num período especialmente marcante. Descobrimos, para nosso espanto, que o progresso aliou-se à barbárie." Se um judeu, vivendo em Viena, na época de ascensão do nazismo resolve falar de seu povo, decerto o anti-semitismo aparece como questão premente. No entanto, o problema não foi abordado de acordo com a lógica do Terceiro Reich – ou seja, a partir da noção de raça. Em vez disso, produziu-se uma leitura a respeito da construção do monoteísmo.

A hipótese de Freud (1939/1996) se apóia sobre o mito da horda. Nos tempos primevos existiu um só Senhor Todo-Poderoso morto pelos filhos. A lembrança desse ato se desvaneceu na memória consciente dos sujeitos. Entretanto, deixou traços permanentes. Quando o egípcio Moisés trouxe a idéia de um Deus único, reviveu a marca do momento inicial da cultura, da religião e da moral. Ao reencontrar o Ser ansiado, os fiéis responderam com temor e submissão à vontade Divina. Contudo, a essência da relação com o Pai é a ambivalência. A hostilidade também despertou: repetiu-se o parricídio. Todavia, no judaísmo não havia possibilidade de se voltar o ódio diretamente contra o Eterno. Assim, Moisés, o fundador do monoteísmo, foi a vítima do crime. O Líder teve um final violento no levante de seu povo, que então rejeitou a nova religião. Porém, depois, os judeus recuperaram a crença e recalcaram mais uma vez o homicídio.2

Quando tratamos da construção do judaísmo, apresenta-se o modelo de embate de forças próprio ao discurso da Psicanálise. Afinal, o monoteísmo indica o campo social no qual esse saber se produziu, marcando a forma como a ética, o desejo e a culpa incidem sobre o sujeito. Por isso, Freud sempre retorna às questões despertadas pela religião nos seus textos a respeito da cultura. O nazismo, por sua vez, convoca uma lógica até certo ponto diversa – de maneira que o Holocausto e a admitida antipatia dos partidários de Hitler pelo cristianismo significaram, além da destruição de homens, o ataque a um princípio. Buscando a realização total do desejo identificado com a vontade do Líder, os arautos do extermínio imaginaram tamponar a lacuna gerada pela renúncia pulsional e pelo recalcamento. Assim, destituíram o Bem encarnado nas doutrinas morais tradicionais – o ato recusado em tais doutrinas passa para o primeiro plano na ideologia que legaliza o crime. Podemos recuperar a fórmula de Lacan em Kant com Sade (1963/1998): sobrepondo-se dois Imperativos, relativamente opostos, revela-se a verdade de ambos. Em qualquer caso, o Mal e o Bem coabitam.

Em Moisés e o monoteísmo (FREUD, 1939/1996), procura-se justamente a verdade esquecida do judaísmo. O início daquele artigo dedica-se a provar uma hipótese oculta na história oficial da religião: o fundador do monoteísmo era um egípcio, um estrangeiro. No mínimo, é interessante retomar essa idéia considerando a descrição feita por Arendt (2001) da posição dos judeus na Europa.

Freud (1939/1996, p.127) estava bastante consciente do traço distintivo que envolvia essa posição: "Os judeus têm uma opinião particularmente elevada de si mesmos [...], são inspirados por uma confiança singular na vida, como a que deriva da posse secreta de algum bem precioso – pessoas piedosas chamá-lo-iam de confiança em Deus." Esse grande amor-próprio não chega a causar espanto. Afinal, trata-se do "povo eleito" pelo Criador, especialmente próximo d'Ele. Uma parte significativa dos habitantes do velho continente "reagiu como se acreditasse em tal superioridade [...]. Quando se é o favorito declarado do pai temido, não se precisa ficar surpreso com o ciúme dos irmãos" (FREUD, 1939/1996, p.127). De Caim e Abel até José, as fraternidades do texto sagrado atestam isto.

Moisés, ao criar os judeus, ofertou-lhes a santidade junto com uma conseqüente marca misteriosa, capaz de mantê-los superiores e separados dos demais homens. Obviamente outros grupos também possuíam uma auto-estima elevada, mas o valor atribuído ao "povo eleito" recebeu um arrimo religioso. "Devido à relação particularmente íntima com seu Deus, adquiriu uma parcela da grandeza dele" (FREUD, 1939/1996, p.127). De acordo com Freud, os judeus identificaram-se com o egípcio excepcional que fundou a dignidade da fé monoteísta. Desse modo, permaneceram, como diz Arendt (2001), estrangeiros enigmáticos em todos os lugares.

Todavia, Freud (1939/1996) fala ainda de uma segunda verdade, citada antes, recusada pelo judaísmo: o assassinato de Moisés. Portanto, a fórmula geral proposta é a seguinte: mata-se o estrangeiro. Na história recalcada da religião surge o preceito promovido pelo nazismo.

Promulgou-se o "não matarás" para impedir o sujeito de realizar um dos seus desejos mais caros – punindo qualquer infração. Assim, a doutrina religiosa pretende impor limites ao Mandamento do gozo. No entanto, a renúncia pulsional nunca pode ser absoluta – é preciso um espaço de expressão. Por isso a fraternidade exige a segregação. Freud (1930/1996) chama tal mecanismo de "narcisismo das pequenas diferenças": a união de um grupo se solidifica por meio da exacerbação da agressividade para com as pessoas excluídas dessa comunidade, transformadas então na encarnação do mal que deve ser apartado.

A aversão pela diferença traduz uma afirmação narcísica. O amor-próprio trabalha para a preservação do sujeito, como se a diversidade humana implicasse incompatibilidade e concorrência. Ademais, a satisfação obtida através da opressão contra os estrangeiros compensa a muitos pelas injustiças sofridas entre os seus semelhantes: "um plebeu infeliz [...] não deixava de ser um cidadão romano, com sua quota na tarefa de governar outras nações e ditar suas leis" (FREUD, 1927/1996, p.24).

A agressividade se volta preferencialmente para os pormenores de diferenciação. É comum, por exemplo, a rivalidade dos moradores de cidades vizinhas. Nesse sentido "os judeus, espalhados por toda parte, prestavam um útil serviço às civilizações dos que os acolheram" (FREUD, 1930/1996, p.136). Afinal, eles se distinguiam de seus países "hospedeiros" de forma pouco óbvia. Como em vários lugares dominados pelo anti-semitismo o "povo eleito" estava entre os grupos mais antigos da população, sua desigualdade era até certo ponto indefinível, vinculada a uma tradição "mãe" do cristianismo hegemônico, porém misteriosa diante do olhar europeu.

Portanto, no Terceiro Reich, a hostilidade se exerceu contra o estrangeiro próximo que, por possuir um suposto poder enigmático – capaz de instrumentá-lo a manipular o destino dos Estados – incorporava tanto a distinção quanto a cobiça. Desse modo, os judeus detinham um posto almejado e, simultaneamente, representavam o elemento inassimilável para o modelo ideal anti-semita. Os partidários de Hitler aspiravam reconstruir a definição humana atirando o inapreensível ao fogo para, então, identificar-se com ele.

A ideologia descreve a sociedade como um todo harmônico e complementar, no qual cada integrante contribui de acordo com sua função. O discurso nazista produziu novos vínculos para sujeitos desenraizados mediante a tentativa de suturar a ruptura irredutível entre a comunidade e o sonhado equilíbrio natural. Todavia, uma pergunta insistia: como lidar com as incessantes lutas antagônicas, fruto da indelével agressividade? Para forjar uma resposta, o judeu assumiu o lugar do corpo estranho que instauraria a corrupção no tecido social hipoteticamente sadio. O "povo eleito" encarnou a impossibilidade estrutural do grupo, ofertando uma existência palpável e imaginariamente eliminável para o resto engendrado pela cultura. Por isso, demarcou o ponto de irrupção do gozo no Terceiro Reich. Exercitando sua hostilidade contra o estrangeiro íntimo, os carrascos visavam compensar a identificação ideal malograda (ZIZEK, 1992). Ou seja, matando homens pretendeu-se exorcizar as faltas da fraternidade – suas pequenas diferenças – em favor da constituição da perfeição. Contudo, ao afogar a Lei no gozo, Hitler gerou só horror e crimes.

Assim, a ficção ideológica se organiza por meio do combate ao elemento que circunscreve sua impossibilidade. Entretanto, os desvios e as degenerações do funcionamento social são produtos necessários ao sistema. O conceito de "narcisismo das pequenas diferenças" evidencia justamente o quanto a fraternidade precisa de um termo externo e heterogêneo para se sustentar. Por conseguinte as falhas no projeto igualitário indicam a verdade da cultura: seu caráter antagônico e hostil. Devemos reconhecer nos traços atribuídos aos judeus pelos nazistas o efeito indelével, porém ideologicamente renegado, da vida no grupo.



CONCLUSÃO

As paixões que devoravam a Europa no fim da década de 1930 mostram o quanto os ideais empuxam ao crime. Cada ideologia constrói o nó do gozo com a Lei de uma maneira particular. Afinal, ainda que a legitimidade do horror não represente um fenômeno global, a ambivalência dos Imperativos é partilhada pela humanidade. Moisés e o monoteísmo (FREUD, 1939/1996) foi escrito sob o impacto do anti-semitismo. Todavia, o texto não vincula o "mata-se o estrangeiro" apenas aos nazistas; faz a fórmula intervir na própria tradição judaica.

Freud revela como, "em nome do que há de melhor em nós, em nome dos sacrifícios para os quais estamos prontos, por amor à instância paterna, podemos nos transformar em criminosos" (MELMAN, 1999, p.23). Antes das declarações de Eichmann, em seu julgamento, provocarem assombro, a psicanálise já indicava que mesmo os traços mais nobres são passíveis de converter sujeitos comuns em facínoras. Se a idéia da universalização do horror serviu – equivocadamente – para eclipsar responsabilidades, a atribuição do mal a um restrito e exclusivo conjunto de monstros desumanos também foi útil para minimizar nossa culpa, contudo jamais para trabalharmos com a verdade. Como comenta Zizek (1992), a atração de Freud (1914/1996) pelo Moisés de Michelangelo está em vislumbrar a imagem de um homem prestes a ceder à fúria destrutiva, mas com força para se dominar e não quebrar as Tábuas da Lei. Embora ninguém se isente do desejo celerado, qualquer um tem a chance de abdicar de sua consumação em ato.



REFERÊNCIAS

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_______ . (2001) Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
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(1913) "Totem e tabu", v.XIII, p.13-163. [ Links ]
(1914) "O Moisés de Michelangelo", v.XIII, p.213-241. [ Links ]
(1921) "A psicologia de grupo e a análise do ego", v.XVIII, p.89-179. [ Links ]
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LACAN, J. (1950/2003). "Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia" in: Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar. [ Links ](1956/1998) "Seminário sobre 'A carta roubada'", in Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar. [ Links ]
_______. (1963/1998) "Kant com Sade" in: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar. [ Links ]
LEMÉRER, B. (1998) Les deux Moïse de Freud, Toulouse: Érès. [ Links ]
MELMAN, C. (1999) "La croyance", in Bulletin de la Association freudienne internationale, n. 84, Paris: Climats, p. 16-23. [ Links ]
MELVILLE, H. (1986) Bartleby, o escriturário, Rio de Janeiro: Rocco. [ Links ]
NEIMAN, S. (2003) O mal no pensamento moderno: Uma história alternativa da filosofia, Rio de Janeiro: Difel. [ Links ]
ZIZEK, S. (1992) Eles não sabem o que fazem, Rio de Janeiro: Jorge Zahar. [ Links ]




Recebido em 3/4/2005. Aprovado em 28/9/2005.





* Agradeço a Sérgio Paulo Benevides pela revisão do texto e a Anna Carolina Lo Bianco, pela leitura atenta e observações.
1 Legitimar a prática legislativa de um governo apoiando-a em um termo pretensamente primeiro, superior e absoluto não é uma peculiaridade do Terceiro Reich. Faz-se o mesmo quando, por exemplo, Deus torna-se a garantia das leis que regulam a sociedade. A diferença se estabelece, então, quando consideramos as características desse princípio legitimador e quais Mandamentos ele justifica.
2 Em Moisés e o monoteísmo, Freud (1939/1996) usa duas palavras diferentes para tratar da falta de registro consciente dos assassinatos do Pai primevo ou de Moisés: Verdrängung e Verleugnung. Alguns autores já se dedicaram a discutir qual dessas operações é a fundamental para a construção da cultura, da religião e da moralidade (ver, por exemplo, o texto de Lemérer, 1998, sobre o valor essencial da Verleugnung). Não me deterei em tal ponto. Limito-me a apresentar a questão, preservando a diversidade implícita ao trabalho de Freud. Podemos dizer que, na criação do corpo social em geral – assim como na da doutrina judaico-cristã especificamente – vemos em ação a Verdrängung, a Verleugnung e a Verwerfung. Portanto, manterei a duplicidade de termos encontrada em Moisés e o monoteísmo (FREUD, 1939/1996).