POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ

POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ

domingo, 31 de julho de 2011

A VERDADE E AS FORMAS JURÍDICAS - FOUCAULT

O livro A verdade e as formas jurídicas traz por escrito o teor de cinco conferências proferidas por Michel Foucault na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro entre 21 e 25 de janeiro de 1973. Nestas conferências são antecipados os desenvolvimentos contidos no livro Vigiar e Punir (1975) e pode-se observar a demonstração do vínculo entre os sistemas de verdade, bem como de onde provêm e onde se investem as práticas sociais e políticas.

Conferência 1
Faz um resumo do tema que será debatido nas cinco conferências. Há também uma leitura anti-epistemológica de alguns textos de Nietzsche para a diferenciação entre verdade e conhecimento.
A verdade através da prática penal
Foucault define que seu “objetivo será mostrar como as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento” (FOUCAULT, 1999, p. 8). Para este fim propõe três eixos: 1) a história dos domínios do saber em relação com as práticas sociais, em que o saber do homem nasceu das práticas sociais do controle e da vigilância; 2) a análise metodológica dos discursos além do aspecto lingüístico, mas como jogos estratégicos de ação e de reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, como também de luta; 3) a reelaboração da teoria do sujeito além da filosofia (sujeito como fundamento de todo conhecimento) e da psicanálise (posição absoluta do sujeito), mas “de um sujeito que não é dado definitivamente, que não é aquilo a partir do que a verdade se dá na história, mas de um sujeito que se constitui no interior mesmo da história, e que é a cada instante fundado e refundado” (idem, p. 10).
Pareceu-me que entre as práticas sociais em que a análise histórica permite localizar a emergência de novas formas de subjetividade, as práticas jurídicas, ou mais precisamente, as práticas judiciárias, estão entre as mais importantes (idem, p. 11).
Há duas histórias da verdade: a interna, que se corrige a partir de seus próprios princípios de regulação, como nas ciências, e a externa, que se forma nas sociedades em um certo número de regras de jogo que definem formas de subjetividade, domínios de objeto e tipos de saber.
As práticas judiciárias – a maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na história do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas essas práticas regulares, é claro, mas também modificadas sem cessar através da história – me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos
de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas.
Eis aí a visão geral do tema que pretendo desenvolver: as formas jurídicas e, por conseguinte, sua evolução no campo do direito penal como lugar de origem de um determinado número de formas de verdade. Tentarei mostrar-lhes como certas formas de verdade podem ser definidas a partir da prática penal. Pois o que chamamos de inquérito (enquête) – inquérito tal como é e como foi praticado pelos filósofos de século XV ao século XVIII, e também por cientistas, fossem eles geógrafos, botânicos, zoólogos, economistas – é uma forma bem característica da verdade em nossas sociedades (idem, p. 11-12).
Conhecimento e verdade
São analisados alguns textos de Nietzsche, retirados de Gaia Ciência e de A Genealogia da Moral, para provar a tese que o conhecimento foi inventado pelos homens, que existem relações de poder até na história da verdade. E invenção difere de origem. Assim, a religião, a história, a poesia, o ideal e o próprio conhecimento não teriam origens metafísicas anteriores aos homens, mas teriam sido inventados por eles. Sendo o conhecimento inventado por obscuras relações de poder, não faz parte da natureza humana, não é instintivo, mas o resultado do confronto entre dois instintos, “uma centelha entre duas espadas, mas não do mesmo ferro que as duas espadas” (idem, p. 17).
Michel Foucault, em sua análise sobre verdade e conhecimento, parte do princípio de que não há uma relação necessária entre o conhecimento e as coisas a conhecer, ou seja, o que se sabe a respeito de algo não é próprio de sua essência. O conhecimento não faz parte da natureza humana e, então, não é algo que diz respeito à essência do homem; o conhecimento é algo inventado. Assim, “o conhecimento não é instintivo, é contra-instintivo, assim como ele não é natural, é contra-natural” (idem, p. 17). Logo, temos “uma natureza humana, um mundo, e algo entre os dois que se chama conhecimento, não havendo entre eles nenhuma afinidade, semelhança ou mesmo elos de natureza” (idem, p. 18).
Nietzsche contradiz Spinoza afirmando que para compreender as coisas em sua natureza, em sua essência e portanto em sua verdade, é preciso rir delas, deplorá-las e detestá-las. Estes três impulsos – rir, deplorar e detestar – são modos de afastar o objeto de si e na constante luta entre eles é que se produz o conhecimento. Portanto, a relação do conhecimento com o objeto é de distância e dominação.
Por não fazer parte da natureza humana, o próprio conhecimento também não pressupõe uma relação de afinidade ou semelhança com as coisas; ao contrário, o conhecimento exprime relações de poder e dominação, as quais desmistificam a idéia de algo unificado. Por essa razão, Foucault ironicamente afirma que, caso desejemos saber efetivamente o que é o conhecimento, devemos nos aproximar dos políticos, e não dos filósofos, haja vista que a política pressupõe entrechoques de poder e é a partir da política que se constrói o direito.
O conhecimento não é uma faculdade nem uma estrutura universal, apenas o resultado, o acontecimento, o efeito de natureza e caráter perspectivo e parcial em relação estratégica à certa situação do homem. É ao mesmo tempo generalizante e particular, esquematizante, ignora diferenças e assimila coisas entre si, sem preocupar-se com a verdade. O conhecimento é sempre um desconhecimento da história.
Alguns esboços desta história a partir das práticas judiciárias de onde nasceram os modelos de verdade que circulam ainda em nossa sociedade, se impõe ainda a ela e valem não somente no domínio da política, no domínio do comportamento quotidiano, mas até na ordem da ciência. Até na ciência encontramos modelos de verdade cuja formação releva das estruturas políticas que não se impõem do exterior ao sujeito de conhecimento mas que são, elas próprias, constitutivas do sujeito de conhecimento (idem, p. 27).

Conferência 2
Revela o surgimento distinto da prova e do testemunho na antiguidade grega através da análise da história de Édipo de Sófocles, como episódio da história do saber e ponto de emergência do testemunho e do inquérito.
Existiam dois tipos de regulamento judiciário, de litígio, de contestação ou de disputa presentes na civilização grega. A primeira forma, bastante arcaica, é encontrada em Homero. Dois guerreiros se afrontavam para saber quem estava errado e quem estava certo, quem havia violado o direito do outro. A tarefa de resolver esta questão cabia a uma disputa regulamentada, um desafio entre os dois guerreiros. Um procedimento sem juiz, sentença, verdade, inquérito nem testemunho para saber quem disse a verdade. Confia-se à luta, ao desafio, ao risco que cada um vai correr o encargo de decidir não quem disse a verdade, mas quem tem razão. Na Ilíada aparece a contestação entre Antíloco e Menelau durante os jogos que se realizaram na ocasião da morte de Pátroclo. Apesar de haver um observador, uma testemunha, para verificar as irregularidades da corrida, na contestação entre os adversários sobre quem receberia o prêmio, é levantado um desafio, uma prova. A prova é a característica da sociedade grega arcaica.
A segunda forma é a que se desenrola ao longo de Édipo-Rei. Para resolver um problema que é também, em um certo sentido, um problema de contestação, um litígio criminal – quem matou o rei Laio – aparece um personagem novo em relação ao velho procedimento de Homero: a testemunha. Édipo-Rei é uma espécie de resumo da história do direito grego, que apresenta a síntese de uma das grandes conquistas da democracia grega: a história do processo através do qual o povo se apoderou do direito de julgar, do direito de dizer a verdade, de opor a verdade aos seus próprios senhores, de julgar aqueles que os governam.
A tragédia de Édipo é o primeiro testemunho das práticas judiciárias gregas. É a história em que pessoas – um soberano, um povo – ignorando uma certa verdade, conseguem, por uma série de técnicas, descobrir uma verdade que coloca em questão a própria soberania do soberano. A história de Édipo é a história de um procedimento de pesquisa da verdade que
obedece exatamente às práticas judiciárias gregas da época e se divide em três partes, três jogos de metades, que revelam o ciclo das relações de poder.
O primeiro jogo de metades que se ajustam é o do rei Apolo e do divino adivinho Tirésias – o nível da profecia ou dos deuses. Em seguida, a segunda série de metades que se ajustam é formada por Édipo e Jocasta. Seus dois testemunhos se encontram no meio da peça. É o nível dos reis, dos soberanos. Finalmente, a última dupla de testemunhos que intervém, a última metade que vem completar a história não é constituída nem pelos deuses nem pelos reis, mas pelos servidores e escravos. O mais humilde escravo de Políbio e principalmente o mais escondido dos pastores da floresta do Citerão vão enunciar a verdade última e trazer o último testemunho (idem, p. 38-39).
Como resultado final confirma-se em forma de testemunho dos dois pastores o que fora dito em termos de profecia no começo da peça. Assim como a peça passa dos deuses aos escravos, os mecanismos de enunciado da verdade mudam da profecia (o olhar dos deuses para o futuro e o passado) para o testemunho (o olhar dos homens sobre o que viram). A peça desloca a enunciação da verdade do discurso profético e prescritivo ao discurso de ordem retrospectiva, de testemunho.
O ponto central da trama é a queda do poder de Édipo: o desconhecimento de certas verdades faz com que Édipo torne-se rei, e a busca pela verdade traz a perda da soberania. Conseqüentemente, o ocidente acaba sendo influenciado pelo mito de que a verdade nunca pertence ao poder político, que este é cego, ou como Platão defende mais tarde, que há uma antinomia entre o poder e o saber. Nietzsche procura demolir este mito mostrando que por trás de todo saber e conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. Assim, o poder político não está ausente do saber, mas é tramado com o saber.

Conferência 3
Trata da relação que se estabeleceu na Idade Média, do conflito, da oposição entre o regime da prova (épreuve) e o sistema de inquérito.
Édipo-Rei mostra a conquista na democracia grega do direito de testemunhar, de opor a verdade ao poder. Este direito de opor uma verdade sem poder a um poder sem verdade deu lugar a uma série de grandes formas culturais características da sociedade grega. Contudo, o inquérito, que surge na Grécia antiga, permanece esquecido até a Idade Média.
Foucault realiza uma análise sobre a constituição do direito. Basicamente, traz um resgate das formas jurídicas que emergiram ao longo da história, realizando uma reconstituição de como o direito foi passando da idéia de justiça privada para a de justiça pública. “Deve-se dizer, inicialmente, que o direito brasileiro recebe influência direta do direito romano-germânico, o mesmo que influenciou o ordenamento jurídico da França, país de Foucault. Portanto, a análise sociológica que este autor realiza, pode-se dizer, é diretamente
aplicável ao nosso ordenamento, o que acentua a relevância do tema do direito para os estudos de sociólogos brasileiros” (ASENSI, 2007). Vejamos uma premissa de Foucault:
O Direito Germânico não opõe dessa luta a guerra à justiça, não identifica justiça e paz. Mas, ao contrário, supõe que o direito não seja diferente de uma forma singular e regulamentada de conduzir uma guerra entre os indivíduos e de encadear os atos de vingança. O direito é, pois, uma maneira regulamentada de fazer a guerra (FOUCAULT, 1999, p. 56-57).
Desta forma, o direito é essencialmente o espaço do conflito, que se desenrola de forma institucionalizada e mediante alguns procedimentos comuns às partes em litígio. Segundo Foucault, “Entrar no domínio do direito significa matar o assassino, mas matá-lo segundo certas regras, certas formas” (idem, p. 57). Temos, então, o direito como a manifestação institucionalizada da guerra; entretanto não se trata de uma guerra que produz danos físicos a outrem, mas sim uma guerra de procedimentos, de argumentos, de fatos, de direitos.
Na guerra o vencedor é nitidamente visível, pois é aquele que sobrevive à luta. No direito não há como determinar o vencedor a partir das duas partes, pois estamos no embate de duas verdades. Então, faz-se mister uma terceira pessoa, alheia à controvérsia, que servirá como mediadora e, em seguida, proferirá um veredicto sobre o qual verdade prevaleceu. Observe que não se trata de determinar qual verdade é efetivamente verdadeira, mas sim de determinar qual verdade efetivamente prevalece.
No direito feudal o litígio entre dois indivíduos era regulamentado pelo sistema da prova (épreuve). Era uma maneira de provar não a verdade, mas a força, o peso a importância de quem dizia. Assim, nas provas sociais levavam-se doze testemunhas para jurar a favor do caráter do acusado ao invés da observância de sua conduta. Nas provas verbais o acusado deveria pronunciar fórmulas gramaticais e dependendo de suas habilidades oratórias, era absolvido ou não. Neste jogo verbal, os menores, as mulheres e os padres podiam ser substituídos por outra pessoa com mais hábil na oratória. Tal representante oral veio a tornar-se na história do direito o advogado. Nas provas mágico-religiosas havia o juramento. Nas provas corporais, físicas, chamadas ordálios, a pessoa submetia-se a provas e estas estabeleciam o resultado do processo. No sistema da prova judiciária feudal trata-se não da pesquisa da verdade, mas estabelecer que o mais forte é quem tem razão.
Na Idade Média, surge algo como um poder judiciário. Como a circulação de bens se dava através da guerra, da herança e das decisões judiciárias, os detentores do poder (guerra e herança) quiseram comandar as decisões judiciárias também ao seu favor. “O direito de ordenar e controlar essa contestação judiciária, por ser um meio de acumular riquezas, foi confiscado pelos mais ricos e mais poderosos” (idem, p. 65).
Aparece, assim, uma justiça não diretamente entre indivíduos particulares, mas a cargo de um poder superior, judiciário e político, responsável por regular os litígios. Aparece também a figura do procurador, representante do soberano, do poder externo lesado pelo dano, e que substituirá a vítima como parte ofendida. A noção de crime e dano será
substituída pela de infração. “A infração não é um dano cometido por um indivíduo contra outro; é uma ofensa ou lesão de um indivíduo à ordem, ao Estado, à lei, à sociedade, à soberania, ao soberano” (idem, p. 66). O soberano (em sentido amplo entendido também como o Estado) é não somente a parte lesada, mas a que exige reparação (multas e confiscos de bens).
Nota-se que a partir da possibilidade de um terceiro resolver a contenda entre as partes, e a partir da possibilidade do crime lesar o soberano, ocorre uma mudança na concepção de justiça. De uma justiça privada a qual não pressupunha um poder exterior, temos uma justiça pública que é realizada pelo terceiro alheio ao litígio e que detém a legitimidade para tal.
Essa transição do privado para o público se dá principalmente através da apropriação pelo soberano dos procedimentos e mecanismos de resolução de conflitos. A publicização do direito, portanto, se dá na medida em que ocorre a concentração da produção do direito nas mãos do soberano. E o agente que permite essa publicização é o procurador, que se encarregava de levar o direito às partes através de visitas periódicas, servindo como a extensão capilar do poder soberano. O principal procedimento adotado pelo procurador era o inquérito, que já vinha sendo utilizado no âmbito administrativo e religioso.
O inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício de poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir. O inquérito é uma forma de saber-poder. É a análise dessas formas que nos deve conduzir à análise mais estrita das relações entre os conflitos de conhecimento e determinações econômico-políticas (idem, p. 78)
Enquanto a prova tende a desaparecer, o inquérito segue o caminho oposto. O inquérito não é absolutamente um conteúdo, mas a forma de saber. É a partir do inquérito que se torna possível o embate de verdades institucionalizado, procedimentalizado e regulamentado. Neste sentido, a conclusão do inquérito funciona como uma forma de dizer qual a verdade prevaleceu naquele litígio e diante daquelas circunstâncias, produzindo um saber-poder. É saber porque é fruto do embate de verdades; é poder porque impõe qual das verdades deve prevalecer de forma coercitiva. O direito, assim, é permeado por relações de poder que buscam através do embate de verdades, uma solução comum designada por um terceiro. Daí resulta a importância do discurso e da hermenêutica como formas de persuasão.
Conferência 4
Demonstração das formas de práticas penais que caracterizam a sociedade disciplinar (contemporânea). As relações de poder subjacentes a essas práticas penais.
No final do século XVIII e início do século XIX há uma reorganização do sistema judiciário e penal em diversos países da Europa e do mundo. Na Inglaterra ocorrem profundas mudanças no conteúdo das leis e no conjunto de condutas penalmente repreensíveis sem que
as formas e instituições judiciárias se modificassem profundamente. Na França ocorre o contrário, modificam-se as instituições sem alterar-se a lei penal.
Um dos fatores primordiais de tais mudanças é a reelaboração teórica da lei penal por Beccaria, Bentham, Brissot e outros, que passam a considerar que “a infração não deve ter mais nenhuma relação com a falta moral ou religiosa. A falta é um a infração à lei natural, à lei religiosa, à lei moral. O crime ou a infração penal é a ruptura com a lei, lei civil explicitamente estabelecida no interior de uma sociedade pelo lado legislativo do poder político” (idem, p. 80).
Um segundo princípio é que estas leis positivas formuladas pelo poder político no interior de uma sociedade, para serem boas leis, não devem retranscrever em termos positivos a lei natural, a lei religiosa ou a lei moral. Um lei penal deve simplesmente representar o que é útil para a sociedade. A lei define como repreensível o que é nocivo à sociedade, definindo assim negativamente o que é útil (idem, p. 81).
O criminoso passa a ser o inimigo social, aquele que danifica e perturba a sociedade. Rousseau afirma que o criminoso é aquele que rompeu o pacto social. Como o crime é uma perturbação para a sociedade a punição não pode mais prescrever uma vingança (noção de redenção ao pecado) mas fazer com que o dano causado à sociedade seja apagado ou impedido de ser repetido.
Os teóricos estabelecem quatro tipos de punição: a deportação, a humilhação pública, o trabalho forçado e a pena de talião, pagar o mal praticado com o mesmo mal. Contudo, o sistema de punição adotado não foi nenhum destes. A prisão ou o aprisionamento surge sem justificação teórica. Surgem instituições de vigilância e correção paralelas ao poder judiciário: polícia, instituições psicológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas, pedagógicas para a correção, em um modelo “ortopédico” que Foucault chama de panoptismo em homenagem a Bertham. No panoptismo “não há mais inquérito, mas vigilância, exame. [...] Um saber que tem agora por característica não mais determinar se alguma coisa se passou ou não, mas determinar se um indivíduo se conduz ou não como deve, conforme ou não à regra, se progride ou não, etc.” (idem, p. 88).
Estes mecanismos de controle surgiram obscuramente na Inglaterra e na França. Na Inglaterra apareceram comunidades religiosas que prestavam a dupla tarefa de vigilância e de assistência, e paralelamente instituíram uma forma de controle das camadas mais ricas sobre as mais pobres. Outras instituíam regras de conduta moral com o objetivo de reformar as maneiras religiosamente inaceitáveis. Por fim, as sociedades econômicas começaram a organizar uma polícia privada para proteger seu patrimônio contra o banditismo. Na França, as lettres-de-cachet era uma ordem do rei para obrigar alguém a fazer alguma coisa. Qualquer pessoa ou comunidade poderia solicitar uma lettre-de-chachet contra quem as estivesse perturbando.
A prisão, que vai se tornar a grande punição do século XIX, tem sua origem precisamente nesta prática para-judiciária da lettre-de-cachet, utilização do poder real pelo controle espontâneo dos
grupos. Quando uma lettre-de-cachet era enviada contra alguém, esse alguém não era enforcado, nem marcado, nem tinha de pagar uma multa. Era colocado na prisão e nela devia permanecer por um tempo não fixado previamente (idem, p. 98).
Os novos sistemas de controle social estabelecidos pelo poder, pela classe industrial, pela classe dos proprietários foram tomados dos controles populares com uma versão autoritária e estatal. Surgiram devido a uma nova distribuição espacial e social da riqueza industrial e agrícola que tornou necessários novos controles sociais no fim do século XVIII.
Conferência 5
Nascimento das ciências de exame que estão em relação com a formação e estabilização da sociedade capitalista. Inclui a Mesa Redonda entre alguns participantes e o autor que se seguiam ao final de cada conferência.
A teoria penal de Beccaria, legalista, social, se opõe inteiramente ao panoptismo. “No panoptismo a vigilância sobre os indivíduos se exerce ao nível não do que se faz, mas do que se é; não do que se faz, mas do que se pode fazer “ (idem, p. 101). Poderia se dizer que a reclusão do século XIX é uma combinação de controle moral e social, nascido na Inglaterra, com a instituição propriamente francesa e estatal da reclusão em um local, em um edifício, em uma instituição, em uma arquitetura. Na época atual, todas as instituições – fábrica, escola, hospital psiquiátrico, hospital, prisão – tem por finalidade não excluir, mas fixar o indivíduo. Fixá-los ao aparelho de produção, de transmissão do saber, de correção e de normalização dos indivíduos. São formas de controle que se encarregam da dimensão temporal da vida dos indivíduos.
Durante o século XIX, novas formas de controle passaram a vigorar, além da força de trabalho através de baixos salários frente à cargas horárias elevadas: o controle de como gastar o tempo livre e as economias do operário. Assim surgiram as caixas econômicas, as caixas de assistênciais, a previdência social. Controlando o tempo, as economias, a vida dos indivíduos, controla-se também o seu saber. O sistema capitalista penetra profundamente em nossa existência, com um conjunto de técnicas políticas e de poder pelo qual o homem encontra-se ligado ao trabalho. “A ligação do homem ao trabalho é sintética, política; é uma ligação operada pelo poder. Não há sobre-lucro sem sub-poder” (idem, p. 125).

Bibliografia
ASENSI, Felipe Dutra. O rosto que se desvanece na areia da praia: homem, conhecimento e direito em Michel Foucault. Revista Urutágua nº 09. Retirado de .
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003.

segunda-feira, 21 de março de 2011

INVESTIGAÇÃO DE CRIMES ANTIGOS

Mais de três mil homicídios não solucionados há mais de dois anos, em Curitiba, serão investigados a partir de hoje, por um grupo especial que ganhou o sugestivo nome de Honre (Homicídios Não Resolvidos).

O novo setor será instalado inicialmente na Delegacia de Homicídios, na capital, e contará com duas equipes chefiadas pelo delegado Rubens Recalcatti. O projeto-piloto será aplicado na capital, mas a direção da Polícia Civil já admitiu a possibilidade de levá-lo para outros municípios.

A nova investida da polícia pretende dar respostas às famílias de vítimas, que, muitas vezes, vão cobrar pessoalmente na delegacia a continuidade das investigações.

O anúncio da criação do Honre foi feito na manhã de ontem, com a presença do delegado-chefe da Divisão de Investigações Criminais (DIC), Luís Fernando Viana Artigas Filho, e a equipe da Homicídios que assumiu a especializada em janeiro: a delegada titular Maritza Haisi e os cinco delegados operacionais: Cristiano Augusto Quintas dos Santos, Maurílio Alves, Jaime da Luz, Aline Manzatto e Rubens Recalcatti, este terá bastante trabalho nos próximos dias.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Análise acerca de O Crime das Irmãs Papin de Jacques Lacan - por Yuri Campagnaro

Jacques Lacan, autor que revolucionou o estudo da psicanálise, analisa, no texto em questão, do ponto de vista desses estudos, crime peculiar que ocorreu em sua época. O crime, dotado de características terríveis e intrigantes foi de autoria de duas irmãs, de 28 e 21 anos, que foram durante anos criadas de uma família burguesa, com a qual, estranhamente, não dialogavam, não trocavam palavra alguma, numa relação de silêncio absoluto e “obscuro”.

Certa noite, após banal corte de eletricidade e consequente reclamação das patroas (mãe e filha), as irmãs, num ato de furor, “...cada uma se apoderou de uma adversária, arrancou-lhe em vida os olhos das órbitas, fato espantoso, disseram nos anais do crime, e os destroçou. Depois, com a ajuda do que encontraram ao seu alcance, martelo, pichel de estanho, faca de cozinha, atacaram os corpos de suas vítimas, destruíram-lhes o rosto e, expondo seu sexo, talharam profundamente as coxas e nádegas de uma, para macular com esse sangue as da outra. Em seguida, lavaram os instrumentos desses ritos atrozes, purificaram-se e se deitaram na mesma cama.”.

Agiram com comportamento inusitado também durante o processo, quando não demonstraram qualquer motivo de raiva contra as vítimas, tendo apenas como preocupação partilharem a responsabilidade do crime. Após cinco meses afastadas uma da outra, Christine (uma das irmãs), apresentou violenta crise, com alucinações, em que tenta sem sucesso arrancar seus próprios olhos. Após, ambas foram condenadas à morte.

Seguiram-se intensos debates na tentativa de compreender o crime ocorrido por parte de psicólogos e cientistas. Lacan sugere uma teoria autônoma para solucionar o mistério, partindo de uma análise psicanalítica.

Segundo ele, a pulsão agressiva pode ser considerada inconsciente, “o que significa que o conteúdo intencional que a traduz na consciência não pode se manifestar sem um compromisso com as exigências sociais integradas pelo sujeito, isto é, sem uma camuflagem de motivos que é precisamente todo o delírio”. Ou seja, as explicações conscientes, que parecem muitas vezes sem nexo lógico, são manifestações, exigidas socialmente, do desejo inconsciente – manifestações que não tem linearidade, que se sucedem, repetem-se, como significantes, sintoma, afinal, “o inconsciente se estrutura como linguagem”.

Mas essa pulsão é dotada de relatividade social, sempre tem a intencionalidade de um crime, quase sempre de uma vingança, frequentemente de uma punição, uma expiação moralista proveniente de ideais sociais.

É dessa forma que o conteúdo intelectual do delírio parece uma superestrutura ao mesmo tempo justificadora e negativa da pulsão criminal. O delírio varia, dissipando-se com a realização dos fins do ato, e tais variações são, para Lacan, essenciais. Os temas delirantes expressos por Christine na prisão são sintomas típicos do delírio, da mesma forma que o desconhecimento sistemático da realidade, tomado efeito na ambivalência de toda crença delirante.

A forma da psicose das irmãs é estreitamente correlata, senão idêntica. Para Lacan, Freud dá a chave dessa compreensão. Segundo este, em seus estudos sobre a sexualidade infantil, ocorre, em certa época, redução forçada da hostilidade primitiva entre os irmãos, mas pode aí haver uma inversão anormal, em que hostilidade se converte em desejo, causando uma “fixação amorosa”. “Essa integração se faz, no entanto, segundo a lei da mínima resistência, por uma fixação afetiva ainda muito próxima do eu (moi) solipsista, fixação que merece ser chamada de narcísica e na qual o objeto escolhido é o mais parecido com o sujeito: esta é a razão de seu caráter homossexual”.

A ambivalência afetiva em relação à irmã mais velha dirige o comportamento autopunitivo da irmã mais nova: cada uma delas, prisioneira do narcisismo, se torna nova imagem dessa Irmã que nossa doente transformou em seu ideal. Tornam-se “almas siamesas”. Segundo Lacan, “na noite fatídica, sob a ansiedade de uma punição iminente, as irmãs misturam à imagem de suas patroas a miragem de seu mal”.

Do ponto de vista criminal, não restam dúvidas de que as irmãs são as autoras, confessas, do crime. O que torna tão intrigante o caso é que elas não fazem questão de se eximir da culpa, pelo contrário, assumem-na conjuntamente. A questão é se a punição a elas deve ser realizada sem discriminações, de maneira severa, levando em conta a crueldade do crime; ou se elas merecem ser tratadas, como vítimas de problemas psicológicos, do ponto de vista da saúde mental.

Como o próprio Jacques Lacan coloca, “Mas, observamos, utilizando-nos daqueles a quem assusta a via psicológica à qual engajamos o estudo da responsabilidade, que o adágio ‘compreender é perdoar’ está submetido aos limites de cada comunidade humana e que, fora desses limites, compreender (ou acreditar compreender) é condenar”.

O que se entende de toda a análise do caso em questão é que por mais hediondo que tenha sido o crime, o estado de saúde mental das autoras é evidentemente um estado de doença, em que são acometidas por aflições psíquicas. Não se deve analisar o fenômeno social e psicológico do crime como um julgamento entre o bem e o mal, uma luta maniqueísta cristã, cruzada moralista, ou coisa do gênero.

Dizem as teorias burguesas mais avançadas sobre o Estado que o crime tem razões mais complexas, e sua sanção é realizada pelo Estado, que não deve perseguir os anseios de particulares, mas preservar a ordem social e comum de todos, de maneira neutra e impessoal, e isso é alcançar a justiça. A função da pena, ao menos em teoria, no plano do dever-ser, é de ressocialização do condenado, de melhoramento do tecido social. Dessa forma, questiona-se que tipo de bem à sociedade e que tipo de justiça seria vindo do encarceramento ou pena de morte das autoras.

Entretanto, esse discurso apenas oculta a real causa de crimes extremos. A própria psicanálise ensina que elementos que parecem estar fora do sistema (no caso o social), que contradizem o todo e a unidade desse sistema, não são elementos externos, patológicos, mas parte integrante desse todo, manifestação do seu Real mais íntimo, são seus sintomas.

Crimes de tamanha crueldade e de difícil explicação são excessos de uma mesma realidade, que cria crimes mais brandos na sociedade, que provoca exploração, miséria e violência institucionalizada e internalizada enquanto saberes inconscientes na forma de ideologia.

Como coloca Slavoj Zizek, assim como a sociedade de consumo capitalista produziu um excesso que fugiu do seu controle, o fascismo, e necessitou da ajuda de seu oposto, o socialismo soviético, para dar cabo a esse extremo; nossa sociedade do fim da história, modelo, democrática, produz um excesso demasiado terrível, que lhe foge do controle, a criminalidade1, a qual para ser combatida, necessita da união com o lado mais terrível, oposto, da realidade democrática liberal, o sistema prisional absurdo e a polícia exterminadora – ambos pairam muito longe das garantias democráticas mínimas incluídas mesmo em legislação.

Mas o problema do crime está longe de ser resolvido, pois não pode ser tratado como elemento patológico, estranho, ao “desenvolvimento” do restante da sociedade (que segue como uma locomotiva que anda por sobre trilhos derretidos rumo ao abismo interminável) – a totalidade das relações explicita que o culpado flagrante pela realidade produtora de irmãs que cometem crimes brutais contra suas patroas, pedofilia, crimes contra mulheres (como a do recente caso do goleiro Bruno), etc. é a própria realidade.

O dever-ser dos manuais, que cinicamente colocam as metas de ressocialização em um Estado “neutro”, “impessoal”, como dito antes, fetichiza o problema, ocultando-o pro trás de pseudossolucões de caráter burocrático e técnico, elucubrando acerca de mil meias soluções que visam justamente fazer o que está sendo feito: recalcar os sintomáticos excessos de si mesmo, sem psicanalista, sem anestesia.

Esse fukuyamismo presente de maneira tão forte no “pensamento” jurídico deve ser combatido radicalmente, e, como dito por célebre filósofo alemão, ser radical é agarrar as coisas pela raiz, e a raiz para o homem é o próprio homem. Simplesmente, para acabar com o problema, deve-se acabar com o problema, e não preservar sua essência e causa ao tolher os repetitivos sintomas horríveis, que representam não mais que a própria totalidade das relações – a face oculta que os fukuyamistas (alguns de “esquerda”) preferem não ver.

O caso das irmãs Papin leva o debate sobre a consciência humana e sobre as causas obscuras de crimes estranhos e aparentemente injustificáveis, em que as causas são ocultadas pela vileza do ato praticado, de fato horrendo.

Compreender aqui significa muito mais que perdoar ou condenar as irmãs assassinas, tão culpadas quanto vítimas do crime de sangue que cometeram. Significa, inescapavelmente, agir. E esse agir, simplesmente, significa socialmente.

A igualdade formal assegura a existência de seu oposto perversor de sua unidade lógica, a desigualdade material – essa situação, aliada com outros excessos produz a necessidade do crime para sobrevivência, tanto material quanto psicológica.

REVISITANDO O CASO DAS IRMÃS PAPIN - por Francisco Ronald Capoulade Nogueira

O crime das irmãs Papin ocorreu no dia 2 de fevereiro de 1933, na cidade de Le Mans. Antes
de adentrarmos na análise dos textos de Lacan e Le Guillant sobre esse assunto, proponho
uma breve exposição do crime. Exposição essa que se fará a partir de uma compilação de
várias versões deste mesmo crime, dentre as quais privilegiei os elementos em comum. Entre
elas estão os artigos que analisaremos, fragmentos dos documentos policiais que retrataram o
crime junto com os depoimentos das irmãs, obras literárias e cinematográficas.
Era inicio de uma noite de inverno e estavam em casa apenas as empregadas. O Sr.
Lancelin, sua esposa e sua filha haviam saído. Após um pequeno incidente doméstico com o
ferro de passar roupas que resultou em um curto-circuito e deixou a casa dos Lancelin às
escuras, Léa e Christine ficaram apreensivas com qual poderia ser a reação de suas patroas e
se trancaram no quarto. Ao ouvirem suas patroas chegarem e chamarem seus nomes
incansavelmente, Christine resolver descer e explicar o ocorrido e, em seguida, desceu Léa.
Ao constatarem que a casa estava sem energia elétrica a Sra. e Srta. Lancelin exigiram
explicações a Léa, já que o fato ocorreu enquanto ela usava o ferro de passar e também por ser
reincidente em “desleixos” domésticos. Daí por diante, ao que tudo indica, iniciou-se uma
discussão ríspida e de ânimos alterados que chegou ao nível extremo de violência.
Christine relata aos policiais em seu depoimento que quando suas patroas voltaram
para casa e perceberam o breu que ali estava, ficaram furiosas, já que tal incidente havia
ocorrido outras vezes. Christine afirma que a Sra. Lancelin
(...) disse-lhe que o ferro estava estragado, de novo, e que eu não tinha conseguido
passar a roupa. Ao falar assim, ela quis atirar-se contra mim (...) Ao verificar que a
Sra. Lancelin vinha em cima de mim, agarrei-lhe seu rosto e arranquei-lhe os olhos
com os dedos. Quando digo que avancei para cima da Sra. Lancelin, estou equivocada
porque a pessoa que agarrei foi a Srta. Geneviève a quem arranquei os olhos (...)
Entrementes, minha irmã Léa avançou para cima da Sra. Lancelin e, igualmente,
arrancou-lhe os olhos (LE GUILLANT, 1963/2006, p. 288).
Iniciada as agressões das Papin o desfecho foi um tanto mais cruel. Depois de terem
arrancado os olhos de suas patroas, ainda vivas, e de as terem espancando até a morte, elas
continuaram o massacre com objetos cortantes. Usaram martelos, facas e também uma vasilha
de estanho. Dilaceraram suas nádegas, suas coxas, seus rostos e deixaram à mostra os sexos
de suas patroas e, por fim, esquartejaram-nas. A violência de seus golpes era de tamanha força
que as paredes da sala estavam cobertas de sangue até uma altura aproximada de mais dois
metros.
Ao fim e ao cabo de tudo isso, elas se limparam, e também limparam os objetos
usados dizendo uma para outra “agora tudo está limpo”. Deitaram-se nuas no quarto delas e lá
ficaram a espera da polícia e do Sr. Lancelin.
Esse crime insólito e brutal causou tanto impacto na opinião pública francesa da época
que sua repercussão pôde ser vista muito além dos meios midiáticos comum àquele período.
Diversos intelectuais e artistas daquela época e de épocas posteriores, inspirados por essa
história, produziram artigos e obras artísticas no afã de compreender o que poderia ter
motivado tal crime. Entre eles estão Jean Genet, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir,
Benjamin Peret, Jean-Pierre Denis, Niko Papatakis, Louis Le Guillant e o jovem Jacques
Lacan.
Os principais ingredientes em questão eram a brutalidade do crime, o incesto, a
homossexualidade feminina e o conflito de classes.
Em seu artigo Motivos do Crime Paranoico: O Crime das Irmãs Papin, publicado na
revista Minotaure, em dezembro daquele mesmo ano, Lacan inicia seu texto fazendo
referência à repercussão que o horrendo crime cometido pelas assassinas Léa e Christine
Papin tomou na opinião pública.
Primeiramente, Lacan chama a atenção para o fato de que entre as Papin, que eram
criadas-modelo ao mesmo tempo que criadas-mistério, e suas patroas havia uma ausência de
comunicação. Ou seja, entre os dois grupos (patrões e empregadas) havia um silêncio, mas
não era um silêncio vazio, ainda que fosse turvo aos atores em questão. Segundo Lacan, a
materialização desse pavoroso silêncio se dá de maneira súbita e simultânea classificado por
ele como uma “verdadeira orgia sangrenta”. O que Lacan apresenta nesse inicio é uma análise
superficial do caso; superficial no sentido de que está à superfície, daquilo que pode ser visto
primeiro, aquilo que foi privilegiados pela análise de outros intelectuais.
No entanto, essa não é a tônica de sua análise. Instigado pelas considerações do Dr.
Logre, Lacan viu nesse crime indícios de uma anomalia mental das irmãs. A partir de um
pressuposto da psiquiatria vigente que se pautava, grosso modo, em três traços clássicos para
o reconhecimento da paranoia, a saber, delírio intelectual com ideias de grandeza variadas
indo até ideias persecutórias; reações agressivas podendo chegar a homicídios e; uma
evolução crônica, Lacan procurou identificar “a influência das relações sociais incidentes em
cada uma destas três ordens de fenômenos”, admitindo assim uma noção dinâmica das
tensões sociais para explicar os fatos da psicose.
Mas o que Lacan quer dizer com o termo tensões sociais? Teria esse termo o mesmo
significado daquilo que os intelectuais e artistas franceses influenciados pelo marxismo
chamaram de conflitos de classe? Provavelmente, não.
Essa foi a critica feita por Le Guillant ao texto de Lacan. Segundo ele, em seu artigo
publicado na revista Les Temps Modernes, em novembro de 1963, “a condição doméstica
contém um poder patogênico”. O fato de Christine e Léa serem empregadas domésticas e, por
isso, viverem em condições desiguais as de suas patroas torna a questão das relações de
trabalho central em sua análise psicopatológica. Nesse artigo, ele afirma, parafraseando
Simone de Beauvoir, que “é unicamente a violência do crime cometido que nos leva a avaliar
a atrocidade do crime invisível, cujas vítimas são as empregadas domésticas” (LE
GUILLANT, 1963/2006, p. 325). Tal pensamento sintetizava a opinião de muitos intelectuais
acerca do caso das irmãs Papin.
Sobre Lacan, Le Guillant diz, em uma nota de roda pé desse mesmo texto, o seguinte:
Em um brilhante artigo que acaba de chegar ao meu conhecimento – e que, se eu
pudesse, reproduziria integralmente –, Jacques Lacan associa o caso das Irmãs Papin à
psicose paranóica.(...) Por mais qualificada e enriquecedora que seja a sua análise, é
impossível deixar de observar que, praticamente, ela não comporta nenhuma alusão ao
fato de que Christine e Léa eram empregadas domésticas; (...) À semelhança de todos
os que tiveram conhecimento do caso das Irmãs Papin, Lacan não chega a vislumbrar
que sua condição de empregadas domésticas possa ter desempenhado um papel na
gênese desse crime (LE GUILLANT, 1963/2006, p. 322).
Contudo, as tensões sociais para as quais Lacan aponta são tensões muito primitivas,
relacionadas com os primeiros estádios da sexualidade infantil. Segundo ele, nesses estádios
se opera
a redução forçada da hostilidade primitiva entre irmãos, uma anormal inversão pode se
produzir desta hostilidade em desejo e que esse mecanismo engendra um tipo especial
de homossexuais entre os quais predominam os instintos e atividades sociais. De fato,
esse mecanismo é constante: esta fixação amorosa é a condição primordial da primeira
integração nas tendências instintivas do que nós chamamos as tensões sócias
(LACAN, 1933).
Essa sua análise era fruto, em grade parte, de sua leituras da obra de Freud que vinha
se desenvolvendo desde sua tese de doutorado defendida no ano anterior. Nessa perspectiva, o
que Lacan postulava era, grosso modo, uma análise da paranoia mais profunda na qual –
inspirado nos textos freudianos – privilegiava a dinâmica das tensões sociais, não apenas as
superficiais, mas aquelas que surgiam de uma investigação psicanalítica cuja máxima é: o
homem não é senhor em sua própria casa.

O CRIME DAS IRMÃS PAPIN: O TEMPO DO ESPELHO - por Zilda Fabris

De olho nos fatos:
1- As irmãs Christine e Léa Papin, uma de 28 e outra de 21 anos, trabalham como empregadas numa casa de família burguesa.
2- Em 2 de fevereiro de 1933, as irmãs matam a patroa e sua filha a sangue frio sem motivo aparente.
3- Em 30 de setembro de 1933, Christine e Léa Papin são condenadas pelo júri.
4- As irmãs são presas em celas separadas e Christine faz um surto psicótico. Surgem dúvidas quanto a responsabilidade do crime.
5- Doutor Logre, psiquiatra, testemunha no sentido da irresponsabilidade das irmãs Papin, adiantando várias hipóteses sobre a presumível anomalia mental de ambas.
6- Christine e Léa Papin não são executadas e cumprem a pena separadamente.
7- Christine morre na prisão e Léa ao ser solta vai trabalhar como camareira num hotel.

Objetivo: O texto se propõe a oferecer algumas considerações psicanalíticas sobre o motivo do crime paranóico cometido por Christine e Lea Papin no dia 2 de fevereiro de 1933. Um artigo foi publicado sobre este assunto em dezembro de 1933 pela revista Minotaure, incluído na edição de Da Psicose Paranóica em suas relações com a Personalidade (seguido de "Primeiros Escritos sobre a Paranóia") de Jacques Lacan. Minhas palavras, aqui, se organizam em torno de 4 pontos:

Apresentando as irmãs Papin;
As irmãs Papin no espelho;
O olho e um olhar;
Uma conclusão não-toda.

O fato jornalístico mostrou as imagens do crime, porém não conseguiu explicar o seu enigma, ou seja, o motivo pelo qual levou as duas assassinas, Christine e Léa Papin a passaram ao ato porque as palavras faltaram. O que poderia ter levado as irmãs a cometer este crime?

A imprensa, na época, divulgou que as duas irmãs trabalhavam como empregadas na casa burguesa, onde moravam mãe e filha. Eram consideradas empregadas-modelo e desenvolviam bem a arte culinária. No ato do julgamento, as irmãs nada alegaram como motivo para o crime e, até, disseram que gostavam das patroas.

Um detalhe sutil e não menos estranho parece oferecer uma pista do poderia ter ocorrido. A palavra não circulava entre as patroas, entre as irmãs e nem entre umas e outras. A entrada de um terceiro era impossível, transformando, assim, as relações num jogo dual e, consequentemente, mortal. Essa forma de mudez, longe de ser um vazio sem sentido, se transformou em um curto-circuito das palavras, materializando-se através de um simples curto-circuito elétrico. Dito de outra forma, o ato assassino foi em decorrência de um silêncio que questiona toda linguagem e subverte toda a autoridade. Ato, este, que não atinge as palavras mas que carrega um sentido que explode em violência.

Na noite do crime, as patroas, ao chegarem em casa, se dão conta da falta de luz e ficam muito aborrecidas com as irmãs. Mas o que elas teriam dito para ocasionar o ato assassino? Qual seria a palavra "mágica" que nunca poderia ter sido dita?

A cena foi aterradora. Uma irmã como mandante do ato assassino e a outra como diria o dito popular: "macaca de imitação", arrancam os olhos das vítimas ainda vivas e usando vários instrumentos cortantes, matam-nas como se estivessem preparando pedaços de carne para servir no jantar. A agressividade é correlata da identificação narcísica, ou seja, é própria do tempo especular. Já a violência é a ação da pulsão agressiva. No caso das paranóias essa pulsão agressiva é encontrada de modo muito intenso e não há mediação da lei. O ato desfaz a construção delirante. É uma descarga súbita para se afastar do desamparo diante do corpo morcelado. Há um tipo de apaziguamento no crime e isso é encontrado no caso das irmãs, quando depois do ato dizem: "Agora, está tudo limpo". Lavam as ferramentas sujas de sangue e se deitam na cama. Depois do ato , aí mesmo é que não há nada o que dizer.

AS IRMÃS PAPIN NO ESPELHO

Lacan diz que entrou na psicanálise " com uma vassourinha que se chamava o estádio do espelho". Mas o que é o estádio do espelho? Resume-se no processo pelo qual o bebê assume a imagem de seu corpo como sendo sua, ou seja, identificando-se com ela. "Eu sou essa imagem". As consequências desta frase revelam que o bebê fica capturado por essa imagem e, apesar de ficar preso nela por toda sua vida, isso é fundamental para a constituição do eu. Afinal, o eu não existe desde o nascimento. Ele é constituído num determinado tempo lógico, onde o bebê não se vê mais aos pedaços e sim como uma unidade. Na verdade, é uma construção, uma ilusão e até mesmo uma invenção necessária, pois o que realmente existe é o vazio deixado pela mãe, que é tamponado por algo. Longe de se tratar de um momento pacífico, este poderia ser descrito como o horror do jogo especular. O bebê ao se ver no espelho pensa que o eu é o outro semelhante e rivaliza com sua própria imagem. A descoberta de ser igual ao outro, seu semelhante, gera uma disputa acirrada, pois o mesmo objeto será desejado. Assim, nesta luta pelo objeto de desejo, alguém precisa morrer, pois neste lugar só há espaço para um e não para dois. É o que acontece entre as irmãs que tomam as patroas como rivais.

A paixão de Narciso por sua própria imagem, não reconhecida por ele mesmo, leva-o a morte ao tentar fundir-se à ela. Momento dual e mortal, onde a agressividade se manisfesta como sendo própria da constituição subjetiva para que o eu possa ser investido amorosamente. Talvez o amor seja o maior inferno pelo qual o humano terá que passar.

As irmãs Papin são como almas gêmeas. Uma espelha a outra, adiando o trágico desmantelamento desta sensível imagem especular. A palavra não entra como meio de fazer com que esta imagem se mantenha enquanto uma unidade.Houve a foraclusão de uma palavra, a qual, era encarregada de dar o sentido da cadeia das palavras. A foraclusão possui uma breve semelhança com o termo jurídico préclusão que significa a perda do direito por não exercer a defesa no tempo devido. Fazendo uma ponte entre direito e psicanálise, foraclusão diz respeito a um tempo lógico em que a palavra é expulsa, ou seja, nada se quer saber sobre seu sentido e uma vez rejeitada não tem mais o direito de voltar ao lugar de onde foi excluído. Penso que o ato criminoso na psicose acontece, como um retorno dessa palavra foracluída pela via do real devido ao sujeito não querer saber sobre o simbólico. Qualquer iminência de furo, aponta para o perigo da aparição do corpo morcelado. Partindo deste princípio, seria neste ponto frágil que as patroas teriam tocado, provocando a fúria das irmãs?

As patroas ameaçam separá-las devido a inabilidade de uma das irmãs, Léa, e isso transferiu o que deveria ter ficado como metáfora de ódio "eu lhe arrancarei os olhos", para a passagem ao ato de arrancar os olhos das vítimas. A perturbação com as palavras apareceu na ausência da metáfora. Aí, só resta uma saída que é pelo ato criminoso onde as irmãs tentam não se despersonalizar. Na prisão, as irmãs são separadas e Christine não aguenta que sua outra metade seja tirada de si, seu espelho através do qual poderia manter a ilusão de uma unidade, e surta. Para Christine a dor da separação é insuportável, levando-a à morte tempos depois. É como no mito de Aristófanes, onde existiria um tempo de completude em que os seres eram duplos.Estes começaram a se achar mais poderosos que o próprio Zeus. Assim, Zeus indignado com tal audácia separa os seres duplos e eles ficam tentando encontrar sua outra metade para voltar ao estado de completude. Esse mito revela um pouco sobre a questão dos crimes duplos cometidos geralmente por parentes próximos, pai e filho, mãe e filha, irmãos e irmãs. Esta loucura à dois se refere a este tempo de completude, onde a falta é faltosa, possibilitando, assim, essa união, onde o que um faz é imitado pelo outro pois um se reconhece no olhar do outro e vice-versa e mantem a ilusão da imagem. Partindo da ilusão da imagem por que Léa consegue se manter narcisicamente e Christine não?

O OLHO E UM OLHAR

Dos olhos vazados de Édipo ao olhar mortal da Medusa, é da castração que se trata. Édipo possuído pela loucura de saber quem ele era, tentando se apropriar de seu próprio destino, paga um preço que vai lhe "custar os olhos da cara", como diz o dito popular, pois já não era mais possível se ver e nem ser visto. Mas as irmãs não se situam neste mesmo tempo lógico em que Édipo se pergunta: Quem sou eu? Que queres de mim? O que é uma mãe? Elas não querem saber sobre isso. Apenas estão unidas no espelho e presas pelo olhar. Christine não aguenta ficar sem ver seu próprio reflexo no olhar de Léa. É aí, olho no olho, que uma sustenta a imagem da outra. Assim, elas se reconhecem como uma só. Para tal Léa empresta o seu olhar para a irmã Christine.

Arrancar os olhos das patroas me fez a seguinte questão: que tipo de olhar era o olhar dessa mãe para essas filhas? Talvez um olhar perseguidor, explorador, invasivo, que merecesse ser arrancado literalmente? Sobre isso nada é sabido. É apenas uma questão.

UMA CONCLUSÃO NÃO-TODA

Este trabalho teve a proposta de refletir sobre o crime cometido pelas irmãs Papin e questionar a terminologia da psiquiatria clássica que definiria as duas como psicopatas. Afinal, o que é um psicopata? Esta pergunta perde sua importância, na medida em que o estudo do caso, pelo viés da psicanálise, vai fazendo emergir aquilo que no âmbito das imagens não é passível de entendimento. A Psicanálise oferece um ensinamento não no sentido de mestria, e, sim, para mostrar como a vida possui um equilíbrio instável. Todo homem carrega seus demônios em sua alma e o que faz uns permanecerem nas palavras e outros recorrerem ao ato ainda constitui um enigma. Somente através da singularidade de cada caso é que se desvenda o mistério do crime estudado. Sendo assim, o tempo do crime e a escolha do objeto criminógeno possuem uma relação pré-estabelecida com o sujeito criminoso que executa literalmente o que deveria ficar em palavras. O insuportável da alternativa que se coloca no plano imaginário "ou ele ou eu" revela que é só a partir de um simbólico que poderia haver um espaço para caberem dois, para que isso pudesse ser articulado de outra forma e não ao pé da letra.

NOTAS E REFERÊCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. MILLER, J. Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1994, pag.16.



BIBLIOGRAFIA

1. LACAN, J. "O estádio do espelho como formador da função do eu." in Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1998.

2._______, "A agressividade em psicanálise." in Escritos, op. cit.

3._______, "Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia." in Escritos, op.cit.

O CRIME DAS IRMÁS PAPIN - por Mariana Anconi

Como no momento tenho lido muito a respeito do tema "Psicose" devido a elaboração da minha monografia, decidi compartilhar com vocês este caso estudado por Jacques Lacan na época em que fazia sua tese de doutorado.



As irmãs Papin e suas patroas


"Quinta-feira, 2 de fevereiro de 1933, na cidade de Le Mans, província de Sarthe. São cerca de vinte horas; a polícia municipal é chamada à residência de René Lancelin, que não havia conseguido entrar em sua casa, arromba a casa do antigo procurador e, no primeiro andar, encontra a Sra. Lancelin e sua filha assassinadas, com os corpos pavorosamente mutilados e os olhos arrancados das órbitas.
No segundo andar, refugiadas num canto da cama e agarradas uma à outra, as duas empregadas exemplares, Christine e Léa Papin, confessam sem dificuldade haver cometido o duplo assassinato de suas patroas - patroas irrepreensíveis, segundo suas palavras. Um simples incidente insignificante, a propósito um ferro de passar com defeito e de um fusível queimado, parecia haver desencadeado a carnificina sangrenta".
(Nasio - Os grandes casos da Psicose, 2001, p. 191)


Diante deste contexto, apresento-lhes um caso muito famoso e comentado na época, notícia na primeira página do jornal local La Sarthe.



Le Mans - France


As irmãs Papin eram as empregadas exemplares, que todo patrão gostaria de ter em sua residência. Dedicadas ao serviço, esforçadas ao máximo, para que não houvesse reclamação alguma das patroas. Raramente eram vistas na rua, não tinham amigos, namorado, ou mesmo vida social... "Que estranho!" - comentavam os cidadãos da cidade.
Christine e Léa não tinham mais contato com a mãe. Esta por sua vez, nunca desempenhou a função materna da maneira "adequada" com sua filhas (que eram três por sinal). Sempre as entregava a outras pessoas e quando quisesse as buscava novamente, exercendo um poder sobre elas, em outras palavras, fazendo-as de objeto. A filha mais velha (Emilia) abandonou a familia para dedicar-se a igreja, já as outras duas (Christine e Léa) foram abandonadas pela mãe e juntas conseguiram o emprego na casa dos Lancelin.
As duas irmãs, abandonadas pela mãe, desenvolveram uma relação simbiótica, ou seja, uma era o espelho da outra, uma completava a outra. No entanto, no decorrer dos estudos, percebe-se que Christine desenvolve uma estrutura psicótica, enquanto que Léa (a mais nova e "frágil") se deixa influenciar pelos delírios da irmã mais velha.
Nasio (psicanalista) comenta sobre este caso, que, como as duas irmãs sempre viveram juntas, compartilharam do mesmo pensamento, idéias e almejavam as mesmas coisas, isso foi possível para que o delírio de uma contagiasse a outra. Mas, em outros casos isso é muito raro acontecer, ou seja, uma pessoa "normal" (neurótico) se deixar levar pelos delírios de um psicótico.





Irmãs Papin


Bom, as irmãs tinham um forte sentimento de abandono e viram na Sra. Lancelin a figura materna que faltava em suas vidas, tendo até um momento que chegaram a chamá-la de mãe. Através desta transferência extremamente forte e positiva, as irmãs conseguiram desempenhar um papel aceitável na sociedade - até certo momento!
Eis que chegou o dia em que as estruturas psíquicas balançaram e, num momento súbito, aquela transferência positiva se transformara em negativa, devido a um olhar da patroa de reprovação e insulto direcionado às irmãs. Que péssimo para as patroas...Porque uma vez que o psicótico se sente ameaçado, ele faz de tudo para se proteger! De tudo mesmo, até arrancar os olhos do outro que lançou o "olhar invasivo", que foi o caso.



As duas vítimas


E no fim da história, as irmãs são presas, Christine de fato surta na prisão, apresentando ataques violentos contra os outros e a si mesma, morre por lá mesmo. Léa condenada a dez anos de trabalhos forçados, saiu da prisão por conduta exemplar, e voltou para junto da mãe Clémence, com quem viveu até o fim de seus dias. E como Nasio disse em seu texto: "Foi essa a história das irmãs Papin, filhas de Clémence: Emilia foi destinada a Deus, Christine à loucura e Léa à Clémence, sua mãe".


Gostaria de comentar muito mais a respeito, pois este é um caso rico em informações sobre esta estrutura psíquica, mas não quero me estender muito neste post!


Até a próxima ...




Mariana Anconi

SOBRE JACQUES LACAN...

Paranoia e Estádio do Espelho

Lacan graduou-se em medicina, especializou-se em psiquiatria e logo depois trabalhou na enfermaria especial de alienados da Chefatura de Polícia, sob a direção de Clérambault, um dos mestres da psiquiatria francesa da época, criador do conceito de "automatismo mental", de muita importância para o pensamento de Lacan.

Na enfermaria onde Lacan trabalhou eram levadas pessoas que haviam cometido algum crime, mas que não poderiam ser responsabilizadas caso apresentassem um distúrbio mental. Foi nesse lugar que Lacan elaborou sua tese de psiquiatria "Da psicose paranóica e suas relações com a personalidade". Nela Lacan relata o fato de alguns pacientes se curarem após cometerem um crime. A partir dessa observação, Lacan propôs um novo diagnóstico, denominado "paranoia de autopunição".

A característica principal da paranoia de autopunição é o efeito de cura que um ato criminoso produz num sujeito que o comete em decorrência de um delírio. Apesar de ter recolhido muitos casos dessa manifestação, Lacan escreveu sua tese fundamentando-se no Caso Aimeé, que se tornou o paradigma da paranoia de autopunição.

Aimeé era uma mulher que pertencia à burguesia, uma funcionária pública fascinada por uma atriz famosa. Ela foi à saída do tetro onde a atriz trabalhava e atacou-a com uma navalha. A atriz teve os tendões das mãos cortados, e Aimeé foi então presa e levada para a clínica de Clérambault.

A conclusão a que Lacan chegou foi que o que estava em jogo naquele caso era uma idealização patológica, a princípio pela irmã, depois pela atriz. Porém, as únicas noções que poderiam explicar a razão da conduta da paciente não estavam na psiquiatria: eram conceitos que só existiam na psicanálise. No caso, o conceito de Superego.

Logo em seguida, em 1933, Lacan publicou dois textos: "O problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranoicas da experiência" e "Motivações do crime paranoico: o crime das irmãs Papin", sendo este o relato do caso de duas irmãs, empregadas domésticas em Paris, que em certo dia, por um motivo fútil - a falta de luza em casa - mataram e esquartejaram suas patroas.

Ao publicar esse texto, propondo as razões do crime paranoico, Lacan avançou em relação à sua tese anterior: a concepção de que o outro é o que o criminoso quer ser, então, ele tem de anular o outro para que possa existir - caso contrário, se perde nesse outro. Segundo Lacan, o que provocou o crime foi a realização de fantasias de estripação, fantasias que Lacan chamou de "corpo despedaçado". Assim como Freud descobriu as fantasias neuróticas, Lacan evidenciou as "fantasias paranoicas", porém dirá que todos temos essas fantasias, e o paranoico seria o sujeito que as coloca em prática.

Em 1936, com 35 anos de idade, já como psicanalista, Lacan apresentou no Congresso Marienbad, o texto "O Estádio do Espelho". Na época, o subtítulo desse texto era "Teoria do momento estruturante genético da constituição da realidade conhecida em relação à experiência analítica".

Nele, Lacan produziu uma teoria sobre a conformação da estrutura psíquica do sujeito, e o que ela elabora nele não é mais o motivo do crime paranoico, e sim a constituição da realidade.

Em 1949, ao ser apresentado como nós conhecemos, "O Estádio do Espelho" recebeu o título de "O Estádio do Espelho como formador da função do Eu tal como nos é revelado pela experiência analítica", escrito desde o ponto de vista da observação e da metodologia da psicanálise - e o que se deduz: a constituição do Eu (Je).

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"Psicanálise Lacaniana"
Autor: Márcio Peter de Souza Leite
Editora: Iluminuras

O caso Aimée e a causalidade psíquica

Andréa Hortélio Fernandes

Psicanalista, bolsista de Desenvolvimento Científico Regional (CNPq) no Departamento de Psicologia da UFBA. Rua Rio São Pedro, 24 ap. 501, 40150-350, Salvador BA; ahfernandes@zaz.com.br






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RESUMO

O artigo discute as formulações acerca da causalidade psíquica nos primórdios da obra de Jacques Lacan. Com base na análise do caso Aimée, presente na tese de psiquiatria de Lacan, busca demonstrar como a hipótese de uma origem social nos mecanismos psíquicos de autopunição da paranóia permite a Lacan articular, alguns anos depois, identificação e causalidade psíquica.

Palavras-chave: identificação, causalidade psíquica, origem social, autopunição, psicanálise.


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ABSTRACT

The case of Aimée and psychic causality. The article discusses the formulations about psychic causality in Lacan's early work. Based on the analysis of the Aimée case of Lacan's psychiatric thesis, it tries to demonstrate how the hypothesis of social origin in the psychic mechanisms of self-punishment present in the paranoia, make it possible for Lacan to articulate, years later, identification and psychic causality.

Keywords: identification, psychic causality, social origin, self-punishment, psychoanalysis.


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Lacan, em 1946, estabelece uma articulação entre a causa-lidade psíquica e a identificação. No entanto, é possível encontrar as bases desta formulação lacaniana já na tese de psiquiatria defendida 14 anos antes. Vislumbra-se então que Lacan desdobra certos aspectos clínicos da sua pesquisa sobre a origem social dos mecanismos psíquicos de autopunição da paranóia e, assim, formula a causalidade psíquica em termos de identificação, pondo em destaque a função da imago. Desse modo, é possível supor que este tempo propiciou a Lacan elaborar alguns conceitos utilizados no seu trabalho acadêmico. Tais conjecturas convidam a uma análise retrospectiva deste período, como forma de esclarecer a relação entre causalidade psíquica e identificação nos primórdios da teorização lacaniana.

Logo, é preciso voltar a 1932, ano em que o jovem psiquiatra Jacques Lacan apresenta a uma banca presidida por Henri Claude sua tese intitulada: "Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade". Nesta ocasião, ele declara que a originalidade da tese encontra-se no fato de, pela primeira vez, na França, buscar-se uma interpretação exaustiva dos fenômenos mentais de um delírio em função da história concreta do sujeito. De acordo com Leguil, as primeiras reflexões clínicas e teóricas de Lacan estão sob a influência de Karl Jaspers (LEGUIL, 1989); cabe então examinar a que Lacan se refere quando fala em "história concreta do sujeito".

Constata-se que a historicidade está veiculada ao acompanhamento, durante um ano e meio, de uma paciente que ele chamou de Aimée. É com base neste trabalho que Lacan constrói a tese segundo a qual a natureza da cura demonstraria a natureza da doença. É importante pontuar que o termo "cura" é utilizado no seu valor clínico de redução de todos os sintomas mórbidos. Desse modo, o fato de a paciente, cerca de vinte dias após ter cometido um atentado contra a atriz Huguette ex-Duflos, não apresentar nenhum delírio focaliza a problemática do estudo.

Inicialmente, Lacan tenta resolver o enigma do desaparecimento do delírio em Aimée, pensando no mesmo como sendo um delírio passional. Neste quadro, a realização da obsessão assassina, através do assassinato, faz-se acompanhar pela queda imediata de toda a convicção delirante do agressor. Porém, isso não acontece no caso em questão. A agressão deferida por Aimée provoca um ferimento na mão da atriz e Aimée não demonstra nenhuma satisfação especial pela evolução favorável da sua vítima. A situação delirante, mantendo-se por mais de quinze dias, passa a fugir às características dos delírios passionais.

Assim sendo, a saída encontrada por Lacan para explicar a natureza da cura vai buscar o que muda para a paciente depois que ela comete o atentado. O então jovem psiquiatra acredita que a paciente "realiza" seu castigo. Segundo Lacan, isso se revela de duas formas. De um lado, ela experimenta a companhia de outras delinqüentes que expressam opiniões cínicas sobre sua pessoa, além de vivenciar a desaprovação e o abandono dos seus familiares e próximos, com exceção apenas daqueles que como ela cometeram um delito e pelos quais ela sente repulsa. De outro lado, ele defende que ela agride a si mesma, o que se expressa pelos seus choros e a conseqüente queda do delírio, caracterizando, de acordo com Lacan, a satisfação da obsessão passional.

O passo seguinte de Lacan será o de buscar uma teorização que sustente sua compreensão deste caso. Como diz Philippe Julien, Lacan recorre a certos textos de Freud para poder explicar por que acredita que Aimée seja um caso de uma paranóia de autopunição (JULIEN, 1990). É na tese que Lacan promulga esta nova entidade nosológica fazendo referência a textos de Freud que tratam especificamente da gênese do supereu.

Os textos selecionados da obra freudiana buscam sustentar a hipótese de Lacan segundo a qual os mecanismos psíquicos de autopunição teriam uma origem social. Esta origem estaria demarcada pela presença de sentimentos de culpa que expressariam a atitude subjetiva dos pacientes. Interessado em demonstrar a validade da sua hipótese, Lacan cita textos da segunda tópica freudiana que tratam da origem do supereu. É assim que ele recomenda a leitura de "O Eu e o Isso",1 pois esta é para ele a obra fundamental de Freud sobre a doutrina do supereu.

Seguindo a orientação formulada por Lacan, verifica-se que, de fato, Freud (1923), no terceiro capítulo de "O Eu e o Isso", trabalha detalhadamente como se dá a formação do supereu. A investigação freudiana aí está fundada na análise dos sentimentos de culpa. Através de uma citação deste texto, é possível compreender o destaque dado por Lacan a este artigo na sua tese de psiquiatria. Logo, neste capítulo, Freud afirma que:

"A tensão entre as exigências da consciência e os sentimentos concretos do eu é experimentada como sentimento de culpa. Os sentimentos sociais repousam em identificações com outras pessoas, na base de possuírem o mesmo ideal do eu. A religião, a moralidade e senso social foram originalmente uma só e mesma coisa. [...] Mesmo hoje os sentimentos sociais surgem no indivíduo como uma superestrutura construída sobre impulsos de rivalidade ciumenta contra seus irmãos e irmãs. Visto que a hostilidade não pode ser satisfeita, desenvolveu-se uma identificação com o rival anterior." (FREUD, 1923/ 1969, p. 52)

Freud continua seu texto retomando o artigo "Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no homossexualismo", de 1922, que é também citado por Lacan, na tese. Neste artigo de 1922, Freud examina os três graus do ciúme encontrados no trabalho analítico. Seriam eles: o ciúme competitivo ou normal, o projetado, e o delirante. Em 1923, ele retoma sucintamente o que tinha declarado um ano antes.

"O estudo de casos brandos de homossexualidade confirma a suspeita de que também neste caso a identificação constitui substituto de uma escolha objetal afetuosa que ocupou o lugar da atitude hostil, agressiva." (FREUD, 1923/1969, p. 52)

Uma passagem do texto "Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no homossexualismo" revela a relação feita por Freud, nesta época, entre ciúme, rivalidade, homossexualismo e sentimento social, e esclarece os motivos que levaram Lacan a fazer referência a este texto.

"É bem conhecido que um bom número de homossexuais se caracteriza por um desenvolvimento especial de seus impulsos instintuais sociais e, por sua devoção aos interesses da comunidade. [...], contudo, o fato de a escolha homossexual de objeto não sem freqüência provir de um anterior sobrepujamento da rivalidade com os homens não pode passar sem relação com a vinculação entre homossexualismo e o sentimento social." (FREUD, 1922/ 1969, p. 281)

A citação acima explica ainda porque Lacan, ao referir-se a este texto, considera-o como sendo um trabalho tanto sociológico como clínico, que ilustra a "gênese dos instintos sociais". No entanto, baseando-se também na teoria do desenvolvimento da libido, elaborada por Karl Abraham (1916), Lacan trabalhará a questão social partindo do pressuposto da existência de uma fixação da libido em objetos fraternos. Nesta perspectiva, outro trecho de "Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no homossexualismo" demonstra como Lacan busca nos textos de Freud elementos para sustentar a tese de uma origem social nos mecanismos psíquicos da paranóia de autopunição.

"Sabendo que, no paranóico, é exatamente a pessoa mais amada de seu próprio sexo que se torna seu perseguidor, surge a questão de saber onde essa inversão de afeto se origina. Não se precisa ir longe para buscar a resposta: a sempre presente ambivalência de sentimento fornece-lhe a fonte e a não-realização de sua reivindicação de amor a fortalece." (FREUD, 1922/ 1969, p. 275)

A leitura deste texto realizada por Lacan possibilitará a ele compreender a origem da inversão de afeto presente na psicose paranóica. De fato, durante uma entrevista, Lacan declara em 1933 que, na elaboração da sua tese, ele considerava a "noção dinâmica das tensões sociais" como primordiais e explicativas da paranóia. Afirma ainda que, para ele, seriam o equilíbrio ou a ruptura das tensões sociais que poderiam definir a personalidade do paciente. Deixa claro então a relevância do aporte freudiano para suas elaborações, pois relata que foi tomando por base o "texto admirável" de Freud de 1922 que pôde identificar a condição primordial das tensões sociais. Dito de outro modo, partindo das contribuições acerca das fixações amorosas existentes no complexo fraterno relatadas por Freud em "Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no homossexualismo", Lacan interpreta que a hostilidade primitiva entre os irmãos estaria na base de uma inversão anormal, que transformaria hostilidade em desejo, desejo de ser como o objeto que está no lugar do ideal do eu.

Lacan faz referência a outros textos de Freud. Entre eles, cabe salientar aqueles que desempenharam um papel importante para a explicitação da hipótese dos mecanismos psíquicos de autopunição. Deste ponto de vista, tanto "Luto e melancolia" (1915a/1969) como "O problema econômico do masoquismo" (1924/1969) devem ser colocados em destaque, uma vez que, em 1924, Freud vai propor os termos "necessidade de punição" no lugar de "sentimento inconsciente de culpabilidade". Para Freud, neste momento preciso de sua obra, a necessidade de punição expressaria uma exigência legal de sanção. Com efeito, percebe-se que, nas últimas citações feitas a Freud, Lacan apóia-se na conceitualização freudiana das neuroses de autopunição para circunscrever o caráter autopunitivo da paranóia.

Nesta ocasião, Lacan acredita que a análise dos determinantes autopunitivos e a teoria da gênese do supereu que ela fomentou representam na teoria psicanalítica uma síntese superior e nova (LACAN, 1932/1987). Apoiando-se nisto e buscando meios para sustentar sua nova entidade nosológica, ele afirma que a análise das correlações objetivas ou subjetivas permite demonstrar que os mecanismos psíquicos de autopunição têm uma origem social. A partir deste momento, ele empenhar-se-á em saber se o valor patogênico de uma fixação pode ser aproximado do de uma constituição. Logo, ele prolongará o exame da origem social da paranóia, examinando a fixação da libido no complexo fraterno enquanto condição primordial das "tensões sociais".

É surpreendente que Lacan, tendo explorado a origem social da paranóia, cite apenas de passagem o texto de Freud "Psicologia das massas e análise do Eu" e abstenha-se de trabalhá-lo com maior afinco. Tal evidência causa surpresa, pois não são poucos os textos em que Freud fala do social, e é neste especificamente que, trabalhando o conceito de identificação, ele demonstra que o contraste entre a psicologia individual e a psicologia social perde sua importância, dado ao fato de que, invariavelmente, algo mais está envolvido na vida mental do indivíduo, seja como um modelo, um objeto, um adversário, de modo que, desde o começo, toda psicologia individual é, ao mesmo tempo, também uma psicologia social (FREUD, 1921/1969).

Por intermédio de uma leitura cronológica dos textos de Freud, constata-se que, a partir de Totem e tabu (1913), ele constrói artigos nos quais a temática gira em torno da terapêutica do sujeito e dos transtornos do mesmo na sua relação com o mundo. Neste sentido, serão os distúrbios identificatórios postos em relevo. Logo, o texto sobre a psicologia das massas vai tentar esclarecer a origem do instinto social, pontuando que o primórdio de sua evolução pode estar associado a "um círculo mais estreito, como o da família" (FREUD, 1921/1969, p. 92). Será então através do exame do papel da identificação na história primitiva do complexo de Édipo que Freud reunirá elementos para a compreensão da sintomatologia apresentada pelos pacientes que muitas vezes dificulta o relacionamento destes sujeitos com o mundo.

Na tese, Lacan fornece material que ilustra os transtornos no nível da identificação, sofridos pela paciente. Entretanto, a noção de identificação será explorada apenas de relance no que toca ao seu interesse em evidenciar o caráter autopunitivo característico da psicose paranóica. Com efeito, Lacan revela estar mais preocupado em demonstrar que o paranóico, ao cometer um crime, conhece a lei que transgride, do que em analisar os transtornos identificatórios de Aimée que comprovam a tese freudiana de que "o eu não é o senhor da sua própria casa" (FREUD, 1917a/1969). Cabe então entender quais os critérios da seleção dos textos de Freud trabalhados por Lacan em sua tese.

Em "De nossos antecedentes", Lacan indica como ele "desemboca" em Freud. Segundo Lacan, é por intermédio de Alexander e Staub que chega a Freud (LACAN, 1966/1988). Neste sentido, é sob a influência de Alexander, ou seja, influenciado pelos trabalhos sobre autopunição da criminologia berlinense, que Lacan orientará seus estudos em torno da discussão acerca do supereu e da autopunição.

Elisabeth Roudinesco admite que, estando Lacan interessado na gênese do supereu, ele tomará Freud por um viés acadêmico, no qual a obra freudiana está associada ao eu, às resistências e aos mecanismos de defesa (ROUDINESCO, 1993). A afirmação desta autora torna compreensível o motivo por que Lacan faz referência aos trabalhos de Anna Freud sobre o papel do ambiente na patologia infantil e de Ernest Jones acerca da tendência autopunitiva do supereu. Estas referências, de acordo com Tendlarz (1989), coincidem com a hipótese lacaniana da ação do meio social sobre o indivíduo.

Estas bases teóricas contribuíram para que Lacan declarasse, na tese, que o tratamento das psicoses torna mais necessária uma psicanálise do eu do que uma psicanálise do inconsciente. Neste momento, ele apóia-se na idéia segundo a qual o estudo das resistências poderia fornecer novos manejos terapêuticos que poderiam ajudar a encontrar soluções técnicas para os impasses vividos na clínica das psicoses.

Como é sabido, Lacan inicia sua clínica atendendo casos de psicose. Ainda não exercendo a psicanálise e tendo começado sua análise pessoal somente no ano em que publica sua tese, Lacan afirma, nesta ocasião, ter como único mestre em psiquiatria Clérambault. Entretanto, ele não será partidário das idéias defendidas por seu mestre sobre uma natureza constitutiva da doença mental nem tampouco sobre o automatismo mental.

Na terceira parte da tese, Lacan, afirmando não pretender retomar a crítica das hipóteses usadas até então no estudo das psicoses paranóicas, apresenta as conclusões a que chegou através do seu trabalho. Assim sendo, a conclusão da tese é guiada por uma pergunta inicial que ele se propõe a responder. A questão é formulada assim: "a psicose, com efeito, é determinada por uma constituição?" (LACAN, 1932/1987, p. 314).

Para Lacan, a resposta a esta indagação só pode ser formulada através da apresentação de uma característica concreta ao quadro clínico estudado. Tendo este objetivo, ele afirma ter deixado de lado as hipóteses sobre a psicose paranóica que desconhecem o que há de mais simples a compreender nestes casos. A compreensão almejada por Lacan busca dar um sentido humano às condutas que são passíveis de observação nos pacientes; entre elas, cita os fenômenos mentais trazidos pelos mesmos. O entendimento do propósito almejado por Lacan poderá ser esclarecido por intermédio da análise do que ele consegue construir em torno do caso Aimée.

Quando encontra a paciente pela primeira vez, ela apresenta um histórico de internamento psiquiátrico de dez anos, período que teve início quando estava grávida. Durante todo este tempo, Aimée mostra-se num estado depressivo, acompanhado por interpretações delirantes sobre temas de perseguição associados a idéias de ciúme e prejuízo contra sua pessoa. Lacan relata o quadro apresentado por Aimée durante a gravidez:

"As conversas de seus colegas parecem, então, visá-la: eles criticam suas ações de maneira desagradável, caluniam sua conduta e lhe predizem infortúnios. Na rua, os transeuntes sussurram a seu respeito e lhe demonstram desprezo. Reconhece nos jornais alusões dirigidas contra ela." (LACAN, 1932/1987, p. 155)

Ainda, de acordo com Lacan, Aimée teria repetido para si mesma a pergunta: "Por que fazem isso comigo? Eles querem a morte de meu filho. Se esta criança não viver, eles serão responsáveis" (LACAN, 1932/1987, p. 155-156).

Aimée dá à luz uma menina que nasce morta. Atordoada pelos delírios de perseguição, ela acusa uma amiga de longa data de ser a responsável pelo infortúnio. Esta amiga, depois de um longo período sem dar notícias, sabendo que Aimée teve criança, telefona buscando retomar o contato. Logo, é em torno desta amiga que um primeiro perseguidor cristaliza-se.

Pouco tempo depois, Aimée fica novamente grávida. E, mais uma vez, apresenta um quadro depressivo. Segundo Aimée, em cada gravidez ela ficava triste e seu marido censurava suas melancolias; além disso, também se mantinham as interpretações delirantes. Desta segunda gravidez, nasce um menino ao qual ela será a única a dedicar-se durante os cinco primeiros meses, pois acredita que todos ameaçam seu filho.

Paralelamente aos delírios de perseguição, há evidências de delírios de grandeza. Tendo certeza de que o futuro lhe reserva o destino de uma grande romancista, Aimée entrega seu filho aos cuidados de sua irmã mais velha, que é viúva. Esta vem morar na casa de Aimée para auxiliá-la nas atividades domésticas, que ela executa com dificuldade. A partir daí, Lacan formula uma descrição das perseguidoras.

Ele defende que elas são sucessivas "tiragens" de um protótipo, tendo esse protótipo um duplo valor afetivo e representativo (LACAN, 1932/1987, p. 253). De acordo com Lacan, esse protótipo instaura-se em razão do poder afetivo que ele tem na vida da Aimée. Nesta perspectiva, esse protótipo ou modelo é representado por Elise, a irmã mais velha de Aimée. Para Lacan, o fato de esta irmã ter um papel muito importante na vida afetiva de Aimée explica por que esta última não entra diretamente em confronto com ela. Ele explica isso com maiores detalhes na seguinte passagem:

"Não é, com efeito, dos elogios e da autoridade que lhe são conferidos pelos que a cercam que sua irmã vai tirar sua principal força contra Aimée, é da própria consciência de Aimée. Aimée reconhecia por seu valor as qualidades, as virtudes, os esforços de sua irmã. Ela é dominada por ela, que lhe representa sob um certo ângulo a imagem mesma do ser que ela é impotente para realizar." (LACAN, 1932/1987, p. 231)

Lacan pontua dois momentos distintos na fala de Aimée em relação à sua irmã. Se, por um lado, Aimée se felicita por sua irmã cuidar do seu filho, afastando-o da severidade do pai; no momento em que dá livre curso às suas associações, o seu dizer aponta para o fato de ela suportar mal o lugar que Elise passa a ocupar na educação de seu filho. É desta divisão subjetiva que Lacan extrai o tema em torno do qual se forma o delírio.

Constata-se assim que, apesar de não realizar uma psicanálise neste caso, Lacan através da sua escuta pôde demarcar escansões na fala de Aimée que lhe revelaram o tema central do delírio. De fato, a escuta de Lacan, neste caso, aponta para a necessidade de respeitar o preceito freudiano de que no inconsciente não há contradição ou negação (FREUD, 1915b/1969). Logo, a livre associação de Aimée é tomada por Lacan como:

"A confissão do que é tão rigorosamente negado, a saber, no caso presente, da queixa que Aimée imputa à sua irmã por ter raptado seu filho, queixa em que é surpreendente reconhecer o tema que sistematizou o delírio." (LACAN, 1932/1987, p. 232)

Lacan busca, assim, explicitar sua formulação acerca da sistematização do delírio em Aimée. Com este intuito, ele alerta para o fato de que a formalização do delírio de perseguição manifesta-se pela primeira vez na pessoa da antiga amiga de Aimée. As circunstâncias em que isto acontece servem a Lacan para exemplificar suas elaborações. Aimée estando deprimida durante a gravidez, fica mais abalada ainda ao dar à luz um bebê natimorto. Pouco depois recebe um telefonema de sua antiga amiga. Logo, a explosão de ódio contra a Senhorita C. de la N. acontece, de acordo com Lacan, justamente quando Aimée fracassa no seu desejo de ser mãe. Para ele, neste momento, Aimée perde por completo suas esperanças de realizar seu "destino de mulher", uma vez que ela já havia demonstrado dificuldades para as atividades domésticas e agora não poderia ser mãe.

Lacan defende, então, a existência de uma relação mais profunda entre a pessoa na qual sistematiza-se a primeira perseguidora e o conflito moral de amor e ódio que Aimée vive com a irmã. Conclui que a amiga tomada por perseguidora representa ao mesmo tempo a amiga querida e a pessoa dominadora da qual ela tem inveja; esta é, na verdade, uma substituta da irmã. Lacan declara que a Senhorita representa a adaptação e a superioridade para com seu meio, sendo também um objeto invejado por Aimée. Desse modo, seguindo os traços dos sentimentos ambivalentes, presentes na inveja, Lacan chega à identificação. Estaria a identificação associada aí à causalidade psíquica? Estaria a identificação vinculada à constituição psicótica? A maneira como ele vai tratar a identificação no caso Aimée poderá responder a estas questões.

Constata-se que, mesmo sem citar A interpretação dos sonhos (1900), mais explicitamente o sonho do salmão defumado de uma paciente de Freud, mas seguindo a lógica freudiana, Lacan chega ao mecanismo da identificação presente nos sentimentos ambivalentes da inveja. Para ele, tanto a amiga como a irmã mais velha são tomadas por objetos de "íntima" inveja de Aimée, isto porque, para Lacan, a inveja considerada como um sentimento ambivalente denota a presença da identificação. A partir daí, ele deduz um "valor representativo" para as séries de perseguidoras de Aimée.

"Mulheres de letras, atrizes, mulheres do mundo, elas representam a imagem que Aimée concebe da mulher que, em algum grau, goza da liberdade e do poder social. Mas aí explode a identidade imaginária dos temas de grandeza e dos temas de perseguição: este tipo de mulher é exatamente o que ela sonha se tornar. A mesma imagem que representa seu ideal é também o objeto de seu ódio." (LACAN, 1932/1987, p. 254)

Esta formulação de Lacan se aproxima em muito da que ele passa a trabalhar, nos anos 40, acerca da causalidade psíquica. Na realidade, desde meados dos anos 30, quando do texto sobre o estádio do espelho, Lacan põe em destaque a função da imago na captação identificatória à qual o sujeito está submetido pela imagem do outro.

Pode-se afirmar que, na tese, encontram-se as bases sobre as quais Lacan constrói as formulações acerca da causalidade psíquica definida em termos de identificação; contudo, ele aí ainda não as explora neste sentido. Na última citação, assim como em ao menos uma outra passagem do texto de 1932, Lacan pontua o papel da imagem no caso Aimée. Ele diz então: "Compreendemos agora qual é o obstáculo de vidro que faz com que ela não possa nunca saber, ainda que o grite, que todas essas perseguidoras, ela as ama: elas são apenas imagens" (LACAN, 1932/1987, p. 297).

Com efeito, a frase da tese acima referida, aproxima-se bastante da "fórmula geral da loucura" que Lacan, em 1946, baseando-se em Hegel, vai propor como estando na constituição de todo sujeito (LACAN, 1946/1966, p. 173). Esta fórmula demonstra como o desenvolvimento dialético do ser humano se realiza sempre numa identificação sem mediação com o que o sujeito tem de melhor e, tal qual o caso Aimée, trata-se de uma identificação ideal em que a agressividade está presente.

Voltando à tese, é possível inferir que Lacan, buscando responder à questão: se a psicose seria determinada por uma constituição, passe a analisar as identificações explicativas ou mnêmicas pontuadas por ele no caso clínico. Neste sentido, ele defende que a imprecisão lógica do delírio tem importância na medida em que o delírio pode ser tomado como tendo um valor de realidade. Aqui, mais uma vez, Lacan é freudiano, pois ele reafirma que é a realidade psíquica que interessa e não a realidade material, apesar de não citar o texto de Freud sobre "Os caminhos da formação dos sintomas" (FREUD, 1917b/1969). Logo, o delírio, em seu valor de realidade, diz Lacan, "exprime claramente as tendências psíquicas de que só a expressão lógica normal é recalcada" (LACAN, 1932/1987, p. 299).

Partindo do princípio defendido por Colette Soler (1986) de que as identificações são denunciadas ao longo de um processo analítico, pode-se entender, conforme a citação que segue, o valor dado por Lacan às identificações explicativas ou mnêmicas.

"Ele diz, então, que mesmo que as identificações explicativas ou mnêmicas sejam posteriores aos distúrbios iniciais do delírio e racionalmente ilusórias, nem por isso estão menos em uma relação constante com o complexo ou o conflito, de natureza ético-sexual, e gerador do delírio." (LACAN, 1932/1987, p. 299)

É prudente salientar que, mesmo antes, quando discute o diagnóstico, prognóstico, profilaxia e tratamento da paranóia de autopunição, Lacan já tinha demarcado o papel das identificações sistemáticas, explicativas ou mnêmicas.

"Não se teria absolutamente razão para considerar a priori as primeiras identificações sistemáticas do delírio como puramente secundárias a esses fenômenos. Ainda que estas identificações, explicativas ou mnêmicas, sejam posteriores aos fenômenos ditos primários e ao período de inquietude que os acompanha, elas têm freqüentemente a relação mais direta com o conflito e com os complexos realmente geradores do delírio." (LACAN, 1932/1987, p. 274)

A partir destas citações, pode-se compreender como a tese fundamenta as elaborações seguintes de Lacan acerca da relação entre a causalidade psíquica e a identificação. De fato, o caso Aimée ilustra o que Lacan vem a estabelecer como sendo a função da imago na causalidade psíquica dos sujeitos.

"A história do sujeito desenvolve-se numa série mais ou menos típica de identificações ideais que representam os mais puros dentre os fenômenos psíquicos por eles revelarem essencialmente a função da imago. E não concebemos o Eu senão como um sistema central dessas formações, sistema que é preciso compreender, à semelhança delas, na estrutura imaginária e em seu valor libidinal." (LACAN, 1946/1966, p. 179)

Porém, em 1932, Lacan tomará a causalidade psíquica por um outro viés. Como já foi dito anteriormente, baseando-se em Karl Abraham, Lacan defende que a gênese da psicose está fundada no conflito moral de Aimée com sua irmã. Logo, ele vai trabalhar este caso à luz de uma fixação no complexo fraterno, que justificaria a existência de uma fixação na gênese do supereu. Assim, a compreensão da identificação interativa serve a Lacan para explicar o processo pelo qual Aimée transfere para as mais diferentes pessoas sua ambivalência afetiva. Contudo, baseando-se na afirmação de Colette Soler de que as identificações são denunciadas ao longo do tratamento, compreende-se por que Lacan sublinha que o processo envolvido na identificação interativa é um esforço abortado de Aimée para se liberar de sua fixação primeira. Para ele:

"Se, no curso de seu delírio, Aimée transfere para várias cabeças sucessivas as acusações de seu ódio amoroso, é por um esforço para se liberar de sua fixação primeira, embora este esforço seja abortado: cada uma das perseguidoras não é verdadeiramente nada mais que uma nova imagem, sempre inteiramente prisioneira do narcisismo, desta irmã da qual nossa doente fez seu ideal." (LACAN, 1932/1987, p. 389)

Já no texto "Formulações sobre a causalidade psíquica" de 1946, Lacan apóia-se na estrutura geral de desconhecimento manifestada perfeitamente em Aimée, para propor a universalidade da loucura, expressa em termos de identificação, como estando no cerne de todo sujeito. Na passagem abaixo, trata especificamente disso.

"Esse desconhecimento revela-se na revolta com que o louco quer impor a lei de seu coração ao que lhe afigura como sendo a desordem do mundo, iniciativa insensata, [...] dizia eu, basicamente porque o sujeito não reconhece nessa desordem do mundo a própria manifestação de seu ser atual, nem que o que ele sente como lei de seu coração é apenas a imagem invertida quanto virtual desse mesmo ser. Ele desconhece duplamente, portanto, e precisamente por separar a atualidade da virtualidade. Ora, ele só pode escapar dessa atualidade através dessa virtualidade. Assim seu ser está encerrado num círculo, a menos que ele o rompa por alguma violência.

Tal é a fórmula geral da loucura que encontramos em Hegel, pois não creiam que estou inovando, ainda que tenha tomado o cuidado de apresentá-la a vocês de forma ilustrada. Digo "fórmula geral da loucura" no sentido de que podemos vê-la aplicar-se particularmente a qualquer uma das fases pelas quais se realiza mais ou menos, em cada destino, o desenvolvimento dialético do ser humano, e de que ela sempre se realiza ali como uma estase do ser, numa identificação ideal que caracteriza esse ponto de um destino particular." (LACAN, 1946/1966, p. 172-173)

Entretanto, na tese de psiquiatria, como afirma Borch-Jacobsen (1995), Lacan faz eco aos estudos de Georges Politzer, admitindo assim que o paranóico que comete um crime conhece a lei que transgride. Ao retomar o caso Aimée, quando vai tratar do crime das irmãs Papin, Lacan dá mostras do quanto está influenciado por Politzer.

"A pulsão agressiva, que se resolve no assassinato, aparece assim como uma afecção que serve de base à psicose. [...] Mas a pulsão está marcada em si mesma de relatividade social: ela tem sempre a intencionalidade de um crime, quase constantemente a de uma vingança, freqüentemente o sentido de uma punição, isto é, de uma sanção oriunda dos ideais sociais, muitas vezes, enfim, ela se identifica com o ato da moralidade, tem o alcance de uma expiação (autopunição)." (LACAN, 1933/1987, p.392)

Efetivamente, a orientação de Lacan nestes dois períodos difere bastante, porém ocorre um intercruzamento. Na tese, a ambivalência afetiva de Aimée dirigida contra a sua irmã é entendida como condição primordial das tensões sociais que guiará toda a hipótese de Lacan sobre o comportamento autopunitivo de Aimée. Com isso, ele defende que esta fixação no complexo fraterno deve ser ultrapassada para que Aimée possa aceder a uma moralidade socialmente eficaz. No entanto, todo o esforço de Aimée em deslocar para outras mulheres o estatuto de perseguidora só faz confirmar que ela se encontra presa no complexo fraterno. Nos anos 30, baseando-se no caso Aimée, ele vai nomear o transtorno experimentado pelos paranóicos como o "mal de ser dois" e afirmar que ele se faz acompanhar da necessidade de punição (LACAN, 1933/1987, p. 397). Isto viria então evidenciar que a natureza da cura demonstra a natureza da doença.

Deste modo, Lacan consegue os subsídios necessários para propor que Aimée seja considerada um caso de paranóia de autopunição. Ele demonstra que, atacando a rival que ela inveja, Aimée pune a si própria. Assim, "pelo mesmo golpe que a torna culpada diante da lei, Aimée atinge a si mesma, e, quando ela o compreende, sente então a satisfação do desejo realizado: o delírio, tornado inútil, se desvanece" (LACAN, 1932/1987, p. 254).

Comprova-se que, no decorrer da tese, o conceito de identificação é de início e de uma maneira precisa levado em consideração, porém ele é posto de lado quando Lacan trata da nova entidade nosológica. Em outras palavras, se Lacan se dá conta do papel das identificações ditas explicativas ou mnêmicas no complexo formador do delírio, a causalidade psíquica não é ainda associada ao mecanismo da identificação.

Entretanto, a elaboração teórica de Lacan, em 1932, fornece as bases sobre as quais ele vai construir uma teoria da constituição do sujeito por identificação. Ogilvie (1993) sintetiza bem este momento da obra lacaniana.

"Como se constitui de início o sujeito humano, levando-se em conta sua 'natureza' particular de ser social? Lacan consagra os anos que seguem a Tese para a elaboração de uma resposta. Nós encontramos os elementos principalmente em dois textos: o artigo sobre 'A família' sendo o título original 'Os complexos familiares na formação do indivíduo' (1938), e o artigo intitulado 'O estádio do espelho como formador da função do eu tal como ela nos é revelada na experiência psicanalítica' (1949)." (OGILVIE, 1993, p. 86)

Ainda, de acordo com este mesmo autor, se compararmos os dois títulos, é possível extrair deles o trabalho ao qual Lacan vai se dedicar nos anos seguintes. Tendo dado por resolvida a tentativa de provar a origem social da paranóia de autopunição na sua tese, Lacan delimitará seu campo de investigação ao aspecto psíquico da questão; este objetivo fará com que ele deixe de lado toda a preocupação de ordem "sociológica" que o orientou durante a tese.

Os textos escritos entre 1938 e 1949, já pelos seus títulos, anunciam ser o momento propício para Lacan elaborar aquilo que havia recolhido da sua tese. Tanto em 1946, com "Formulações sobre a causalidade psíquica", como em 1948, com "Agressividade em psicanálise", Lacan vai desdobrar certos aspectos clínicos da sua tese sobre a psicose paranóica. Interessando-se pela gênese do eu, Lacan, por intermédio do estádio do espelho, vai definir o eu como tendo uma estrutura paranóica, revertendo assim a idéia de tensão social tal qual ela foi entendida na tese para a de uma tensão entre o eu e o outro, semelhante, adversário, modelo.

Por fim, constata-se que, por ser freudiano, Lacan pôde dentro de um tempo lógico compreender a importância da afirmação de Freud em 1921, segundo a qual a psicologia individual, num sentido ampliado e inteiramente justificável, é também uma psicologia social. Tal entendimento foi fundamental para ampliar os conhecimentos adquiridos na tese no sentido da formalização de uma teoria da constituição do sujeito por identificação.



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Recebido em 15/9/2001. Aprovado em 21/11/2001.





1 Buscando uniformizar as referências, optou-se por chamar "ego" de "eu", "superego" de "supereu" e "ça" de "isso".