POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ

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quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

ANTROPOLOGIA JURÍDICA

Schritzmeyer, Ana Lúcia Pastore – “Antropologia Jurídica” In Jornal Carta Forense, ano III, nº 21, fevereiro de 2005, pg. 24 e 25.


1) O que é Antropologia?

Antropologia, Sociologia e Ciência Política compõem as Ciências Sociais. Há, no Brasil, graduação em Ciências Sociais e pós-graduação em Antropologia, Sociologia e Ciência Política, de modo que “antropólogo” é quem se pós-gradua em Antropologia. Além da Antropologia Social ou Cultural, também existem a Arqueologia, a Antropologia Biológica ou Ecológica e ramos conectados à Lingüística e à Psicologia. Antropologia Social ou Cultural é o estudo das culturas humanas, com vistas a constituir um “inventário” de seus diversos modos de vida e formas de organização social.

2) O que é Antropologia Jurídica? Como nasceu?

A Antropologia Jurídica nasceu na Alemanha, Grã-Bretanha, França e Estados Unidos, no final do século XIX. Segundo Norbert Rouland, antropólogo francês contemporâneo, a Antropologia Jurídica estuda as lógicas que comandam os “processos de juridicização” próprios de cada sociedade, através da análise de discursos (orais e/ou escritos), práticas e/ou representações. “Processos de juridicização” envolvem a importância que cada sociedade atribui ao direito no conjunto da regulação social, qualificando (ou desqualificando), como jurídicas, regras e comportamentos já incluídos em outros sistemas de controle social, tais como a moral e a religião.

3) A Antropologia Jurídica é uma disciplina indispensável aos operadores do Direito? Por quê?

Ela é importante para a formação e atuação dos operadores do direito porque vivemos, no Ocidente, neste início de século XXI, o questionamento do papel do Estado (talvez o maior “mito jurídico moderno”). Estamos revisando os princípios da Revolução Francesa que, dentre inúmeras mudanças, instaurou a negação do mundo sobrenatural e passou a opor indivíduos a grupos; leis a pluralismo; direito positivo a direitos costumeiros. A Antropologia Jurídica mostra que costumes, mais que leis positivas, animam as relações sociais. O ser humano busca sentidos para a sua existência e isso se dá através das dimensões do sensível e do invisível, as quais são contempladas, no campo científico, primordialmente pela Antropologia, Filosofia e Psicologia. Um Direito que realmente privilegie a compreensão do ser humano precisa dialogar com essas áreas.

4) Qual a relação dessa disciplina com a Sociologia Jurídica e a História do Direito?

A Antropologia e a Sociologia Jurídicas tiveram origens e propósitos iniciais semelhantes ─ compreender, no final do séc. XIX, as regras de funcionamento de diversas sociedades humanas ─, mas enquanto a primeira enfatiza sistemas de valores e crenças em que estão inseridos diversos aspectos da vida social, dentre eles o jurídico, a segunda enfatiza práticas institucionais.

Quanto à Antropologia Jurídica e à História do Direito, ambas surgiram na Inglaterra e Alemanha, por volta de 1860/ 1870, quando a moda era estudar o Oriente. Predominou, inicialmente, uma ênfase histórico-evolucionista que organizava os diversos sistemas jurídicos, segundo uma seqüência progressiva e universal de formas consideradas simples para outras complexas. A Antropologia Jurídica nasceu da ampliação do Direito Comparado, pois ambos se interessavam por direitos diferentes dos praticados nos grandes centros urbanos europeus, mas, enquanto a Antropologia logo posicionou-se a favor da preservação da diversidade cultural, o Direito Comparado enfatizou a unificação de sistemas jurídicos diversos.

5) Quais as tendências da Antropologia Jurídica atual?

Basicamente cinco:

Estudar a seqüência dos conflitos, mais do que eles próprios, bem como as razões pelas quais as normas são ou não aplicadas, mais do que elas próprias;

Considerar o indivíduo um ator do pluralismo jurídico, relacionado a vários grupos sociais e a múltiplos sistemas agenciados por relações de colaboração, coexistência, competição ou negação;

A produção da Antropologia Jurídica continua alicerçada em países ocidentais industrializados de língua inglesa (estima-se que Estados Unidos e Canadá agrupem mais da metade de todos os atuais antropólogos do Direito);

No dito “Terceiro Mundo” pouco se ensina Antropologia Jurídica por razões de ordem ideológica, pois a maioria dos Estados adota concepções unitárias de direito legadas por ex-colonizadores. No Brasil há poucos profissionais e inexiste uma associação que os agrupe;

Um dos mais agitados debates refere-se à universalidade dos direitos humanos e a seus possíveis limites.

6) Qual a diferença do controle social ocidental através do Direito e do controle social produzido em outras sociedades?

Para a Antropologia Jurídica atual, todas as sociedades conhecem o Direito. As tradicionais relativizam seu papel, enquanto as ocidentais modernas o enfatizam. O Direito pode existir sem o Estado e este sem o Direito. Quem os associou foi a experiência ocidental pós-1789. Numerosas sociedades não têm as palavras direito e jurídico em seu vocabulário porque tais esferas estão mescladas a outros modos de regulação da vida social como a moral, a magia e a religião. A maioria das sociedades tradicionais concebe-se como uma reunião de grupos familiares, residenciais, religiosos, de idade e tal unidade não implica uniformidade. Como as relações entre esses grupos tendem mais à complementaridade que à oposição, o Direito (geralmente secreto e oral) bem como as sanções não são uniformes e contemplam particularidades.

7) O que estudos de antropólogos do direito concluem sobre nosso atual sistema penal?

Eles refutam a postura evolucionista segundo a qual a vingança é uma reação “selvagem e arcaica” a uma infração, pondo em risco a ordem social, ao passo que a “pena civilizada” é uma reação do corpo social ─ em geral representado por uma autoridade estatal ─ benéfica para o conjunto. Esses estudos demonstram que os sistemas penais modernos ocidentais, dentre eles o brasileiro, englobam “vinganças pessoais ou coletivas”, sendo fortemente marcados por relações de poder e por discriminações étnicas, etárias, de gênero etc. O Direito das sociedades ocidentais modernas e, conseqüentemente, seus sistemas penais são apontados como excessivos, inflacionários e pouco eficazes porque se distanciaram da moral e são menos interiorizados. Ficções ─ “ninguém pode alegar o desconhecimento da lei” ou “a coisa julgada é uma verdade” ─ ocultam preconceitos, privilégios e vários conflitos sociais que estão na própria origem e manutenção das penas e sistemas penais.

8) Que paralelos articulam maneiras de pensar o universo religioso e jurídico? E qual deles a sociedade moderna ocidental institucionalizou?

Segundo Norbert Rouland, tais paralelos podem ser reduzidos a três grandes arquétipos:

identificação: caracteriza os direitos do Extremo Oriente. Não se pensa o bem sem o mal, o espírito sem a matéria, o racional sem o sensível, o yin sem o yang. Não há imposição de leis externas. Ainda hoje, a maior parte dos conflitos na China é regrada pela conciliação ou arbitragem, não havendo mais que 5.000 advogados para uma população de mais de 1 bilhão de chineses.

diferenciação: comum no Egito antigo e entre certos grupos tribais (Ex: Dogon na África). A criação é entendida como um processo contínuo de diferenciação, assim como a estrutura social, mas os homens não se reduzem a indivíduos (pois sua existência é fugaz) e sim a grupos complementares (de existência mais perene). Legislações uniformizantes são tidas como destruidoras de uma unidade que depende da diferença e da complementaridade (união dos contrários).

submissão: para as religiões dos “Livros” (islamismo, judaísmo e cristianismo) Deus pré-existe a suas criações e as rege do exterior. Os homens são, portanto, submissos a poderes e leis exteriores. No Ocidente, o Estado se equiparou a esse Deus que cria, transforma e melhora a sociedade através do Direito.

As sociedades modernas ocidentais institucionalizaram o arquétipo da submissão, mas, em seu interior, funcionam outras lógicas.

9) Quais traços comuns existem entre as ditas sociedades “tradicionais” ou “primitivas” e as ocidentais modernas, no que se refere ao direito?

O pensamento mítico as aproxima, pois os mitos (escritos, orais, plásticos) são interpretações da realidade. O Estado nos países ocidentais é um mito jurídico moderno, nascido juntamente com os mitos do indivíduo e da lei como expressão da vontade popular.

Também as aproxima o caráter inacabado do Direito, pois ele depende largamente de ações subjetivas de profissionais da justiça e de seus administradores.

Outro traço comum é a dificuldade de poderes inovadores se institucionalizarem, pois é mais fácil mudar as leis do que a jurisprudência ou práticas administrativas. (Ex: implantação do ECA – Estatuto da criança e do Adolescente).

O direito oficial é geralmente evitado. Vários grupos (famílias, associações, partidos políticos, sindicatos, igrejas, ordens profissionais) criam suas próprias regulações e sanções (avisos, desaprovações, autocríticas, ostracismo, exclusão), recorrendo, só em casos extremos, aos tribunais estatais.

10) Qual o mercado de trabalho atual para o Antropólogo do Direito?

No campo acadêmico, temas relacionados a direitos humanos, direitos de “minorias”, administração da justiça e sistema de justiça criminal vêm estimulando cada vez mais pesquisadores. Também se discute a inclusão da disciplina Antropologia Jurídica na grade curricular de cursos de graduação em Direito. No campo da elaboração e gestão de políticas públicas de segurança e justiça já há antropólogos atuando e têm ocorrido concursos públicos para que esses profissionais componham quadros nos quais atuem junto com promotores públicos, secretários de segurança etc. Enfim, uma sensibilidade maior para com problemas culturais vêm criando uma demanda crescente por antropólogos do direito.

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