POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ

POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Introdução teórica as funções da psicanálise em criminologia - JACQUES LACAN

Comunicação para a XIII Conferência dos Psicanalistas de Língua Francesa (29 de maio de 1950), em colaboração com Michel Cénac

I. Do movimento da verdade nas ciências do homem
Se a teoria nas ciências fisicas nunca escapou realmente a exigência de coerência interna que constitui o próprio movimento do conhecimento, as ciências do homem, por se encarnarem em comportamentos na própria realidade de seu objeto, não podem eludir a questão de seu sentido, nem fazer com que a resposta se imponha em termos de verdade.
Que a realidade do homem implique esse processo de revelação, eis ai um fato que fundamenta para alguns pensar a história como uma dialética inscrita na matéria; e inclusive uma verdade que nenhum ritual de proteção “behavorista” do sujeito frente a seu objeto há de castrar com sua agudeza criadora e mortal, e que faz do próprio estudioso, devoto do “puro” conhecimento, um responsável em primeiro grau.
Ninguém sabe disso melhor que o psicanalista, que, no entendimento do que lhe confia seu sujeito assim como no manejo dos comportamentos condicionados pela técnica, age por uma revelação cuja verdade condiciona a eficácia.
Por outro lado, não seria a busca da verdade o que constitui o objeto da criminologia na ordem das coisas judiciárias, e também o que unifica suas duas faces: a verdade do crime em sua face policial, a verdade do criminoso em sua face antropológica?
Em que contribuem para essa busca a técnica que norteia nosso diálogo com o sujeito e as noções que nossa experiência definiu em psicologia, eis o problema que constituirá hoje nosso propósito: menos para falar de nossa contribuição ao estudo da delinqüência – exposta nos outros relatórios – do que para estabelecer seus limites legítimos, e por certo não para propagar a letra de nossa doutrina sem uma preocupação de método, mas para repensá-la, como nos é recomendado fazer incessantemente, em função de um novo objeto.

II. Da realidade sociológica do crime e da lei, e da relação da psicanálise com seu fundamento dialético

Nem o crime nem o criminoso são objetos que se possam conceber fora de sua referencia sociológica.
A máxima “é a lei que faz o pecado” continua a ser verdadeira fora da perspectiva escatológica da Graça em que São Paulo a formulou.
Ela é cientificamente confirmada pela constatação de que não há sociedade que não comporte uma lei positiva, seja esta tradicional ou escrita, de costume ou de direito. Tampouco existe aquela em que não apareçam no grupo todos os graus de transgressão que definem o crime.
A pretensa obediência “inconsciente”, “forçada” ou “intuitiva” do primitivo a regra do grupo é uma concepção etnológica, fruto de uma insistência imaginária que lançou seu reflexo sobre muitas outras concepções das “origens”, porém tão mítica quanto elas.
Toda sociedade, por fim, manifesta a relação do crime com a lei através de castigos cuja realização, sejam quais forem suas modalidades, exige um assentimento subjetivo. Quer o criminoso, com efeito, se constitua ele mesmo no executor da punição que a lei dispõe como preço do crime – como no caso do incesto cometido nas ilhas Trobriand entre primos matrilineares, e cujo desfecho Malinowski nos relata em seu livro, capital nessa matéria, sobre O crime e o costume nas sociedades selvagens (e não importam as motivações psicológicas em que se decompõe a razão do ato, nem tampouco as oscilações de vendeta que as maldições do suicida podem gerar no grupo) -, quer a sanção prevista por um código penal comporte um processo que exija aparelhos sociais muito diferenciados, esse assentimento subjetivo é necessário a própria significação da punição.
As crenças mediante as quais essa punição se motiva no indivíduo, assim como as instituições pelas quais ela passa ao ato no grupo, permitem-nos definir numa dada sociedade aquilo que designamos, na nossa, pelo termo responsabilidade.
Mas, é preciso que a entidade responsável seja sempre equivalente. Digamos que se, primitivamente, é a sociedade em seu conjunto (sempre fechado, em princípio, como realçaram os etnólogos) que é considerada afetada, pelo fato de que um de seus membros deva ser restabelecido de um desequilíbrio, esse membro é tão pouco responsável como indivíduo que, muitas vezes, a lei exige satisfações a custa ou bem de um dos defensores ou bem da coletividade de um “in-group” que o encobre.
Ocorre até que a sociedade se considere tão alterada em sua estrutura que recorre a processos de exclusão do mal sob a forma de um bode expiatório, ou então de regeneração através de um recurso externo. Responsabilidade coletiva ou mística da qual nossos costumes trazem os vestígios, quando não tenta vir novamente a luz por meios invertidos.
Mas, também nos casos em que a punição limita-se a atingir o indivíduo fautor do crime, não é na mesma função nem, se quisermos, na mesma imagem dele mesmo que ele é tido como responsável, o que fica evidente ao refletirmos sobre a diferença da pessoa que tem que responder por seus atos conforme seu juiz represente o Santo Ofício ou presida o Tribunal do Povo.
E é aí que a psicanálise, pelas instancias que distingue no indivíduo moderno, pode esclarecer as vacilações da noção de responsabilidade em nossa época e o advento correlato de uma objetivação do crime para a qual ela pode colaborar.
Pois, com efeito, se em razão de limitar ao indivíduo a experiência que ela constitui, ela não pode ter a pretensão de apreender a totalidade de qualquer objeto sociológico, nem tampouco o conjunto das motivações atualmente em ação em nossa sociedade, persiste o fato de que ela descobriu tensões relacionais que parecem desempenhar em todas as sociedades uma função basal, como se o mal-estar da civilização desnudasse a própria articulação da cultura com a natureza. Podemos estender suas equações, com a ressalva de efetuar sua transformação correta, as ciências do homem que podem utilizá-las e, especialmente, como veremos, a criminologia.
Acresce que, se o recurso a confissão do sujeito, que é uma das chaves da verdade criminológica, e a reintegração na comunidade social, que é uma das finalidades de sua aplicação, parecem encontrar uma forma privilegiada no diálogo analítico, isso se dá, antes de mais nada, porque, podendo ser levado as significações mais radicais, esse diálogo aproxima-se do universal que esta incluído na linguagem e que, longe de podermos eliminá-lo da antropologia, constitui seu fundamento e seu fim, pois a psicanálise é apenas uma extensão técnica que explora no indivíduo o alcance da dialética que escande as produções de nossa sociedade e onde a máxima pauliniana recupera sua verdade absoluta.
A quem nos perguntar aonde nos leva tal colocação, responderemos, com o risco gratamente assumido de descartar a jactância clínica e o farisaísmo preventivo, remetendo-o a um dos diálogos que nos relatam os atos do herói da dialética e, em especial, ao Górgias, cujo subtítulo, invocando a retórica e bem feito para distrair a incultura contemporânea, contém um verdadeiro tratado do movimento do Justo e do Injusto.
Ali, Sócrates refuta a enfatuação do Mestre/Senhor, encarnado num homem livre dessa pólis antiga cujo limite é dado pela realidade do Escravo. Forma que abre caminho para o homem livre da Sabedoria, ao reconhecer o absoluto da Justiça nela estabelecido em virtude da simples linguagem, sob a maiêutica do Interlocutor. Assim, Sócrates, não sem fazê-lo aperceber-se da dialética, tão sem fundo quanto o tonel das Danaides, das paixões do poder, nem poupá-lo de reconhecer a lei de seu próprio ser político na injustiça da polis, acaba por incliná-lo ante os mitos eternos em que se exprime o sentido do castigo, da emenda para o individuo e do exemplo para o grupo, muito embora ele próprio, em nome do mesmo universal, aceite o destino que lhe cabe e se submeta da antemão ao veredito insensato da polis que o fez homem.
Nada há de inútil, com efeito, em lembrar o momento histórico em que nasceu uma tradição que condicionou o aparecimento de todas as nossas ciências e na qual se afirmou o pensamento do iniciador da psicanálise, quando ele proferiu com uma confiança patética: “ A voz do intelecto é baixa, mas não pára enquanto não se faz ouvida” – onde cremos ouvir, num eco abafado, a própria voz de Sócrates dirigindo-se a Cálicles: “A filosofia diz sempre a mesma coisa.”

III. Do crime que exprime o simbolismo do supereu como instancia psicopatológica: se a psicanálise irrealiza o crime, ela não desumaniza o criminoso

Se nem sequer podemos captar a realidade concreta do crime sem referi-lo a um simbolismo cujas formas positivas coordenam-se na sociedade, mas que se inscreve nas estruturas radicais que a linguagem transmite inconscientemente, esse simbolismo foi também o primeiro sobre o qual a experiência psicanalítica demonstrou, através de efeitos patogênicos, a que limites ate então desconhecidos ele repercute no individuo, tanto em sua fisiologia quanto em sua conduta.
Assim, foi partindo de uma das significações de relação que a psicologia das “sínteses mentais” recalcava ao Maximo em sua reconstrução das funções individuais que Freud inaugurou a psicologia que se reconhecer bizarramente como sendo a das profundezas, sem duvida em razão do alcance totalmente superficial daquilo cujo lugar ela tomou.
Esses efeitos, dos quais ela descobriu o sentido, ela os designou audaciosamente pelo sentimento que lhes é correspondente na vivência: a culpa.
Nada poderia manifestar melhor a importância da revolução freudiana do que o uso técnico ou vulgar, implícito ou rigoroso, confesso ou sub-reptício, que é feito em psicologia dessa verdadeira categoria onipresente desde então, de tão desconhecida que era – nada, a não ser os estranhos esforços de alguns para reduzi-la a formas “genéticas” ou “objetivas”, trazendo a garantia de um experimentalismo “behavorista” que há muito se haveria calado, caso se abstivesse de ler nos fatos humanos as significações que os especificam como tais.
E mais, a primeira situação, cuja noção ainda somos devedores a iniciativa freudiana por tê-la introduzido em psicologia para que ele ali obtivesse, no correr do tempo, o mais prodigioso sucesso – primeira situação, dizemos, não como confronto abstrato esboçando uma relação, mas como crise dramática que se resolve como estrutura -, é justamente a do crime em suas duas formas mais abominadas, o Incesto e o Parricídio, cuja sombra engendra toda a patogênese do Édipo.
E é inconcebível que, havendo recebido na psicologia tamanha contribuição do social, o médico Freud tenha ficado tentado a lhe fazer algumas retribuições e que, com Totem e tabu, em 1912, tenha querido demonstrar n crime primordial a origem da Lei universal. Não importa a que critica de método esteja sujeito esse trabalho, o importante foi que ele reconheceu que com a Lei e o Crime começava o homem, depois de o clinico haver mostrado que suas significações sustentavam inclusive a forma do individuo, não apenas em seu valor para o outro, mas também em sua ereção para si mesmo.
Assim veio a luz a concepção do supereu, inicialmente fundamentada em efeitos de censura inconsciente que explicavam estruturas psicopatológicas já identificadas, logo depois esclarecendo as anomalias da vida cotidiana e, por último, correlata a descoberta de uma morbidez imensa, ao mesmo tempo que de seus moveis psicogenéticos: a neurose de caráter, os mecanismos do fracasso, as impotências sexuais, “der gehemmte Mensch”.
Revelou-se assim uma imagem moderna do homem que contrastava estranhamente com as profecias dos pensadores do fim do século, imagem tão derrisória para as ilusões alimentadas pelos libertários quanto para as inquietações inspiradas nos moralistas pela emancipação das crenças religiosas e pelo enfraquecimento do laços tradicionais. A concupiscência que reluzia nos olhos do velho Karamazov quando ele interrogava seu filho – “Deus está morto, agora tudo é permitido” -, esse homem, o mesmo que sonha com o suicídio niilista do herói de Dostoievski ou se obriga a encher a lingüiça nietzschiana, responde com todos os seus males e com todos os seus gestos: “Deus está morto, nada mais é permitido.”
Esses males e esses gestos, a significação da autopunição os abrange a todos. Caberá então estende-la a todos os criminosos, na medida em que, segundo a formula pela qual se exprime o humor glacial do legislador, como ninguém pode alegar desconhecer a lei, qualquer um pode prever sua incidência e deve, portanto, ser tido com procurando seu castigo?
Esse comentário irônico deve, ao nos obrigar a definir o que a psicanálise reconhece como crimes ou delitos provenientes do supereu, permitir-nos formular uma critica do alcance dessa noção em antropologia.
Reportemo-nos as notáveis observações princeps pelas quais Alexander e Staub introduziram a psicanálise na criminologia. Seu teor é convincente, quer se trate de “tentativa de homicídio de um neurótico”, quer dos furtos singulares do estudante de medicina que não sossegou enquanto não se fez aprisionar pela policia berlinense, e que, em vez de adquirir o diploma a que seus conhecimentos e seus dons reais lhe davam direito, preferia exercê-los infringindo a lei, quer ser trate ainda do “possesso das viagens de automóvel”. Releiamos também a análise que fez a sra. Marie Bonaparte do caso da sra. Lefebvre: a estrutura mórbida do crime ou dos delitos é evidente: o caráter forçado destes na execução, sua estereotipia quando eles se repetem, o estilo provocador da defesa ou da confissão, a incompreensibilidade dos motivos, tudo confirma a “coação por uma força a que o sujeito não pode resistir”, e os juízes de todos esses casos concluíram nesse sentido.
Essas condutas, no entanto, tornam-se perfeitamente claras a luz da interpretação edipiana. Mas o que as distingue como mórbidas é seu caráter simbólico. Sua estrutura psicopatológica não está, de modo algum, na situação criminal que elas exprimem, mas no modo irreal dessa expressão.
Para nos fazermos compreender ate o fim, contrastemos com elas um fato que, apesar de constante nos anais dos exércitos, adquire toda a sua importância do modo, ao mesmo tempo muito extenso e seletivo dos elementos associais, pelo qual se efetua há mais de um século, em nossas populações, o recrutamento dos defensores da pátria ou da ordem social, qual seja, o gosto que se manifesta na coletividade assim formada, no dia de gloria que a põe em contato com seus adversários civis, pela situação que consiste em violar uma ou varias mulheres na presença de um macho, de preferência idoso e previamente reduzido a impotência, sem que nada leve a presumir que os indivíduos que a realizam se distingam, antes ou depois, como filhos ou maridos, com pais ou cidadãos, da moralidade normal. Fato simples, que bem podemos qualificar de fait divers , pela diversidade do credito que lhe é atribuído conforme sua fonte, e até, propriamente falando, de divertido, pelo material que essa diversidade oferece as propagandas.
Dizemos que há nisso um crime real, embora ele seja praticado precisamente numa forma edipiana, e o fautor seria justificadamente castigado se as condições heróicas em que se considera que tenha sido realizado não fizessem, na maioria das vezes, com que a responsabilidade fosse assumida pelo grupo que encobre o individuo.
Reencontramos, pois, as formulas límpidas que a morte de Mauss traz de novo a luz de nossa atenção: as estruturas da sociedade são simbólicas: o individuo, na medida em que é normal, serve-se delas em condutas reais; na medida em que é psicopata, exprime-se por condutas simbólicas.
Mas e evidente que o simbolismo assim expresso só pode ser parcelar, ou, quando muito, pode-se afirmar que ele marca o ponto de ruptura ocupado pelo individuo na rede das agregações sociais. A manifestação psicopática pode revelar a estrutura da falha, mas essa estrutura só pode ser tomada por um elemento na exploração do conjunto.
Eis por que as tentativas sempre renovadas e sempre falaciosas de fundamentar na teoria analítica noções como as de personalidade modal, caráter nacional ou supereu coletivo devem por nos ser dela distinguidas com o máximo rigor. Compreende-se, é claro, a atração que uma teoria que deixa transparecer de maneira tão sensível a realidade humana exerce sobre os pioneiros de campos da mais incerta objetivação; acaso não ouvimos um eclesiástico, cheio de boa vontade, prevalecer-se perante nós de sua intenção de aplicar os dados da psicanálise ao simbolismo cristão? Para cortar pela raiz essas extrapolações indevidas, basta sempre referir novamente a teoria a experiência.
E é nisso que o simbolismo, doravante reconhecido na primeira ordem de delinqüência que a psicanálise isolou como psicopatológica, deve permitir-nos precisar, em extensão e em compreensão, a significação social do edipianismo, bem como criticar o alcance da noção de supereu para o conjunto das ciências do homem.
Ora, em sua maior parte, senão em sua totalidade, os efeitos psicopatológicos em que se revelaram as tensões oriundas do edipianismo, não menos do que as coordenadas históricas que impuseram esses efeitos ao talento investigativo de Freud, permitem-nos pensar que eles exprimem uma deiscência do grupo familiar no seio da sociedade. Essa concepção, que se justifica pela redução cada vez mais estreita desse grupo a sua forma conjugal, e pela conseqüência que se segue do papel formador cada vez mais exclusivo que lhe é reservado nas primeiras identificações da criança e na aprendizagem das primeiras disciplinas, explica o aumento do poder captador desse grupo sobre o individuo, na medida mesma do declínio de seu poder social.
Evoquemos apenas, para fixar as idéias, o fato de que, numa sociedade matrilinear como a dos Zuni ou dos Hopi, os cuidados com a criança, a partir do momento de seu nascimento, cabem por direito a irma de seu pai, o que a inscreve, desde que ela vem a luz, num duplo sistema de relações parentais, que se enriquecerão a cada etapa de sua vida por uma crescente complexidade de relações hierarquizadas.
Esta portanto superando o problema de comparar as vantagens que pode apresentar, para a formação de um supereu suportável para o individuo, uma certa pretensa organização matriarcal da família, em relação ao triangulo clássico da estrutura edipiana. A experiência deixou patente, doravante, que esse triangulo e apenas a redução ao grupo natural, efetuada por uma evolução histórica, de uma formação em que a autoridade reservada ao pai, único traço subsistente de sua estrutura original, mostra-se, de fato, cada vez mais instável ou obsoleta, e as incidências psicopatológicas dessa situação devem ser referidas tanto a escassez das relações grupais que ela assegura ao individuo quanto a ambivalência cada vez maior de sua estrutura.
Essa concepção confirma-se pela noção de delinqüência latente a que Aichhorn foi conduzido, ao aplicar a experiência analítica aos jovens de quem estava encarregado a titulo de uma jurisdição especial. Sabemos que Kate Friedlander elaborou dela uma concepção genética, sob a rubrica do “caráter neurótico”, e também que os críticos mais informados, desde o próprio Aichhorn ate Glover, pareceram surpreender-se com a incapacidade da teoria de distinguir a estrutura desse caráter, enquanto criminogênica, da estrutura desse caráter, enquanto criminogênica, da estrutura da neurose, onde as tensões permanecem latentes nos sintomas.
A colocação aqui trabalha permite entrever que o “caráter neurótico” é o reflexo, na conduta individual, do isolamento do grupo familiar, cuja posição associal esses casos sempre demonstram, ao passo que a neurose exprime, antes, suas anomalias estruturais. Alias, o que exige uma explicação é menos a passagem ao ato delituoso, num sujeito encerrado no que Daniel Lagache qualificou, muito justificadamente, de conduta imaginária, do que os processos pelos quais o neurótico adapta-se parcialmente ao real: trata-se, como sabemos, dessas mutilações autoplásticas que podemos reconhecer na origem dos sintomas.
Essa referencia sociológica do “caráter neurótico” concorda, de resto, com a gênese que dele fornece Kate Friedlander, se e exato resumi-la como a repetição, através da biografia do sujeito, das frustrações pulsionais que estariam como que detidas num curto-circuito na situação edipiana, sem nunca mais se engajar numa elaboração estrutural.
A psicanálise, em sua apreensão dos crimes determinados pelo supereu, tem como efeito, portanto, irrealizá-los. No que se harmonia com um obscuro reconhecimento que há muito se impôs aos melhores dentre aqueles a quem coube assegurar a aplicação da lei.
Alias, as vacilações registradas na consciência social ao longo de todo o século XIX, quanto a questão do direito de punir, são características. Seguro de si e até implacável, desde que apareça uma motivação utilitária – a ponto de o uso inglês da época tomar o pequeno delito, até mesmo de furto, que desse ensejo a um homicídio, como equivalente a premeditação que define o assassinato (cf. Alimena, La premeditazione) -, o pensamento dos penalogistas hesita diante do crime em que surgem instintos cuja natureza escapa ao registro utilitarista no qual se manifesta o pensamento de um Benthan.
Uma primeira resposta foi dada pela concepção lombrosiona nos primórdios da criminologia, considerando esses instintos atávicos e fazendo do criminoso um sobrevivente de uma forma arcaica da espécie, biologicamente isolável. Resposta da qual podemos dizer que trai sobretudo uma regressão filosófica muito mais real em seu autores, e cujo sucesso só pode explicar-se pelas satisfações que a euforia de classe dominante podia exigir, tanto para seu conforto intelectual quanto sua consciência pesada.
Havendo as calamidades da Primeira Guerra Mundial marcado o fim dessas pretensões, a teoria lombrosiana foi devolvida aos tempos d’antanho, e o mais simples respeito pelas condições apropriadas a qualquer ciência humana, as quais julgamos ter que relembrar em nosso exórdio, impôs-se até mesmo ao estudo do criminoso.
The Individual Offender, de Healy, marcou época no retorno aos princípios, instituindo antes de mais nada o de que esse estudo devia ser monográfico. Os resultados concretos trazidos pela psicanálise marcam uma outra época, tão decisiva pela confirmação doutrinaria que ele dão a esse principio quanto pela amplitude dos fatos valorizados.
Do mesmo modo, a psicanálise soluciona um dilema da teoria criminológica: ao irrealizar o crime, ela não desumaniza o criminoso.
Mais ainda, pela mola da transferência ela da acesso ao mundo imaginário do criminoso, que pode ser para ele a porta aberta para o real.
Observem-se aqui a manifestação espontânea dessa mola na conduta do criminoso e transferência que tende a se produzir para pessoa de seu juiz, da qual seria fácil colher provas. Citemos apenas, pela beleza do fato, as confidencias do chamado Frank ao psiquiatra Gilbert, encarregado da boa apresentação dos réus no processo de Nuremberg: esse Maquiavel derrisório, e neurótico a tal ponto que a ordem insensata do fascino confiou-lhe suas grandes obras, sentia o remorso agitar sua alma ante a simples aparência de dignidade encarnada na figura de seus juízes, particularmente a do juiz inglês, “tão elegante”, em suas palavras.
Os resultados obtidos com “grandes” criminosos por Melitta Schmideberg, embora sua publicação esbarre no obstáculo com que deparam todas as nossas análises, mereceriam ser acompanhados em sua catamnese.
Seja como for, os casos que decorrem claramente do edipianismo deveriam se confiados ao analista, sem nenhuma das limitações que podem entravar sua ação.
Como não fazer a experiência inteira disso, quando a penalogia justifica-se tão mal que repugna a consciência popular aplicá-la até mesmo aos crimes reais, como se vê no célebre caso, na América, relatado por Grotjahn em seu artigo “Searchlights on delinquency”, onde se vê o júri absolver os acusados, para entusiasmo do público, embora todas as acusações parecessem incriminá-los na prova do assassinato, simulado de acidente marítimo, dos pais de um deles?
Concluamos estas considerações completando as conseqüências teóricas que decorrem da utilização da noção de supereu. O supereu, diremos, deve ser tomado como uma manisfetação individual, ligada as condições sociais do edipianismo. Assim e que as tensões criminosas incluídas na situações familiar só se tornam patogênicas nas sociedade onde essa própria situação se desintegra.
Nesse sentido, o supereu revela a tensão, tal como a doença as vezes esclarece uma função na fisiologia.
Mas, nossa experiência dos efeitos do supereu, assim como a observação direta da criança a luz dessa experiência, revela-nos seu surgimento num estádio tão precoce que ele parece ser contemporâneo ou mesmo anterior ao surgimento do eu.
Melaine Klein afirma as categorias do Bom e do Mau no estádio infans do comportamento, levando o problema da implicação retroativa das significações numa etapa anterior ao surgimento da linguagem. Sabemos como seu método, manejando, sem levar em conta nenhuma objeção, as tensões do edipianismo numa interpretação ultraprecoce das intenções da criança pequena, desatou esse no pela ação, não sem provocar discussões apaixonadas em torno de suas teorias.
O fato e que a persistência imaginaria dos bons e maus objetos primordiais, em comportamentos de fuga que podem colocar o adulto em conflito com suas responsabilidades, levaria o supereu a ser concebido como uma instancia psicológica que, no homem, tem uma significação genérica. Essa noção, no entanto, nada tem de idealista; ela se inscreve na realidade da miséria fisiológica própria dos primeiros meses de vida do homem, genérica de fato em relação ao meio humano.
Que essa dependência possa surgir como significante no individuo, num estádio incrivelmente precoce de seu desenvolvimento, não e um fato diante do qual o psicanalista deva recuar.
Se nossa experiência com os psicopatas levou-nos a articulação da natureza com a cultura, nela descobrimos essa instancia obscura, cega e tirânica que parece ser a antinomia, no pólo biológico do individuo, do ideal do Dever puro que o pensamento kantiano coloca como contraparte da ordem incorruptível do céu estrelado.
Sempre pronta a emergir da desordem das categorias sociais, para recriar, segundo a bela expressão de Hesnard, o Universo mórbido da falta (faute), essa instância só e apreensível , contudo, no estado psicopático, isto é, no individuo.
Nenhuma forma do supereu, portanto, é passível de ser inferida do individuo para uma dada sociedade. E o único supereu coletivo que se pode conceber exigiria uma desagregação molecular integral da sociedade. E é verdade que o entusiasmo em que vimos toda uma juventude sacrificar-se por ideais de nada faz-nos entrever sua realização possível no horizonte de fenômenos sociais de massa que assim suporiam uma escala universal.

IV. Do crime em suas relações com a realidade do criminoso: se a psicanálise fornece sua medida, ela indica seu móvel social fundamental

A responsabilidade, isto é, o castigo, é uma característica essencial da idéia do homem que prevalece numa dada sociedade.
Uma civilização cujos ideais sejam cada vez mais utilitários, empenhada como esta no movimento acelerado da produção, nada mais pode conhecer da significação expiatória do castigo. Se ela conserva seu peso exemplar, é tendendo a absorvê-lo em seu fim correcional. E alem do mais, este muda imperceptivelmente de objeto. Os ideais do humanismo se resolvem no utilitarismo do grupo. E, como o grupo que faz a lei não está, por razões sociais, completamente seguro da justiça dos fundamentos de seu poder, ele se remete a um humanitarismo em que se exprimem igualmente a revolta dos explorados e a consciência pesada dos exploradores, para os quais a noção de castigo tornou-se igualmente insuportável. A antinomia ideológica reflete, aqui como em outros aspectos, o mal-estar social. Ela agora busca sua solução numa formulação cientifica do problema, isto é, numa análise psiquiátrica do criminoso a que deve reportar-se, após examinar todas as medidas de prevenção contra o crime e de proteção contra sua recidiva, o que podemos designar como uma concepção sanitária da penalogia.
Essa concepção supõe resolvidas as relações do direito com a violência e o poder de uma policia universal. Com efeito, nós vimos a consideração que recebeu em Nuremberg e, embora o efeito sanitário desse processo continue duvidoso, no tocante a supressão dos males sociais que ele pretendia reprimir, o psiquiatra não poderia ter-lhe faltado, por razões de “humanidade” que podemos ver que decorrem mais do respeito pelo objeto humano que da noção do próximo.
A evolução do sentido do castigo corresponde, com efeito, uma evolução paralela da formação da prova do crime.
Começando nas sociedades religiosas pelo ordálio ou pela prova do juramento, em que ou se designa o culpado a partir das motivações das crenças ou ele oferece seu destino ao julgamento de Deus, a formação da prova, a medida que se precisa a personalidade jurídica do individuo, exige cada vez mais seu compromisso com a confissão. Por isso é que toda a evolução humanista do Direito na Europa, que começa com a redescoberta do Direito romano na Escola de Bolonha e vai até a completa captação da justiça pelos jurisconsultos reais e a universalização da noção de direito das nações, é estritamente correlata, no tempo e no espaço, da difusão da tortura, igualmente inaugurada em Bolonha como meio de formação da prova do crime. Fato cujo alcance até hoje não parece ter sido considerado.
E que o desprezo da consciência que se manifesta no ressurgimento geral dessa pratica como método de opressão oculta-nos que fé ele supõe no homem como procedimento de aplicação da justiça.
Se foi no exato momento em que nossa sociedade promulgou os direitos do homem, ideologicamente baseados na abstração de seu ser natural, que a tortura foi abandonada em seu uso jurídico, isso não se deu em razão de um abrandamento dos costumes, difícil de sustentar na perspectiva histórica que temos da realidade social do século XIX; pois esse novo homem, abstraído de sua consistência social, já não é digno de crédito, nem em um nem no outro sentido desse termo; ou seja, já não estando ele sujeito a pecar, não se pode dar credito a sua existência como criminoso, nem tampouco, do mesmo modo, a sua confissão. Desde então, é preciso que haja seus motivos, com os móveis do crime, e esses motivos e esses móveis devem ser compreensíveis, e compreensíveis para todos, o que implica – como o formulou uma das melhores mentes dentre aquelas que tentaram repensar a “filosofia penal” em sua crise, e isto com uma retidão sociológica digna de fazer com que se reveja um esquecimento injusto, estamo-nos referindo a Tarde – o que implica, diz ele, duas condições para a plena responsabilidade do sujeito: a similitude social e a identidade pessoal.
Portanto, esta aberta ao psicólogo a porta do pretório, e o fato de ele só raramente aparecer ali em pessoa prova tão-somente a carência social de sua função.
A partir desse momento, a “situação de réu”, para empregar a expressão de Roger Grenier, já não pode ser descrita senão como o encontro de verdades inconciliáveis, como fica patente ao se assistir ao menor processo do Tribunal do Júri em que um perito seja chamado a depor. E flagrante a falta de um denominador comum entre as referencias sentimentais em que se confrontam o ministério publico e o advogado, por serem as do júri, e as noções objetivas que o perito traz, mas que, pouco dialético, não consegue fazer apreender, por não conseguir com elas obter uma conclusão de irresponsabilidade.
E podemos ver essa discordância, no espírito do próprio perito, voltar-se contra sua função num ressentimento que se manifesta com prejuízo de seu dever; pois já houve o caso de um perito junto ao Tribunal que se recusou a qualquer outro exame, afora o físico, de um réu alias manifestamente valido sob o aspecto mental, entrincheirando-se atrás do Código sob a alegação de que não tinha que chegar a uma conclusão sobre a realidade do ato imputado ao sujeito pelo inquérito policial, embora uma pericia psiquiátrica o advertisse expressamente de que um simples exame por esse ponto de vista demonstrava com certeza que o ato em questão era de pura aparência e que, como gesto de repetição obsessiva, não podia constituir, no local fechado, embora vigiado, em que se havia produzido, um delito de exibicionismo.
Ao perito, no entanto, é conferido um poder quase discricionário na dosagem da pena, por menos que ele se sirva do adendo acrescentado pela lei, para sua utilização, ao artigo 64 do Código.
Mas, com o simples instrumento desse artigo, ainda que ele não possa responder sobre o caráter coercitivo da força que acarretou o ato do sujeito, ao menos pode descobrir quem sofreu essa coerção.
A essa pergunta, porém, só o psicanalista pode responder, na medida em que só ele tem uma experiência dialética do sujeito.
Observe-se que um dos primeiros elementos cuja autonomia psíquica essa experiência o ensinou a apreender, ou seja, o que a teoria aprofundou progressivamente como representando a instancia do eu, é também aquilo que, no diálogo analítico, é declarado pelo sujeito como sendo dele mesmo, ou,mais exatamente, aquilo que, tanto por seus atos quanto por suas intenções, possui a declaração do sujeito. Ora, dessa declaração Freud reconheceu a forma que é mais característica da função que ela representa: é a Verneinung, a denegação.
Poderíamos descrever aqui toda uma semiologia das formas culturais pelas quais se comunica a subjetividade, a começar pela restrição mental característica do humanismo cristão – e que se recriminou tanto aqueles admiráveis moralistas que foram os jesuítas por haverem codificado seu uso – continuando pelo Kêtman, uma espécie de exercício de proteção contra a verdade que Gobineau nos indica ser geral, em seus relatos tão penetrantes sobre a vida social do Oriente Médio, e passando para o Jang, cerimonial de recusas que a polidez chinesa estabelece como graus no reconhecimento do outro, para reconhecer a forma mais característica de expressão do sujeito na sociedade ocidental, no protesto de inocência, e dizer que a sinceridade e o primeiro obstáculo encontrado pela dialética na busca das verdadeiras intenções, parecendo o uso primário da fala ter por fim disfarçá-las.
Mas, esse é apenas o afloramento de uma estrutura que se encontra através de todas as etapas da gênese do eu, e mostra que a dialética fornece a lei inconsciente das formações, mesmo as mais arcaicas, do aparelho de adaptação, assim confirmando a gnoseologia de Hegel, que formula a lei geradora da realidade no processo tese-antítese-síntese. E decerto é instigante ver os marxistas se esforçarem por descobrir,no progresso das noções essencialmente idealistas que constituem as matemáticas, os vestígios imperceptíveis desse processo, e desconhecerem sua forma ali onde ela deve com mais probabilidade aparecer, isto é, na única psicologia que manifestamente toca no concreto, por menos que sua teoria se declare guiada por essa forma.
E ainda mais significativo reconhecê-la na sucessão das crises – desmame, intrusão, Édipo, puberdade, adolescência – que reformulam, cada uma delas, uma nova síntese dos aparelhos do eu, numa forma cada vez mais alienante para as pulsões que ali são frustradas, e cada vez menos ideal para as que ali encontram sua normalização. Essa forma é produzida pelo fenômeno psíquico mais fundamental, talvez, que a psicanálise descobriu: a identificação, cujo poder formativo revela-se até na biologia. E cada um dos chamados períodos de latência pulsional (cuja serie correspondente e complementada pelo que Franz Wittels descobriu quanto ao ego adolescente) é caracterizado pelo predomínio de uma estrutura típica dos objetos do desejo.
Um de nos descreveu, na identificação do sujeito infans com a imagem especular, o modelo que ele considera mais significativo, ao mesmo tempo que o momento mais original da relação fundamentalmente alienante em que o ser do homem se constitui dialeticamente.
Ele demonstrou também que cada uma dessas identificações desenvolve uma agressividade que a frustração pulsional não basta para explicar, a não ser na compreensão do comum sense, tão cara ao Sr. Alexander, mas que exprime a discordância que se produz na realização alienante: fenômeno cuja noção podemos exemplificar através da forma caricata que dele fornece a experiência com animais na ambigüidade crescente (como a de uma elipse para um circulo) de sinais inversamente condicionados.
Essa tensão manifesta a negatividade dialética inscrita nas próprias formas em que se entranham no homem as forcas da vida, e podemos dizer que o talento de Freud deu a medida dela ao reconhecê-la como “pulsão do eu” sob o nome de instinto de morte.
Toda forma do eu encarna, com efeito, essa negatividade, e podemos dizer que se Clotó, Láquesis e Atropos partilham entre si o cuidado com nosso destino, é de comum acordo que elas torcem o fio de nossa identidade.
Assim, como a tensão agressiva ao integrar a pulsão frustrada cada vez que a falta de adequação do “outro” faz abortar a identificação resolutiva, ela determina com isso um tipo de objeto que se torna criminogênico na suspensão da dialética do eu.
Foi da estrutura desse objeto que um de nós tentou mostrar o papel funcional e a correlação com o delírio em duas formas extremas de homicídio paranóico, o caso “Aimée” e o das irmãs Papin. Este último caso comprova que só o analista pode demonstrar, contrariando o sentimento comum, a alienação da realidade do criminoso, num caso em que o crime dá a ilusão de responder a seu contexto social.
São também essas estruturas do objeto que Anna Freud, Kate Friedlander e Bowlby determinam, como analistas, nos casos de furto em jovens delinqüentes, conforme neles se manifeste o simbolismo do dom do excremento ou a reivindicação edipiana, a frustração da presença nutriz ou a da masturbação fálica – e a noção de que essa estrutura corresponde a um tipo de realidade que determina os atos do sujeito guia a parte que eles chamam de educativa em sua conduta para com eles.
Educação que é, antes, uma dialética viva, segundo a qual o educador, através de sue não-agir, leva as agressões próprias ao eu a se ligarem para o sujeito, alienando-se em suas relações com o outro, para que ele possa então desligá-las através das manobras da analise clássica.
E, certamente, a engenhosidade e a paciência que admiramos nas iniciativas de um pioneiro como Aichhorn não fazem esquecer que sua forma tem que ser sempre renovada, para superar as resistências que o “grupo agressivo” não pode deixar de manifestar contra qualquer técnica aceita.
Tal concepção da ação “correcional” opõe-se a tudo o que possa inspirar uma psicologia que se rotula de genética, a qual, na criança, só faz medir suas aptidões decrescentes para responder as perguntas que lhe são feitas no registro puramente abstrato das categorias mentais do adulto, e que basta para derrubar a simples apreensão do fato primordial de que a criança, desde suas primeiras manifestações de linguagem, serve-se da sintaxe e das partículas de acordo com nuances que os postulados da “gênese” mental só deveriam permitir-lhe atingir no auge de uma carreira de metafísico.
E já que essa psicologia pretende atingir, sob esses aspectos cretinizados, a realidade da criança, dizemos que é ao pedante que podemos realmente advertir que ele terá de corrigir seu erro, quando as palavras “Viva a morte”, proferidas por lábios que não sabem o que dizem, fizerem-no entender que a dialética circula ardente na carne, junto com o sangue.
Essa concepção especifica ainda o tipo de pericia que o analista pode fornecer da realidade do crime, fundamentando-se no estudo do que podemos chamar de técnicas negativistas do eu, sejam elas sofridas pelo criminoso ocasional ou dirigidas pelo criminoso contumaz: a saber, a inutilização basal das perspectivas espaciais e temporais exigidas pela previsão intimidante em que se fia ingenuamente a chamada teoria “hedonista” da penalogia: a supressão progressiva dos interesses no campo da tentação objetal, o retraimento do campo da consciência, proporcional a uma apreensão sonambúlica do imediato na execução do ato, e sua coordenação estrutural com fantasias que dele ausentam o autor – anulação ideal ou criações imaginárias em que se inserem, conforme uma espontaneidade inconsciente, as denegações, os álibis e as simulações em que se sustenta a realidade alienada que caracteriza o sujeito.
Queremos dizer aqui que toda essa cadeia não tem comumente a organização arbitrária de uma conduta deliberada, e que as anomalias estruturais que o analista nela possa destacar serão, para ele, outros tantos referenciais no caminho da verdade. Assim, ele interpretara mais profundamente o sentido dos traços freqüentemente paradoxais pelos quais se designa o autor do crime, e que menos significam os erros de uma execução imperfeita do que os fiascos de uma “psicopatologia cotidiana” por demais real.
As identificações anais, que a analise descobriu nas origens do eu, dão seu sentido ao que a medicina legal designa, no jargão policial, pelo nome de “cartão de visita”. A “assinatura” deixada pelo criminoso, muitas vezes flagrante, pode indicar em que momento da identificação do eu se produziu a repressão pela qual é possível dizer que o sujeito não pode responder por seu crime, e também pela qual ele permanece preso em sua denegação.
Até mesmo no fenômeno do espelho, em que um caso recentemente publicado pela Srta. Boutonier mostra-nos a mola de um despertar do criminoso para a consciência daquilo que o condena.
Essas repressões, haveremos nós de recorrer, para superá-las, a um desses métodos de narcose tão singularmente promovidos a ordem do dia pelos sustos que provocam nos virtuosos defensores da inviolabilidade da consciência?
Ninguém há de se extraviar menos que o psicanalista nesse caminho, antes de mais nada porque, contrariando a mitologia confusa em nome da qual os ignorantes esperam a “suspensão das censuras”, o psicanalista sabe o sentido exato das repressões que definem os limites da síntese do eu.
Por conseguinte, se ele já sabe que, no tocante ao inconsciente recalcado, quando a analise o restaura na consciência, e menos o conteúdo de sua revelação do que a mola de sua reconquista que constitui a eficácia do tratamento, a fortiori, no tocante as determinações inconscientes que sustentam a própria afirmação do eu, ele sabe que a realidade, quer se trate da motivação do sujeito, quer, as vezes, de sua própria ação, só pode aparecer através do progresso de um dialogo que o crepúsculo narcótico só poderia tornar inconsistente. Aqui, como em outros lugares, a verdade não e um dado que se possa captar em sua inércia, mas uma dialética em marcha.
Não busquemos a realidade do crime, portanto, nem tampouco a do criminoso, por meio da narcose. Os vaticínios que ela provoca, desnorteantes para o investigador, são perigosos para o sujeito que, por menos que participe de uma estrutura psicótica, pode encontrar nela o “momento fecundo” de um delírio.
A narcose, como a tortura, tem seus limites: não pode fazer o sujeito confessar aquilo que ele não sabe.
Assim, nas Questões medico-legais , que o livro de Zacchias nos atesta terem sido formuladas desde o século XVII em torno da noção de unidade da personalidade e das possíveis rupturas que nela pode introduzir a doença, a psicanálise traz o aparato de exame que abarca mais um campo de ligação entre a natureza e a cultura: aqui, o da síntese pessoal, em sua dupla relação de identificação formal, por um lado, que se abre para as hiânsias das dissoluções neurológicas (desde as crises epiléticas ate as amnésias orgânicas), e, por outro, de assimilação alienante, que se abre para as tensões das relações grupais.
Aqui, o psicanalista pode apontar ao sociólogo as funções criminogênicas próprias de uma sociedade que, exigindo uma integração vertical extremamente complexa e elevada da colaboração social, necessária a sua produção, propõe aos sujeitos, aos que ele se dedica, ideais individuais que tendem a se reduzir a um plano de assimilação cada vez mais horizontal.
Essa fórmula designa um processo cujo aspecto dialético podemos exprimir sucintamente, observando que, numa civilização em que o ideal individualista foi alçado a um grau de afirmação ate então desconhecido, os indivíduos descobrem-se tendendo para um estado em que pensam, sentem, fazem e amam exatamente as mesmas coisas nas mesmas horas, em porções do espaço estritamente equivalentes.
Ora, a noção fundamental da agressividade correlata a qualquer identificação alienante permite discernir que deve haver, nos fenômenos de assimilação social a partir de uma certa escala quantitativa, um limite, no qual as tensões agressivas uniformizadas tem de se precipitar em pontos onde a massa se rompe e se polariza.
Sabemos alias, que esses fenômenos, sob o simples ponto de vista da produtividade, já chamaram a atenção dos exploradores do trabalho que não ficam apenas nas palavras, e justificaram, para a Hawthorne Western Eletric , a despesa de um estudo sistemático das relações de grupo em seus efeitos sobre as disposições psíquicas mais desejáveis nos empregados.
Uma separação completa, por exemplo, entre o grupo vital, constituído pelo sujeito e pelos seus, e o grupo funcional, em que devem ser encontrados os meios de subsistência do primeiro, fato que basta ilustrar dizendo que ele torna verossímil o Sr. Verdoux – uma anarquia tão maior das imagens do desejo quanto mais elas parecem gravitar progressivamente em torno de satisfações escopofílicas, homogeneizadas na massa social, e pela posse e pelo prestigio nos ideais sociais, são outros tantos objetos de estudos para os quais a teoria analítica pode oferecer ao estatístico coordenadas corretas para introduzir suas mensurações.
Assim, o próprio político e o filosofo se beneficiado disso, conotando, numa dada sociedade democrática cujos costumes estendem sua dominação sobre o mundo, o surgimento de uma criminalidade recheando o corpo social, a ponto de assumir nele formas legalizadas, a inserção do tipo psicológico do criminoso entre os do recordista, do filantropo ou da estrela famosa, ou então sua redução ao tipo geral da servidão do trabalho, com a significação social do crime reduzida a seu uso publicitário.
Essas estruturas, nas quais uma assimilação social do indivíduo, levada ao extremo, mostra sua correlação com uma tensão agressiva cuja relativa impunidade no Estado é muito perceptível para um sujeito de uma cultura diferente (como era, por exemplo, o jovem Sun Yat Sen), aparecem invertidas quando, segundo um processo formal já descrito por Platão, a tirania sucede a democracia e efetua com os indivíduos, reduzidos a seu numero ordinal, o ato cardinal da adição, prontamente seguido pelas outras três operações fundamentais da aritmética.
E assim que, na sociedade totalitária, se a “culpa objetiva” dos dirigentes faz com que eles sejam tratados como criminosos e responsáveis, o apagamento relativo dessas noções, indicado pela concepção sanitária da penalogia, rende frutos para todos os outros. Abre-se o campo de concentração, para cuja alimentação as qualificações intencionais da rebelião são menos decisivas do que uma certa relação quantitativa entre as massas social e a massa excluída.
Sem duvida será possível avaliá-lo nos termos da mecânica desenvolvida pela chamada psicologia de grupo, permitindo determinar a constante irracional que deve corresponder a agressividade característica da alienação fundamental do individuo.
Assim, na injustiça mesma da polis – sempre incompreensível para o “intelectual” submetido a “lei do coração” – revela-se o progresso em que o homem se cria a sua própria imagem.

V. Da inexistência dos “instintos criminosos”: a psicanálise detém-se na objetivação do Isso e reivindica a autonomia de uma experiência irredutivelmente subjetiva

Se a psicanálise traz os esclarecimentos que dissemos a objetivação psicológica do crime e do criminoso, não terá ela também uma palavra a dizer sobre seus fatores inatos?
Observemos, primeiramente, a critica a que convém submeter a idéia confusa em que se fiam muitos homens de bem: a que vê no crime uma irrupção dos “instintos” que derrubam a “barreira” das forcas morais de intimidação. E uma imagem difícil de extirpar, pela satisfação que dá até mesmo as cabeças sisudas, ao lhes mostrar o criminoso fortemente guardado e o guarda tutelar, que, por ser característico de nossa sociedade, passa aqui a uma tranqüilizadora onipresença.
Pois, se o instinto significa efetivamente a incontestável animalidade do homem, não vemos por que esta seria mais dócil por estar encarnada num ser racional. A forma do adágio homo homini lupus é enganosa quanto a seu sentido, e Balthazar Gracian, num capitulo de seu Criticon, inventa um fabula em que mostra o que quer dizer a tradição moralista ao exprimir que a ferocidade do homem em relação a seu semelhante ultrapassa tudo o que podem fazer os animais, e que, ante a ameaça que ela representa para a natureza inteira, os próprios carniceiros recuam horrorizados.
Mas essa própria crueldade implica a humanidade. E um semelhante que ela visa, mesmo num ser de outra espécie. Nenhuma experiência sondou mais que a do analista, na vivência, a equivalência de que nos adverte o patético apelo do Amor – é a ti mesmo que atinges – e a gélida dedução do Espírito: é na luta mortal de puro prestígio que o homem se faz reconhecer pelo homem.
Se, num outro sentido, designam-se por instintos certas condutas atávicas cuja violência teria sido exigida pela lei da selva primitiva, e que qualquer enfraquecimento fisiopatológico libertária, a maneira dos impulsos mórbidos, do nível inferior em que elas estariam contidas, podemos indagar-nos por que, desde que o homem é homem, também não se revelaram nele impulsos de lavrar, plantar, cozinhar, ou até mesmo de enterrar os mortos.
A psicanálise decerto comporta uma teoria dos instintos, bastante elaborada e, para dizer a verdade, a primeira teoria verificável que deles se fez no homem. Mas ela os mostra comprometidos com um metamorfismo em que a fórmula de seu órgão, de sua direção e de seu objeto é uma faca de Jeannot com peças infinitamente intercambiáveis. Os Triebe ou pulsões que ali se isolam constituem apenas um sistema de equivalências energéticas em que referenciamos as trocas psíquicas, não na medida em que elas se subordinem a alguma conduta inteiramente montada, natural ou adquirida, mas na medida em que simbolizam, ou integram dialeticamente, as funções dos órgãos em que aparecem as trocas naturais, isto é, os orifícios bucal, anal e gênito-urinário.
Por conseguinte, essas pulsões só nos aparecem em ligações muito complexas, onde sua própria deformação não pode fazer com que se prejulgue sua intensidade originária. Falar de um excesso de libido é uma formulação desprovida de sentido.
Se há de fato uma noção que se depreende de um grande numero de indivíduos, capazes, tanto por seus antecedentes quanto pela impressão “constitucional” que se retira do contato com eles e de seu aspecto, de dar a idéia de “tendências criminosas”, trata-se mais de uma deficiência que de um excesso vital. A hipogenitalidade deles é freqüentemente manifesta, e seu clima irradia frieza libidinal.
Se numerosos sujeitos, em seus delitos, exibições, furtos, calotes e difamações anônimas, ou nos crimes da paixão homicida, encontram e buscam um estimulo sexual, este, sejam quais forem os mecanismos que o causam, angustia, sadismo ou associação situacional, não poderia ser tido como um efeito de transbordamento dos instintos.
Seguramente, é evidente a correlação de numerosas perversões nos sujeitos que vão a exame criminológico, mas ela só pode ser psicanaliticamente avaliada em função da fixação objetal, da estagnação do desenvolvimento, da implicação, na estrutura do eu, dos recalques neuróticos que constituem o caso individual.
Mais concreta é a noção com que nossa experiência completa a tópica psíquica do indivíduo – a do Isso -, porém, igualmente quão mais difícil que as outras de apreender.
Fazer a soma das predisposições inatas é uma definição puramente abstrata e sem valor de uso.
O termo constante situacional, fundamental naquilo que a teoria designa por automatismo de repetição, parece relacionar-se com isso, deduzidos os efeitos do recalcado e das identificações do eu, e pode ser de interesse nos casos de recidiva.
O Isso também implica, sem duvida, as escolhas fatais manifestas no casamento, na profissão ou na amizade, e que amiúde aparecem no crime como uma revelação das figuras do destino.
As “tendências” do sujeito, por outro lado, não deixam de mostrar deslizamentos ligados ao nível de sua satisfação. Gostaríamos de levantar a questão dos efeitos que pode ter ai um certo indicio de satisfação criminosa.
Mas, nesse ponto, talvez estejamos nos limites de nossa ação dialética, e a verdade que nos é dado reconhecer com o sujeito não pode ser reduzida a objetivação cientifica.
Pela confissão que recebemos do neurótico ou do perverso sobre o gozo inefável que eles obtêm ao se perderem na imagem fascinante, podemos avaliar o poder de hedonismo que nos introduzirá nas relações ambíguas da realidade com o prazer. Se, ao nos referirmos a esses dois grandes princípios, descrevemos o sentido de um desenvolvimento normativo, como não ser captados pela importância das funções fantasísticas nos motivos desse progresso, e quão cativa permanece a vida humana da ilusão narcísica que sabemos tecer suas coordenadas mais “reais”? E, por outro lado, já não está tudo pesado, junto ao berço, nas incomensuráveis balanças da Discórdia e do Amor?
Para-alem dessas antinomias que nos levam ao limiar da sabedoria, não há crime absoluto, e existem ainda, malgrado a ação policial estendida por nossa civilização ao mundo inteiro, associações religiosas ligadas por uma prática do crime, onde seus adeptos sabem encontrar as presenças sobre-humanas que, no equilíbrio do Universo, zelam pela destruição.
Para nós, dentro dos limites que nos esforçamos por definir como aqueles a que nossos ideais sociais reduzem a compreensão do crime, e que condicionam sua objetivação criminológica, se nos é possível trazer uma verdade de um rigor mais justo, não nos esqueçamos de que devemos isso a uma função privilegiada: a do recurso do sujeito ao sujeito, que inscreve nossos deveres na ordem da fraternidade eterna: sua regra é também a regra de toda noção permitida a nós.

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